Um dia alguém ainda vai contar direito a história da decisão de quarta-feira no Supremo Tribunal Federal (STF). Uma acachapante maioria de oito votos -por ora, pois faltam três- confirmou a homologação em formato contínuo da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol.
A meia dúzia de arrozeiros que inflamou Roraima e tantos preconceitos antiindígenas adormecidos Brasil afora terá de abandonar a área. O governador José Anchieta Júnior (PSDB) e os senadores roraimenses Augusto Botelho (PT) e Mozarildo Cavalcanti (PTB), patrocinadores da causa contra os índios, ficaram dependurados na brocha.
A votação ainda em andamento no STF, mas já decidida, quanto à forma da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, se contínua ou em ilhas territoriais, muda conceitos, altera tendências históricas e cria um problema muito maior, ainda que diferente, do que o que motivou o processo. É que há implicações laterais na decisão que está sendo tomada pelos ministros que nos obrigam a repensar até mesmo nossa identidade nacional. Como ressaltou o ministro Cezar Peluso, com razão, à luz de nossas tradições históricas, no Brasil só há uma nacionalidade, a nacionalidade brasileira, que precede outras identidades. Aqui as diferenças étnicas, lingüísticas e culturais não têm nem a consistência nem os atributos de nacionalidades que, no abrigo desse conceito, possam invadir as atribuições do Estado. Nossa nacionalidade é a nacionalidade do Estado, fica claro agora.
Mais uma vez o assunto é Raposa Serra do Sol. Depois da incontestável vitória dos índios contra os arrozeiros (que já sabem que serão sumariamente expulsos da reserva) e, por tabela, contra todas as autoridades de Roraima, do governador aos deputados, vem à tona essa discussão absolutamente tola e sem sentido sobre as tais "18 condições" sugeridas pelo ministro Carlos Alberto Menezes Direito, em seu voto.
A principal condição _ a de que as Forças Armadas tenham livre acesso à reserva para instalar postos de fronteira e pelotões _ já está plenamente contemplada na Constituição e, na prática,nunca foi desrespeitada. O Exército tem pelotões de fronteira em diversas áreas indígenas e, como eu escrevi há alguns dias, só não tem mais por falta de infra-estrutura ou por incompetência. Jamais se ouviu falar que a Funai ou tribos indígenas tenham agido para impedir a livre circulação de soldados nos pelotões.
Surpreendente -esta é a palavra a ser aplicada a qualquer aspecto decisivo da confirmação, pelo Supremo Tribunal Federal, da reserva indígena Raposa/Serra do Sol em área contínua, e não dividida em espaços separados como reivindicaram os grandes fazendeiros da região e o governo de Roraima.
A suspensão do julgamento há quatro meses, a pedido do ministro Menezes Direito, quando havia apenas o parecer do relator Ayres Britto favorável à área contínua, difundiu temores de que o retardamento viesse a facilitar a reação ao parecer. O noticiário das duas últimas semanas reforçou os temores, com as reiteradas "antecipações" de que o STF imporia uma "solução intermediária", o que seria contrário à reserva contínua, como demarcada em 2005 no decreto de sua efetivação. Já com a retomada do julgamento começaram as surpresas.
A decisão pelo Supremo sobre a Raposa Serra do Sol enfrenta quatro condições: (1) assegurar a integridade territorial frente a ameaças externas nascidas de vulnerabilidade que a demarcação contínua cria; (2) assegurar a exploração sustentada de riquezas naturais; (3) proteger a biodiversidade e o equilíbrio ambiental; (4) preservar a cultura, a estrutura social e os mecanismos primários de subsistência de povos indígenas de acordo com regras criadas pela política indigenista nacional.
O conflito em torno da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol deveria ser um assunto superado desde que o presidente assinou a homologação em área contínua, conforme os estudos e procedimentos legais que normalizam as demarcações no Brasil. Mesmo assim, o STF acatou ação contestando o ato presidencial, o que desencadeou um debate nacional e internacional, mobilizando indígenas e todos aqueles que apóiam sua causa. Mobilizou também aqueles que desprezam a população indígena, aguçou o racismo e fez retornar o velho e desgastado ideário de que a presença indígena é estorvo ao desenvolvimento econômico. Acrescentou-se ao debate a ameaça à soberania porque a terra localiza-se em área de fronteira e, segundo os mais irados radicais, os indígenas poderiam formar uma nação independente, insurgente contra o Estado brasileiro.
A homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol, de forma contínua ou descontínua, coloca um problema de ordem cultural e histórica, que concerne ao processo de formação de nosso próprio país. Na verdade, duas abordagens se defrontam: a da demarcação contínua, procurando fechar esse território como nação, numa economia de auto-subsistência; e a da demarcação descontínua, mantendo o intercâmbio entre as populações indígena, mestiça e branca.
A primeira parte do pressuposto de que a política indigenista deveria consistir em manter os indígenas separados dos demais brasileiros, como se fosse possível voltar a um estágio pré-cabraliano de existência e imune à atração que o mundo civilizado exerce sobre eles. Segundo ela, os indígenas são brasileiros de segunda categoria, que deveriam ser mantidos sob tutela, como se fossem incapazes de decidir por si mesmos. Recusa, na verdade, toda a história brasileira de aculturação e de assimilação das tribos indígenas, em processos que remontam, conforme as tribos, ao século 17. É como se a história brasileira não devesse ter existido.
No dia 10/12, celebram-se os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Coincidência? No mesmo dia, haverá um julgamento no Supremo Tribunal Federal que poderá reverter os direitos dos índios brasileiros. E há outros aniversários significativos em jogo: os 20 anos de uma Constituição Federal que se quis mais fraterna e os 20 anos do assassinato de Chico Mendes, que mostrou a contribuição que as populações tradicionais podiam trazer a problemas ecológicos.
Em pauta está uma contestação por senadores e pelo Estado de Roraima da decisão do Executivo de homologar a demarcação contínua da uma área de Roraima habitada por cerca de 19 mil índios. Em jogo está não só essa área, mas um possível precedente que poderia permitir o esfacelamento de demarcações estabelecidas.
Os argumentos jurídicos pesam inequivocamente a favor de uma demarcação contínua. Um parecer circunstanciado do eminente constitucionalista José Afonso da Silva o confirma. Lembra ele a posição de João Mendes Jr., que demonstrou serem os direitos indígenas à terra anteriores a qualquer outro direito. Daí serem tais direitos dos índios descritos como originários no artigo 231 da Constituição Federal. Também ressalta ele que a continuidade das terras indígenas é condição necessária para que se cumpra o disposto nesse mesmo artigo, a saber, a possibilidade de os indígenas se reproduzirem não só física mas também culturalmente.
Antes de encerrar as atividades do Supremo Tribunal Federal no corrente ano, a questão relacionada com a controvérsia em torno da reserva Raposa Serra do Sol deve ter continuidade. No voto já proferido pelo relator da matéria, ministro Ayres de Brito, confirmou-se a procedência jurídica do ato demarcatório, o que significa dizer que os índios, até o presente momento, ganham a causa. Pelo referido voto, os limites e confrontações das terras da reserva estão preservados, procedidos que foram pela Fundação Nacional do Índio e sancionados por ato do governo federal. Aguarda-se, ainda, a tomada de votos dos outros 10 juízes componentes da Corte.
Os fazendeiros não costumam ocupar continuamente o espaço entre a casa da fazenda e as plantações ou pastagens. Se o Supremo Tribunal Federal considerar ocupação indígena apenas as partes das terras onde estão as aldeias ou plantações estará dando sinal verde para que o MST e outros movimentos ocupem as partes das fazendas sem ocupação efetiva. Evidentemente, os dirigentes desses movimentos e seus defensores estarão atentos durante a continuação do julgamento do pedido de desdemarcação da área indígena Raposa Serra do Sol. Como é do conhecimento público, iniciado o julgamento, o relator, ministro Carlos Ayres de Brito, fez minuciosa análise jurídica dos argumentos dos interessados na reabertura da demarcação já efetuada e proferiu um voto magistral, que ficará na história como um dos mais brilhantes proferidos no STF. Recuperando informações valiosas sobre a antiga presença indígena na região, que influiu muito para que aquela parte da Amazônia fosse reconhecida como território brasileiro, e demonstrando que os grupos indígenas tradicionalmente ocupantes daquela região sempre procuraram, como hoje, sua integração plena à sociedade brasileira, mantendo relacionamento pacífico e respeitoso com a população não-índia circundante. O voto do ministro Carlos Brito deixou mais do que evidente a inconsistência e até mesmo o ridículo da alegação de que o reconhecimento como território indígena poria em risco a soberania brasileira.