Ocupação contínua, direitos contínuos

Autor: 
Dalmo Dallari
Data de publicação: 
22/11/2008
Fonte: 
Jornal do Brasil

Os fazendeiros não costumam ocupar continuamente o espaço entre a casa da fazenda e as plantações ou pastagens. Se o Supremo Tribunal Federal considerar ocupação indígena apenas as partes das terras onde estão as aldeias ou plantações estará dando sinal verde para que o MST e outros movimentos ocupem as partes das fazendas sem ocupação efetiva. Evidentemente, os dirigentes desses movimentos e seus defensores estarão atentos durante a continuação do julgamento do pedido de desdemarcação da área indígena Raposa Serra do Sol. Como é do conhecimento público, iniciado o julgamento, o relator, ministro Carlos Ayres de Brito, fez minuciosa análise jurídica dos argumentos dos interessados na reabertura da demarcação já efetuada e proferiu um voto magistral, que ficará na história como um dos mais brilhantes proferidos no STF. Recuperando informações valiosas sobre a antiga presença indígena na região, que influiu muito para que aquela parte da Amazônia fosse reconhecida como território brasileiro, e demonstrando que os grupos indígenas tradicionalmente ocupantes daquela região sempre procuraram, como hoje, sua integração plena à sociedade brasileira, mantendo relacionamento pacífico e respeitoso com a população não-índia circundante. O voto do ministro Carlos Brito deixou mais do que evidente a inconsistência e até mesmo o ridículo da alegação de que o reconhecimento como território indígena poria em risco a soberania brasileira.

Do ponto de vista jurídico-constitucional não resta dúvida de que a demarcação já efetuada da terra indígena Raposa Serra do Sol é correta, baseada em dados concretos e absolutamente certos, apurados mediante levantamento de informações de fontes diversas. Mais ainda, as informações em que se baseou o voto do eminente ministro fundamentaram-se também na confirmação da ocupação indígena tradicional, feita com objetividade e precisão por laudos antropológicos elaborados por pesquisadores de indiscutível idoneidade, que, além disso, têm profundo conhecimento da história das comunidades indígenas da região e de seus costumes. Ficou absolutamente fora de dúvida que a ocupação indígena de toda a Raposa Serra do Sol é contínua e não de pequenas áreas. Na realidade, basta o bom senso para se concluir que não teria sentido a ocupação em ilhas, quando as etnias tradicionalmente instaladas na região têm a melhor convivência e utilizam, ao mesmo tempo, áreas situadas entre as aldeias para obtenção de alimentos e materiais necessários à construção de suas residências e à fabricação de seus utensílios, de suas vestimentas, ferramentas e armas, assim como para obtenção do material necessário aos seus rituais religiosos. Acrescente-se a ocupação necessária para a implantação dos túmulos dos antepassados, que segundo valores e costumes daqueles indígenas são sagrados e nunca seriam abandonados.

A ocupação contínua e tradicional de toda a área da Raposa Serra do Sol está absolutamente fora de dúvida. Para a solução jurídica e justa de qualquer dúvida, autêntica e de boa fé, que, por ignorância dos preceitos jurídicos, ainda pudesse existir, bastaria ler o que dispõe a Constituição no artigo 231: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Quanto ao sentido da ocupação indígena, é absolutamente esclarecedor o parágrafo primeiro do mesmo artigo: “São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seu usos, costumes e tradições”. Não existe a mínima possibilidade de dúvida quanto à ocupação tradicional e contínua da Raposa Serra do Sol, o que foi confirmado por processo regular de demarcação levado a efeito pela União, por seus órgãos próprios e competentes. Por tudo isso, o que se espera é que o STF, no desempenho de sua função precípua de guarda da Constituição, confirme a demarcação realizada com absoluta regularidade e indiscutível competência. A ocupação indígena é tradicional e contínua e, por isso, o direito dos índios, constitucionalmente assegurado, é também contínuo.

Dalmo Dallari, professor e jurista

Jornal do Brasil, 22/11/2008.