A nova nacionalidade brasileira

Autor: 
José de Souza Martins
Data de publicação: 
14/12/2008
Fonte: 
OESP

A votação ainda em andamento no STF, mas já decidida, quanto à forma da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, se contínua ou em ilhas territoriais, muda conceitos, altera tendências históricas e cria um problema muito maior, ainda que diferente, do que o que motivou o processo. É que há implicações laterais na decisão que está sendo tomada pelos ministros que nos obrigam a repensar até mesmo nossa identidade nacional. Como ressaltou o ministro Cezar Peluso, com razão, à luz de nossas tradições históricas, no Brasil só há uma nacionalidade, a nacionalidade brasileira, que precede outras identidades. Aqui as diferenças étnicas, lingüísticas e culturais não têm nem a consistência nem os atributos de nacionalidades que, no abrigo desse conceito, possam invadir as atribuições do Estado. Nossa nacionalidade é a nacionalidade do Estado, fica claro agora.

Basicamente, os juízes do Supremo estão tendo em conta que um dos fatos em jogo no presente julgamento é o de que o tratamento que uma declaração das Nações Unidas vem sugerindo a nativos e minorias étnicas, em todo o mundo, pode implicar o reconhecimento de identidades regionais, étnicas ou tribais como nacionalidades. Nesse tratamento poderiam constituir germes de reivindicações nacionais em conflito com a afirmação da nacionalidade. A preocupação não é descabida. Desde os anos 70, o tratamento de povos indígenas vem sendo dado aos diferentes grupos indígenas brasileiros por entidades religiosas e organizações não-governamentais, que têm sido os mais importantes e ativos grupos de mediação entre índios considerados imaturos, e como tais tratados, e o Estado que legalmente os tutela. Não fossem muitas delas, aliás, o extermínio de povos inteiros a partir da expansão da fronteira, com a ocupação territorial dos anos 70, teria sido mais trágico do que foi. Nessa concepção há, sem dúvida, uma difusa tese de nacionalidade política, mesmo que não intencional.

A terra está nas raízes desses dilemas. Desde nossa primeira Constituição republicana, o governo da União, ao transferir o domínio das terras devolutas aos Estados da Federação, na prática abriu mão do território em favor do repasse dessas terras aos particulares. Foi a moeda de troca do clientelismo político da República Velha. As terras indígenas ficaram à mercê do risco da privatização, até pelo esvaziamento genocida de territórios indígenas, de que é possível fazer extensa lista de casos.

No movimento da União para restituir ao Estado nacional o domínio sobre o território, em questões substantivas como a dos povos nativos, a do controle das riquezas nacionais e a da segurança nacional, a colocação dos índios sob tutela do governo federal e o reconhecimento do seu direito imemorial às terras que ocupam foi dos mais importantes capítulos da história da reparação do grave erro da perda absoluta do domínio sobre o território, pelo Estado nacional, decorrente da Lei de Terras de 1850. Litígios como o agora apreciado pelo STF decorrem do conflito entre a privatização das terras na propriedade absoluta instituída por aquela lei do Império e os esforços da União para consertar o erro cometido e restituir ao Estado a base territorial de sua soberania. Na mesma linha de recuperação de domínio vão as leis fundiárias do regime militar e a política de reforma agrária que sobrepôs os interesses nacionais ao direito de propriedade.

No caso presente, o Supremo reforça o princípio essencial desse movimento que restitui à União o domínio sobre os territórios ocupados pelas populações indígenas. Diferente do que supõem vários dos ministros que já se pronunciaram, não se trata propriamente de um reparo a uma injustiça histórica contra as nossas populações nativas. A injustiça não está apenas na sua privação dos respectivos territórios, o que já ocorreu irremediavelmente em larga extensão. As terras ora cogitadas são residuais de extenso esbulho. A injustiça está sobretudo nas circunstâncias do contato entre brancos e índios, de que a terra é um componente decisivo, mas não único. Nesse sentido, a decisão que está sendo tomada, sobretudo as 18 condições que o ministro Menezes Direito estabeleceu para o reconhecimento do princípio da reserva territorial contínua, longe de dar à decisão do Supremo o caráter de uma vitória dos índios, representa de fato uma derrota das populações indígenas. Elas ganham o território, mas ficam expostas aos riscos culturais do contato compulsório dos executores das políticas decorrentes das razões de Estado.

Se, como argumenta o ministro Peluso, somos uma só nacionalidade, as 18 condições do ministro Menezes Direito não incluem nenhuma consideração sobre a pluralidade cultural, aí incluída a lingüística, do povo brasileiro. Diferença que não afeta nossa nacionalidade, apenas a enriquece. Nesse sentido, ao estabelecerem condições para os índios, não estabelecem nenhuma condição para o poder público e seus agentes no trânsito e ocupação de áreas do território indígena. Ao negar aos índios qualquer forma de soberania territorial, ainda que parcial, nega-lhes também o direito de exigirem, no exercício dos privilégios legais agora concedidos ou reconhecidos ao Estado, a aculturação parcial inversa, na perspectiva dos índios, uma certa indianização, desses ocupantes consentidos e mesmo temporários, como os militares. Para que, no devido e prévio conhecimento das culturas e dos costumes indígenas, não se tornem agentes de uma violência até mais grave do que a invasão de suas terras pelos arrozeiros e seus empregados. Temos trágica história de violência já apontada por Darcy Ribeiro, de que os agentes de contato com as populações indígenas não são os melhores representantes da civilização. Tem sido comum, na frente de expansão e do contato com essas populações, que os agentes da sociedade branca as considerem preferentemente animais do que humanos, sentido que tem, aliás, no sertão, a palavra caboclo.

José de Souza Martins, professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP

OESP, 14/12/2008, Aliás, p. J6