Relator do processo sobre a reserva Raposa Serra do Sol, ministro diz ter enfrentado o próprio preconceito
O julgamento sobre a demarcação da Raposa Serra do Sol foi bastante polêmico. O senhor já tinha um posicionamento antes de ser relator?
Não, vou contar a pura verdade. Quando eu comecei com meu voto, a minha cabeça era "de branco". Então, já fui dizendo aquilo mesmo: "Como é que se reserva tanta terra para índio?"; ou então: "Os índios fazem parte de uma cultura primitiva e os não índios de uma cultura evoluída". Comecei assim, me pegando preconceituoso. Às vezes a gente pensa que não tem preconceito, mas tem. Está lá no fundo da gente. A minha cultura me impunha esse condicionamento, de ver os índios como seres inferiores, à espera de tutela, como se fossem incapazes. Mas à medida que eu ia lendo a Constituição, palavra por palavra, termo por termo, expressão por expressão, eu, que tinha a obrigação de ser um militante da Constituição, fui percebendo que o capítulo versante sobre os índios foi feito por antropólogos e indigenistas de grande conhecimento. A Constituição é um sonoro não a essa cultura do branco. O que ela diz é que há duas civilizações. A do branco e a do índio. Há duas dignidades.
Em entrevista, Ana Paula Caldeira Souto Maior, advogada do Instituto Socioambiental (ISA), falou não só sobre as consequências do julgamento na terra indígena Raposa Serra do Sol, como também analisou quais podem ser os impactos da decisão sobre outros processos de demarcação de Tis, além de abordar as necessidades e direitos dos povos indígenas.
Qual a sua opinião sobre o julgamento do STF realizado na semana passada?
Foi um resultado bem positivo para a Raposa Serra do Sol, porque reconheceu que a demarcação foi feita com base em um procedimento administrativo legítimo, que não houve nenhum vício que maculasse esse processo. Reconheceu que é possível demarcar Terra indígena em faixa de fronteira, mostrou que a forma de demarcar TI, realizada pela Funai [Fundação Nacional do Índio], implica na demarcação ou no reconhecimento integral das terras ou do direito dos índios à terra e não um reconhecimento parcial como era postulado pelo Estado de Roraima. Todas essas questões foram discutidas no bojo do processo.
Outra questão suscitada foi com relação ao Estado que tenha uma parte significativa de seu território ocupado por terras indígenas - e essas terras pertencem à União - se essas terras não comprometeriam a existência do Estado, causando um conflito federativo. E foi estabelecido que não, que mesmo tendo parte significativa de seu território ocupado por populações indígenas - e neste caso o Estado de Roraima é um Estado excepcional, porque é o Estado que tem a maior parte de território físico ocupado por populações indígenas, cerca de 45% - a ocupação dos índios em seu território não compromete a existência do Estado, nem tampouco o seu desenvolvimento econômico.
Na verdade as populações indígenas têm que participar do desenvolvimento do Estado, que deve ser pensado a partir da sua realidade, no caso a existência dessas populações. Então esses fatos são muito importantes e eles valem não só para a demarcação da Raposa Serra do Sol, mas para todas as terras indígenas que foram demarcadas de acordo com o artigo 231, da Constituição Federal.
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Qual a avaliação que o senhor faz do resultado do julgamento?
O núcleo da decisão foi o de que o procedimento demarcatório da Raposa-Serra do Sol foi todo ele jurídico, obedeceu rigorosamente aos parâmetros legais e constitucionais. Conforme, aliás, o meu voto proferido em agosto. Agora, essa decisão tem dois desdobramentos muito importantes. Em primeiro lugar, o de que o formato é mesmo o contínuo, e não o fragmentado, tipo "queijo suíço", em que os índios ficam com os buracos e os não-índios ficam com o queijo propriamente dito. O segundo desdobramento é que as terras constitutivas da reserva são totalmente indígenas, ali não há terras devolutas, que seriam do estado de Roraima, nem terras particulares, que seriam dos fazendeiros. Na verdade, o que decidimos foi isso. O ministro Carlos Alberto Direito propôs, porém, e foram aprovadas, condições para operacionalizar a decisão. Das dezoito condições propostas, umas quinze eram fundamentos do meu voto. Ele trouxe umas três novas, como a proibição de ampliar a área demarcada, que eu só aceito no caso da Raposa-Serra do Sol, mas não em toda demarcação, aí não vou concordar. Fala-se muito em demarcações anteriores em desconformidade com o modelo constitucional, em "ilhas", que, como sabemos, termina-se matando os índios de fome.
Não importa se a terra é ocupada por índios ou por fazendeiros: toda a faixa de fronteira da Amazônia brasileira é vulnerável. A análise é da coordenadora do curso de relações internacionais da Universidade Federal de Roraima, Marcelle Ivie da Costa Silva, que pesquisa as questões de segurança nas fronteiras brasileiras e está concluindo doutorado em ciência política pela Unicamp com a tese "Raposa/Serra do Sol: agentes políticos, conflitos e interesses internacionais na Amazônia brasileira". Ela diz que há "maniqueísmo" nas análises sobre a disputa na Raposa e que a Polícia Federal e a Funai não têm condições de saber se não-índios entram em áreas indígenas.
Folha - Como vigiar uma área de 1,7 milhão de hectares, em região de fronteira?
Marcelle Ivie da Costa Silva - Não é possível vigiar a Amazônia. É um problema geral, não uma questão dessa reserva. O fato de ser faixa de fronteira não vejo como sendo uma ameaça especial. É uma ameaça presente em outras faixas de fronteira, sendo área indígena ou não. Existe legislação específica que prevê a entrada das Forças Armadas em caso de ameaça.
A gente não pode esquecer que a terra indígena Ianomâmi [na fronteira com a Venezuela] é mais extensa que a Raposa. As políticas públicas são feitas para a Amazônia, mas há várias amazônias. Dependendo do local, há particularidades que não são levadas em conta. Falta sentar com essas comunidades, ouvir o que precisam. Não basta demarcar e não dar condição para as populações se estabelecerem com qualidade de vida.
O antropólogo Paulo Santilli, afirma que o entendimento do STF sobre a Raposa/Serra do Sol consagra a política indigenista desenvolvida pela Funai há décadas. Coordenador de Identificação e Delimitação do órgão, ele diz que essa linha do Supremo "vira" uma página no processo de reconhecimento dos "direitos territoriais indígenas".
Folha - Mesmo com as 18 ressalvas feitas, o indicativo do STF é uma vitória para a política indigenista da Funai?
Paulo Santilli - Consolida um longo processo de regularização fundiária que vem sendo desenvolvida há décadas.
O sertanista Sydney Possuelo, ex-presidente da Funai, é uma voz dissonante entre os indigenistas que comemoraram a decisão do Supremo Tribunal Federal em favor da demarcação contínua da reserva Raposa Serra do Sol, o que deve provocar a retirada dos arrozeiros da região.
"Não foi uma vitória", disse Possuelo, indignado com as ressalvas feitas pelo ministro Carlos Alberto Direito, acolhidas pela maioria de seus colegas. O voto de Direito estabeleceu, por exemplo, que a construção de bases militares e estradas em reservas pode ser feita sem consulta prévia às comunidades e à Fundação Nacional do Índio (Funai).
Nesta entrevista, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, fala da agenda do STF, repleta de casos polêmicos, um dos quais está em andamento, a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol.
Há uma agenda polêmica no Supremo. Um dos temas é a demarcação das terras indígenas, com o caso Raposa Serra do Sol. O que há de novo nesse julgamento?
Existe o aspecto sensível da área cultivada da reserva. Mas também há os critérios de demarcação. Qual deveria ser o procedimento tendo em vista as questões que foram levantadas aqui, mas que se projetam sobre os casos que estão em andamento e até sobre as demarcações futuras? Nós tivemos um pouco essa resposta no voto proferido pelo ministro Carlos Alberto Direito, que já foi seguido até mesmo pelo relator, ministro Ayres Brito, e também por outros ministros. Então, nós temos essa orientação no sentido de que o estado e o município têm que participar desse processo, se eles estiverem entre as áreas afetadas e também as pessoas que forem afetadas devem participar dessas comissões. Elas devem ter algum tipo de representação. As áreas que já foram demarcadas não devem ser "redemarcadas". Porque nós temos esse processo contínuo no Brasil de a toda hora se retomar o processo de demarcação. Também se definiu o que as Forças Armadas podem ou não podem fazer nas áreas de fronteira. Elas não são submetidas à Funai, nem à vontade da comunidade indígena. E, no caso de dupla afetação de área ambiental e área indígena, preside a da área ambiental. Aquela declaração da ONU, tal como ela está - pelo menos na língua portuguesa, porque houve muita discussão sobre o significado dos termos em língua francesa, inglesa ou portuguesa-, não dá autonomia aos índios. Aquela declaração não nos afeta.
A decisão já tomada pela maioria do Supremo Tribunal Federal (STF) é vista pelo presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Márcio Meira, como o reconhecimento da política de demarcação contínua das terras indígenas. Ele contesta, no entanto, as críticas feita por ministros de que o órgão tem superpoderes.
A Funai vai rever sua política de demarcações?
Não. A Funai continuará demarcando as terras que forem adequadas e necessárias à sobrevivência física e cultural dos índios. A Funai conseguiu fazer, nos últimos anos, as demarcações como devem ser, identificando o tamanho da terra indígena que é necessária para a sobrevivência física e cultural dos índios. É o que determina a Constituição.
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No próximo dia 10, o STF vai decidir se a demarcação da Raposa Serra do Sol deverá ser feita em faixa contínua ou não. Qual a importância dessa decisão?
A bem dizer, a demarcação, que demorou quase 30 anos, já foi concluída. E em 2005, homologada pelo Executivo, a quem cabe fazê-lo por meio de seus órgãos técnicos. Todos os passos legais foram observados - inclusive o chamado direito ao contraditório. A partir do final dos anos 70, quando começou o processo de demarcação, garimpeiros e fazendeiros invasores de boa fé saíram da Raposa. Foram em parte substituídos por arrozeiros no início dos anos 90, que não tinham como ignorar que estavam ocupando ilegalmente áreas indígenas. Só que, mais poderosos, preferiram criar uma situação de fato. Imagens de satélite mostram que, em 1992, as plantações de arroz ocupavam cerca de 2 mil hectares, passando para 15 mil em 2005, ano da homologação pelo presidente da República. Ou seja, eles expandiram a área de cultivo sabendo tratar-se de terras indígenas. E promoveram há alguns meses verdadeira insurreição na área, com bloqueios de estradas e um clima de desrespeito ao Estado de Direito.
Defensora da demarcação contínua diz que, se STF mantiver arrozeiros em reserva, indicará ao País que avaliza invasões
A advogada especializada em direito socioambiental Ana Valéria Araújo apóia a manutenção da demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol de forma contínua. Para a secretária-executiva do Fundo Brasil de Direitos Humanos, "os interesses contrários não vão desistir facilmente", mas ela adverte: "Negociar qualquer direito dos índios é inconstitucional."