Excelentíssimos senhores Ministros, nós como comunidades indígenas do Barro, Maturuca, Jacarezinho, Tamanduá, estamos esperando que esse julgamento bote um ponto final em toda violência que os povos indígenas da Raposa Serra do Sol têm vivido pela disputa sobre suas terras. Esperamos que nossos valores espirituais, nossos valores culturais sejam considerados na aplicação dos artigos da nossa Constituição Federal de 1988. Eu quero agradecer a oportunidade que as comunidades indígenas estão tendo de falar aqui através de mim, que sou Wapichana e originária dessa Terra [Raposa Serra do Sol], para lembrá-los um pouco de todo esse processo de demarcação e da importância em manter a demarcação em terras contínuas.
Há mais de 30 anos estamos esperando que o processo de regularização fundiária de nossa terra seja concluído. Durante esses 30 anos, tivemos 21 lideranças indígenas assassinadas, várias casas queimadas, muitas ameaças feitas e registradas na Polícia Federal. Somos acusados de ladrões e invasores dentro de nossa própria terra! Somos caluniados e discriminados. Isso tem que ter um fim! Cabe ao Supremo Tribunal Federal , a essa Corte, definitivamente aplicar o que nós já vimos há muito tempo falando, que as terras tradicionais indígenas vão além da própria casa. Muitas pessoas não sabem que as casas indígenas não se resumem apenas nas moradias, mas incluem os lugares onde se pesca, caça, caminha, onde se mantêm os locais sagrados, a espiritualidade, a nossa cultura. Estes são pontos fundamentais para que nós tenhamos garantida a nossa importância, da nossa terra, não só para agora, mas para amanhã também. Nós queremos isso!
Estamos vivendo um importante momento histórico hoje no Brasil. A Terra Indígena Raposa Serra do Sol, como um caso emblemático em todo território nacional, representa a voz dos povos indígenas e também a possibilidade de vermos aplicado o que já foi garantido há 20 anos - nossos direitos originários, nosso direito a imprescritibilidade do direito a terra, direito de viver conforme nossos usos, costumes, tradições. Quem define a terra indígena são os próprios povos indígenas. Eu quero lembrar aqui, senhores Ministros, que o que está em jogo são os quinhentos anos de colonização!
Nós temos e desenvolvemos nossa economia e isso sequer é contabilizado pelo Estado de Roraima, que não fala da economia que circula dentro da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Nós somos os maiores criadores de gado e é esta atividade produtiva que alimenta as comunidades indígenas da região. Nós temos nossos profissionais que estão trabalhando pela gestão da terra, por isso, queremos avançar esta fase. Nós temos uma economia, que circula anualmente na Terra Indígena, de mais de 14 milhões de reais. Também contribuímos com o mercado de Boa Vista, mas até hoje não se tem um estudo sobre o montante dessa contribuição. Em nossa área, temos mais de 300 escolas indígenas e mais de 5.600 alunos e 485 professores.
Queremos lembrar aqui, também, que já passamos por esta fase que estamos passando hoje. Já passamos por vários julgamentos que, embasados em laudos antropológicos, chegaram a conclusão que a Raposa Serra do Sol, sem dúvida nenhuma, é um território tradicional indígena.
Em 1977, quando se iniciou o processo de demarcação da Terra Indígena, vivíamos um grande conflito na região, pois muitas áreas foram invadidas e as comunidades indígenas que ali viviam foram expulsas. Não foram os indígenas que colocaram cercas, e sim as pessoas que sempre quiseram explorar a Terra Indígena, causando impactos à nossa cultura, à nossa sociedade e acabando com a nossa terra também. Em de maio deste ano (2008), o IBAMA apresentou uma multa de mais de 30 milhões pelos impactos ambientais que os arrozeiros - que estão instalados na Terra Indígena - causaram a nossa terra. E isso somente em uma das ocupações. Hoje são seis ocupantes, rizicultores, sendo que cinco deles têm plantações de arroz também fora da Terra Indígena.
Agora, por que só os povos indígenas podem ser sacrificados? Por que só nós temos que ter a nossa própria terra retalhada? Nós ouvimos falar durante este tempo todo sobre ações no Supremo, muitas calúnias, muita discriminação. A questão da ameaça a soberania, isso dói muito! Dói porque nós ouvimos nossas histórias, contadas por nossos avôs, que carregaram nas costas os marcos para definir o território brasileiro. Dói porque ali Marechal Rondon entregou a espada e disse “vocês são cidadãos brasileiros natos, brasileiros originários”. Fomos nós, na definição do território brasileiro, que afirmamos que aquela região pertencia ao Brasil e que nós somos povos indígenas do Brasil.
Eu gostaria de lembrar também o que foi dito com relação à Declaração da ONU, que é uma declaração que não é vinculante, mas que pelos próprios artigos da declaração já diz claro que não foi somente o Brasil que assinou, mas 143 países assinaram este instrumento internacional, como carta de intenção, e que diz claro que não pode ser usado para tornar os povos indígenas como povos independentes. Mas essa argumentação de ameaça a soberania sempre está em pauta! Nós ouvimos falar nisso todos os dias, nos jornais, em Roraima, nas mídias. Sempre se tenta empurrar essa argumentação como impedimento a demarcação contínua da Terra, mas na verdade, são os interesses particulares ou parciais do estado de Roraima e de outros - como o próprio autor, que é Senador Augusto Botelho do PT de RR – que estão por trás disso.
A gente está aqui com a legitimidade dos povos indígenas Ingarikó, Wapichana, Macuxi, Taurepang e Patamona, que confiaram em mim como advogada indígena, justamente para poder trazer aqui um pouco do nosso sentimento, um pouco da nossa realidade. Nós estamos esperando uma decisão, mas muitas comunidades indígenas de Roraima nos perguntam: “o que nós cometemos de errado para sermos julgados hoje? Qual foi o crime que nós praticamos para ter a possibilidade da nossa terra ser retalhada?”.
Eu queria concluir, falando um pouquinho da história dos próprios votos que já foram feitos aqui. Eu queria ler um pouquinho o voto no Recurso Extraordinário 44.585, do voto do Ministro Victor Nunes Leal, que afirma assim: “Aqui não se trata do direito de propriedade comum, não está em jogo um conceito de posse, nem de domínio no sentido civilista dos vocábulos. Trata-se do hábitat de um povo. Se a área foi reduzida por lei posterior e se o Estado a diminuiu em dez mil hectares, amanhã reduziria em outros dez, depois mais dez e poderia acabar confinando os índios em um pequeno trato, até o terreiro da aldeia. Nós não queremos que isso aconteça! Eu volto a afirmar, já nos tiraram a sede do município de Normandia, já tiraram um pedaço, no julgamento de 2005, da sede do município de Uiramutã. Estão nos tirando pedaços e mais pedaços. E amanhã como ficará isso?
Editado a partir do depoimento concedido em 27/08/2008, durante o julgamento da Ação Popular que contesta a demarcação contínua da TI Raposa Serra do Sol