Raposa-Serra do Sol é divisor de águas na política indigenista

Autor: 
Flávia Dourado
Data de publicação: 
08/05/2008
Fonte: 
Com Ciência

Há quase 3 décadas, o processo de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (Tirss) – localizada em Roraima, na fronteira do Brasil com a Guiana e Venezuela – mobiliza índios, forças armadas, o governo do estado, arrozeiros, ocupantes não-índios e o governo federal. Em abril de 2005, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva homologou a demarcação contínua da Tirss e estabeleceu o prazo de um ano para a retirada dos ocupantes não-índios. Entretanto, os não-índios, sobretudo seis arrozeiros, ainda estão nas terras. Os opositores à demarcação contínua – o governo de Roraima, agricultores, entre outros – resistem à desocupação e defendem a demarcação da Tirss em ilhas, conservando, por exemplo, a ocupação não-indígena sobre áreas de cultivo.

O pesquisador em etnoecologia do Instituto de Pesquisa da Amazônia (Inpa), Vincenzo Lauriola, ressalta que a demarcação contínua da Tirss representa um modelo importante de gestão sócio-ambiental e de desenvolvimento sustentável, por ser inteiramente delimitado por fronteiras naturais. “Na sua luta pela área única ‘de rio a rio’, os índios demonstram sabedoria ambiental, buscando indiretamente evitar problemas que afetam outras áreas indígenas, como o Parque Indígena do Xingu, cujas condições ambientais são gravemente ameaçadas pelo desmatamento provocado pela expansão das monoculturas e da pecuária nas nascentes dos rios que o atravessam, devido ao fato que ficaram fora da área demarcada”.

O pesquisador destaca, ainda, o valor simbólico da demarcação contínua da Tirss, justamente por ela ficar no estado brasileiro de ocupação não-indígena mais recente e menos povoado, “ou seja, onde os fatores históricos e demográficos deveriam definir as premissas mais favoráveis ao reconhecimento dos direitos territoriais indígenas”. Para ele, a decisão em torno da demarcação da Tirss representa um divisor de águas fundamental para os rumos futuros das políticas de respeito e promoção dos direitos das minorias. “O êxito final da ‘saga’ da Raposa Serra do Sol vai nos dizer se os demais povos indígenas do Brasil que aguardam seus direitos serem reconhecidos ainda podem ter esperança de obtê-los, ou se, mesmo aqueles que já têm suas terras demarcadas, precisam se preocupar com ameaças de futuras revisões e reduções”.

De acordo com a advogada do Instituto Socioambiental (ISA), Ana Paula S. Maior, ceder a esse tipo de pressão seria um retrocesso. A advogada conta que após a identificação da Raposa Serra do Sol, concluída em 1992, houve três meses para que pessoas interessadas contestassem a delimitação. “Questões relativas à soberania nacional, à integridade territorial de Roraima e à ocupação dos arrozeiros já foram amplamente discutidas no bojo desse processo. São preocupações plenamente superadas”.

Identidade étnico-cultural
Os defensores dos direitos indígenas argumentam que a demarcação contínua também é importante do ponto de vista étnico-cultural. Ana Paula Maior ressalta que os índios precisam de um território mínimo para garantir sua sobrevivência física e cultural, que inclui áreas de plantio, caça e pesca, além daquelas que servem de referência cultural, como cemitérios e locais sagrados. “Isso cria uma unidade territorial e viabiliza a manutenção da identidade indígena”. Para Lauriola, demarcar as terras sem incorporar os espaços indispensáveis aos povos indígenas “significaria condenar não apenas as identidades socioculturais à extinção, mas também os indivíduos, configurando-se a perspectiva de verdadeiros etnocídios”.

O pesquisador cita o exemplo dos Guarani, no Mato Grosso do Sul, que tiveram as terras demarcadas em ilhas, em meio a áreas de cultivo agrícola. O resultado dessa negação à unidade territorial, de acordo com ele, é a desestruturação dos mecanismos culturais tradicionais, que têm levado a altas taxas de suicídios coletivos, alcoolismo, desnutrição infantil e violência entre os índios.

Direitos indígenas
A demarcação de terras indígenas é prevista no artigo 231 da Constituição, que reconhece o direito originário dos índios ao usufruto exclusivo dos recursos naturais dos territórios tradicionalmente ocupadas por eles e necessários para sua manutenção física, social e cultural. A lei não concede, portanto, a propriedade das terras – que continuam pertecendo à União – mas o usufruto de suas riquezas, exceto as presentes no subsolo.
A Declaração dos Povos Indígenas da ONU, documento assinado por 143 países, inclusive o Brasil, em 2007, resguarda os direitos dos índios, como à propriedade de suas terras, ao acesso aos recursos naturais de seus territórios, à autodeterminação e à preservação de sua identidade cultural e dos seus conhecimentos tradicionais.

De acordo com o antropólogo e ex-membro da Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Henyo Trindande Barreto B. Filho, acordos internacionais como esse mostram que assegurar os direitos dos índios não é uma invenção nem uma pretensão exclusivamente brasileira. “Essa é uma tendência global. Quem estiver contra isso vai ser atropelado pela história”.

Com Ciência, 08/05/2008.