Embora menos do que no Peru, no Equador e na Bolívia, países de grande participação indígena na população, as tensões da questão indígena estão crescendo a um nível preocupante no Brasil, onde pessoas e entidades públicas e não-governamentais, religiosas e seculares, nacionais e estrangeiras, de intenções nem sempre claramente expostas, cultivam um estranho sentimento que distingue os cidadãos brasileiros de etnia indígena dos demais cidadãos, na contramão da lógica que sugere a integração.
Nesse quadro étnico-ideológico e ao amparo de preceito constitucional incoerente com a realidade - preceito pretendido como reparação pautada no devaneio de que a História poderia ter sido diferente -, nossas áreas indígenas vêm sendo demarcadas à revelia da verdade demográfica e dos graus de aculturação, que sugerem soluções diferentes. Reside aí um tópico crítico da questão: aos índios ainda primitivos é razoável procurar assegurar área compatível com seu número, necessária à sobrevivência nômade, à custa da natureza, simultaneamente propiciando-lhes criterioso estímulo à integração - inexorável no maior prazo, como sempre ocorreu nos confrontos históricos entre níveis de civilização muito distintos. Quanto aos aculturados, cidadãos brasileiros de etnia indígena mais tendentes aos confortos e benefícios da civilização do que aos hábitos do passado primitivo, não há sentido em diferenciá-los radicalmente dos demais cidadãos brasileiros rurais.
É bem verdade que, mesmo quando aculturados e integrados, esses índios conservam alguns resíduos - em natural declínio - da cultura tradicional, para cujas práticas lhes devem ser proporcionadas as condições adequadas, mas tais resíduos já não incluem o nomadismo e a sobrevivência propiciada pela natureza, exigentes de grandes áreas. Ressalte-se: condições adequadas aos resíduos culturais autênticos, não aos usados artificialmente, sobretudo para a TV, emblematicamente refletidos neste fato cômico e ridículo: um chefe de aldeia integrada chega a ela dirigindo caminhonete, vê a equipe da televisão, entra em casa correndo e dela sai usando o cocar, sempre à mão para a TV...
O trato realista da questão indígena, à margem da fantasia bem-intencionada, mas também de interesses de duvidosa virtude, passa pelo respeito a esta idéia praticada e/ou expressa por brasileiros de elevada estatura cidadã, de Rondon, há cem anos, ao professor Helio Jaguaribe, recentemente: sua solução definitiva ocorrerá com a integração dos índios à vida nacional solidária, que os transforme em cidadãos usufrutuários tanto dos direitos e vantagens da cidadania, como de seus deveres. Os que divergem desse processo racional, a título de defesa dos índios, acabam contribuindo para manter os índios já aculturados na condição de dependentes do assistencialismo público, protegidos das injunções da lei brasileira, mas dela usufrutuários quando em seu apoio, sujeitos à sedução de interesses nacionais delituosos (o extrativismo predatório, por exemplo) e internacionais, que justificam cuidados. Eles seriam mais úteis a seus supostos defendidos se os ajudassem na integração socioeconomicamente correta e protegida dos desvios menos éticos da civilização. Imaginemos quão positivo seria para esses índios ter a Funai empenhada na transformação de áreas indígenas sensatamente dimensionadas em assentamentos rurais organizados, intermediando o apoio de versões do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), de assistência técnica ajustada aos cuidados ambientais, de cooperativismo rural e de programas de saúde e educação - tudo adaptado às suas várias circunstâncias!
Para finalizar, um complemento sobre um aspecto da questão indígena que conecta a política com a socioeconomia, presente na demarcação da área ianomâmi e que volta a emitir fortes sinais de vida no problema Raposa Serra do Sol, diferente do ianomâmi porque ocorre em região integrada à socioeconomia regional e envolve índios aculturados. A associação das áreas indígenas com o sentimento de distinção 'índios/não-índios', exacerbado em anos recentes, é vulnerável ao vírus do preceito autonomista da Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, da ONU, ainda não ratificada pelo Brasil (o controle rotineiro de estrada, praticado em área indígena de Roraima, uma usurpação de direito exclusivo do Estado, sugere já ser conveniente algum cuidado a esse respeito...). Como evoluirá isso no século 21, permeado pela intrusão internacional em temas como meio ambiente e direitos humanos, este susceptível de extensão aos reais ou supostos direitos de etnias indígenas? Por ora o problema é administrável, mas a possibilidade de contenciosos capazes de, mais dia, menos dia, justificar preocupações de segurança recomenda prudência. Sobretudo nas demarcações sob circunstâncias geopolíticas que a aconselhem claramente, como é o caso das fronteiras, onde as demarcações não são inviáveis, mas exigem critério e cuidado especiais.
O fato é que, volta e meia, afloram no mundo, e mesmo aqui, sintomas de tendência à internacionalização da questão indígena, como sugerem simbolicamente estas duas manifestações. Há cerca de dez anos, em seminário em São Paulo um europeu declarou: 'Eu reúno numa cidade européia mil pessoas pela causa de dez índios, mas não reúno dez pela de mil caboclos.' E a idéia, já aventada por intérpretes dos interesses dos índios, de fazê-los recorrer à ONU ou à OEA caso o encaminhamento do imbróglio em Roraima não responda ao que eles preconizam!
É curiosa esta contraditória tendência: a menção a qualquer ingerência estrangeira na questão ambiental, de reflexos internacionais por vezes irrefutáveis, desperta arroubos de soberania nacionalista, mas somos complacentes com as manifestações intrusivas na inserção de nossos cidadãos brasileiros de etnia indígena na Nação brasileira, a que eles pertencem!
Mario César Flores é almirante-de-esquadra (reformado)
OESP, 09/05/2008, Espaço Aberto, p. A2.