Nos últimos dias, o Brasil urbano dos jornais e da televisão foi invadido por duas cidades de nome esquisito: Anapu, no Pará, e Pacaraima, em Roraima. A primeira foi o cenário da absolvição do fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, acusado de ser o mandante do assassinato da religiosa americana Dorothy Stang.
A segunda é o epicentro da guerra entre fazendeiros e índios pela exploração da reserva Raposa Serra do Sol. As notícias que chegam de lá têm ecos de coisa antiga, de velho oeste americano. Mas são história de um Brasil arcaico, que teima em sobreviver na região de maior importância estratégica do país, a Amazônia.
As histórias de Anapu e Pacaraima têm em comum a luta pela posse das terras. Rica, imensa e ainda pouco explorada, a Amazônia vive conflitos que no restante do Brasil foram decididos há décadas. Infelizmente, em muitos casos, vale a lei da força.
Dorothy Stang foi morta em meio a uma dessas disputas.
Ela lutou para estabelecer o Projeto de Desenvolvimento Sustentável Nova Esperança, a 56km de Anapu. O projeto prevê o assentamento de dezenas de famílias de pequenos agricultores. Eles disputam a posse da terra com grandes fazendeiros, dos quais Bida era o líder. Só depois do assassinato da religiosa e da repercussão internacional que ele provocou, o governo deu a vitória aos moradores do projeto. Uma extensa reportagem de João Carlos Magalhães na Folha de S. Paulo de ontem mostra que os pequenos agricultores voltaram a ter medo, depois da absolvição de Bida. Acham que a sentença pode ser a senha para que os fazendeiros tentem retomar as terras.
A absolvição foi uma notícia assustadora para outro grupo, o dos religiosos e sindicalistas que vivem sob ameaça de morte no Pará. A lista tem 99 nomes, dos quais apenas nove estão sob proteção policial. Entre eles, o bispo do Xingu, dom Erwin Kräutler. Eles fazem parte de um programa de proteção aos defensores de direitos humanos, criado pela Defensoria Pública Estadual no Pará. Apesar das regras de autopreservação e da presença constante dos policiais, eles sabem que a única forma de garantir efetivamente suas vidas é se a Justiça avançar e garantir a punição de que está por trás dos crimes de mando. A absolvição de Bida, apesar das evidências de sua participação no crime, inclusive o depoimento do pistoleiro, pode ser a senha para novos assassinatos.
O repórter Leonel Rocha, do Correio, traçou nos últimos dias um retrato impressionante da guerra de Roraima. Um estado tão esquecido pelo poder central, que é o único canto do Brasil onde o presidente Luiz Inácio Lula da Silva nunca pôs os pés em suas andanças ao longo dos primeiros seis anos de mandato. Quase um não estado, com sua área retalhada entre reservas indígenas, áreas de preservação ambiental e outros protetorados federais. Uma área de fronteira, estratégica e ao mesmo tempo relegada a um segundo plano que nem a distância explica.
O caso de Roraima lembra ainda mais o cenário dos velhos filmes de faroeste. Índios de um lado, fazendeiros de outro e um exército que não disfarça o lado de sua simpatia. Primeiro foi o comandante militar da Amazônia, general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, que condenou publicamente a política indigenista do governo federal. Depois foi o general Eliezer Monteiro, do 7º Batalhão de Infantaria de Selva, que abriu as portas do quartel para um ato público de repúdio à demarcação da reserva Raposa Serra do Sol. Demarcação essa que é uma decisão do governo a quem ele deve obediência.
Essa aliás é a contradição fundamental da questão de Roraima. O poder central tem um projeto para a Amazônia e o poder local tem outro completamente diferente. E por poder local entenda-se todas as autoridades que estão na região. O chefe dos fazendeiros que estão em conflito com os índios é o prefeito de Pacaraima, Paulo Cezar Quartieiro. O governador do estado, José de Anchieta, não esconde que está fechado com os produtores de arroz. E os militares aquartelados na região não escondem suas simpatias.
A discussão sobre o tamanho das reservas e se elas devem ser contínuas é válida. Trata-se de uma questão importante para o desenvolvimento do Brasil. O assustador é ver que ela ainda se dá com referenciais que deveriam ter sido abandonados há décadas. O uso da força para resolver disputa, as paranóias nacionalistas, os preconceitos. O Brasil precisa chegar ao fim do Brasil.
CB, 12/05/2008, Política, p. 4.