O contraditório de Raposa-Serra do Sol

Autor: 
Maurício Corrêa
Data de publicação: 
27/04/2008
Fonte: 
CB

A determinação do governo federal para a retirada dos fazendeiros de Raposa Serra do Sol é muito mais séria do que parece. O princípio constitucional da imemorialidade das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios não pode ter a extensão que lhe tem sido dada. O desdobramento do impasse criado entre indígenas e fazendeiros aguardou durante muito tempo decisão do governo federal. Somente agora, todavia, teve reconhecimento oficial favorável aos indígenas.

O Supremo Tribunal Federal, onde a pendenga acabou por desembocar, chancelou entendimento que obsequia os índios. No início do mês, contudo, a Corte, acatando pleito formulado pelo governo do estado de Roraima, concedeu liminar para sustar o ato de desocupação. Ficaram, assim, sustadas as operações empreendidas pela Polícia Federal, que lá se achava para proceder à retomada da área.

O general Augusto Heleno Ribeiro, comandante militar da Amazônia, em cerimônia no Clube Militar, no Rio de Janeiro, fez severas advertências ao modelo que tem sido adotado para as demarcações de reservas indígenas. O discurso foi objeto de manifestações de apoio da comunidade militar. Respeitado nas Forças Armadas, ninguém no meio castrense ousou censurá-lo. É admirado pelos atributos que reúne. Não se pode ter a adjetivação usada nas críticas à política de demarcações do governo petista - "lamentável" e "caótica" - como imprópria ou desmedida. Conhecedor da realidade submersa no processo que influencia o programa de demarcações, demonstrou o militar que sabe onde põe a mão.
O presidente da República não gostou da censura. Fez comentários salpicados de indignação. Convocou o ministro da Defesa e o comandante do Exército. Queria explicações.

A seguir, ordenou que ouvissem o general. O que se sabe, daí para a frente, é que Lula se calou, acomodando-se com as objurgatórias profligadas.

Augusto Heleno tem o respaldo das Forças Armadas. Não fala sozinho. Tema que envolve tamanha relevância política, social e estratégica não pode ser decidido solitariamente sem que, antes, se proceda a meticuloso exame de suas implicações. Fazer demarcações de reservas indígenas não é assunto para se resolver simplesmente por decreto.

Sabe-se que a questão indígena sensibiliza um grande universo de pessoas. Dele participam organizações de direitos civis nacionais e internacionais, padres, bispos, políticos integrados na defesa da causa, ONGs com muito dinheiro e, sem dúvida, assessores governamentais que aconselham as medidas que o presidente da República deve ou não tomar. A pressão que esse complexo exerce possui extraordinária vitalidade. Sob seus efeitos, equívocos podem ser perpetrados. É o que parece haver orientado a assinatura do ato de demarcação e o despejo dos fazendeiros de Raposa Serra do Sol.

Com a concessão da liminar que sustou a desocupação da reserva, terá o STF oportunidade de reexaminar os contornos jurídicos da controvérsia e dar-lhe desfecho adequado. Terá condições de avaliar os antecedentes históricos que se responsabilizaram pela incorporação do hoje estado de Roraima à soberania nacional. No embate que o Brasil travou com a Inglaterra acerca dos limites de nossas fronteiras com a Guiana, antiga colônia britânica, deverá a Corte, por cento, refletir sobre as bem lançadas razões subscritas por Joaquim Nabuco, advogado contratado para defender o país.

Provou Nabuco, à época, que o governo português incentivou portugueses e brasileiros a colonizarem a região. Lá se instalaram. Levaram para as glebas distribuídas empregados, animais diversos e instrumentos agrícolas. Enfatizou que as divisas nacionais deveriam chegar à margem esquerda do Rio Essequibo. Até esse rio, a presença de brasileiros e portugueses resultou provada. Foram eles que ocuparam o território em toda sua extensão. Era a prevalência do uti possidetis - princípio jurídico que assegura ao possuidor efetivo direito ao espaço territorial contestado. Lamentavelmente, o rei Victor Emmanuel III, da Itália, árbitro escolhido pelas partes, não sancionou a pretensão do Brasil. Perdemos a demanda. Por isso, as fronteiras que nos separam da Guiana foram recolhidas aos marcos atuais em que se acham.

É preciso que o STF perquira se essa não é a mesma causa da presença dos herdeiros ou sucessores de muitos dos que, atualmente, são os arrozeiros da região conflitada. Seja qual for a decisão que vier a ser acolhida pela mais alta Corte de Justiça do país, pelo menos ter-se-á a certeza de que todas essas questões deverão ser revistas.

Sensato, Lula deve ter se dado conta de que estava a ingressar em território minado. O ministro Jobim, que foi favorável à regularização de Raposa Serra do Sol, desde que não fosse realizada em terras contínuas, sabe que a forma para desalojar os rizicultores de Roraima não deve ser a até aqui preconizada. Com o recuo de Lula, as coisas se acalmaram. Agora, é esperar a palavra final do STF.

CB, 27/04/2008, Opinião, p. 21.