Na primeira sessão do julgamento da Petição 3888 sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol no Supremo Tribunal Federal, ocorrida em 27 de agosto de 2008, o Ministro relator da ação, Carlos Ayres Britto, em seu voto, levantou o debate sobre a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, adotada em setembro de 2007 pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU. O julgamento da ação foi suspenso devido ao pedido de vista dos autos formulado pelo Ministro Carlos Alberto Menezes Direito que, segundo matéria publicada na Folha de São Paulo em 29 de agosto, poderá utilizar a Declaração da ONU para contestar a forma de demarcação contínua das terras indígenas.
O principal ponto da polêmica instaurada em relação à Declaração da ONU é que esta possibilitaria a criação de “uma nação indígena soberana dentro dos Estados signatários”. Não obstante, uma leitura integral do texto da Declaração e uma interpretação dentro do contexto de sua elaboração afastam esta interpretação equivocada. Além disso, não é demais lembrar que a Declaração da ONU, por não ser tratado, não possui caráter cogente e, de forma alguma, poderia modificar a Constituição brasileira.
A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas tem a característica peculiar de ter contado com a participação efetiva dos detentores dos direitos - os povos indígenas - em sua elaboração, cujo processo levou mais de 25 anos. Foi finalmente aprovada na Assembléia Geral da ONU em 13 de setembro de 2007, tendo 143 países votado a favor da Declaração, entre eles o Brasil, 4 contra e 11 abstenções.
Durante o processo de elaboração da Declaração, alguns pontos sensíveis foram levantados, entre os quais a questão da autodeterminação dos povos indígenas. Assim, especial esforço foi realizado pelas partes envolvidas para atingir um consenso em relação às questões controvertidas.
Especialmente no que se refere à autodeterminação, o texto final adotado pela ONU esclarece ser o direito à autodeterminação compatível com o princípio da integridade territorial e com a unidade nacional, não podendo este direito ser interpretado no sentido de permitir a secessão dos povos indígenas de seus países de residência, dos quais são nacionais. O texto da Declaração é expresso neste sentido:
Artigo 46
1. Nada do disposto na presente Declaração será interpretado no sentido de conferir a um Estado, povo, grupo ou pessoa qualquer direito de participar de uma atividade ou de realizar um ato contrário à Carta das Nações Unidas ou será entendido no sentido de autorizar ou de fomentar qualquer ação direcionada a desmembrar ou a reduzir, total ou parcialmente, a integridade territorial ou a unidade política de Estados soberanos e independentes. (grifo nosso)
Diversos países fizeram declaração de voto após a adoção da Declaração pela Assembléia Geral, explicitando em suas declarações que votaram em favor da aprovação do documento, uma vez que o texto final esclareceu a questão da autodeterminação anteriormente levantada como um problema por diversos Estados. Em sua declaração de voto, o Brasil ressaltou que o exercício dos direitos dos povos indígenas é consistente com a soberania e a integridade territorial do Estado em que eles residem.
Desta forma, o direito à autodeterminação deve ser interpretado como um direito à autonomia e autogoverno em relação a temas que dizem respeito a assuntos locais e internos das terras indígenas – como disposto no artigo 4 da Declaração. Interpretar este direito como uma possibilidade de criação de uma “nação autônoma dentro do Brasil”, significa desconsiderar 25 anos de árduo processo de negociação e elaboração da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, cujo texto final foi aprovado na Assembléia Geral após amplo debate no sentido de que o direito à autodeterminação não pode ser interpretado contra a soberania e integridade territorial dos Estados.
Pior, utilizar esta interpretação equivocada contra o direito de demarcação das terras indígenas de forma contínua significaria, além de um enorme retrocesso, uma grave violação dos direitos humanos dos índios, na medida em que a continuidade territorial é essencial para a preservação de sua cultura, organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, conforme estabelece não apenas a Declaração da ONU, mas também a nossa Constituição Federal.
Oscar Vilhena Vieira, Diretor Jurídico
Marcela Cristina Fogaça Vieira, advogada