Não importa se a terra é ocupada por índios ou por fazendeiros: toda a faixa de fronteira da Amazônia brasileira é vulnerável. A análise é da coordenadora do curso de relações internacionais da Universidade Federal de Roraima, Marcelle Ivie da Costa Silva, que pesquisa as questões de segurança nas fronteiras brasileiras e está concluindo doutorado em ciência política pela Unicamp com a tese "Raposa/Serra do Sol: agentes políticos, conflitos e interesses internacionais na Amazônia brasileira". Ela diz que há "maniqueísmo" nas análises sobre a disputa na Raposa e que a Polícia Federal e a Funai não têm condições de saber se não-índios entram em áreas indígenas.
Folha - Como vigiar uma área de 1,7 milhão de hectares, em região de fronteira?
Marcelle Ivie da Costa Silva - Não é possível vigiar a Amazônia. É um problema geral, não uma questão dessa reserva. O fato de ser faixa de fronteira não vejo como sendo uma ameaça especial. É uma ameaça presente em outras faixas de fronteira, sendo área indígena ou não. Existe legislação específica que prevê a entrada das Forças Armadas em caso de ameaça.
A gente não pode esquecer que a terra indígena Ianomâmi [na fronteira com a Venezuela] é mais extensa que a Raposa. As políticas públicas são feitas para a Amazônia, mas há várias amazônias. Dependendo do local, há particularidades que não são levadas em conta. Falta sentar com essas comunidades, ouvir o que precisam. Não basta demarcar e não dar condição para as populações se estabelecerem com qualidade de vida.
Folha - A Funai cumpre seu papel?
Marcelle - O problema da Funai não é só a política indigenista, a qual tenho críticas, mas também as condições que o Estado dá ao órgão. Você vai lá, demarca. É um processo lento.
Na Raposa, culminou no que a gente está vendo: demarca e depois deixa as populações com pouca salvaguarda. Tem muita área demarcada onde as pessoas estão morrendo de fome.
A Funai falha aí. Não por falta de vontade, mas por falta de recurso. Acho a política da Funai, de tutela do indígena, totalmente inadequada. Tem que capacitar populações para que se auto-sustentem.
Folha - Qual o controle do acesso de não-índios a terras indígenas?
Marcelle - Qualquer pessoa que vá a uma terra indígena precisa de autorização da Funai. Mas aí esbarra na burocracia. Às vezes, tem que esperar seis meses para uma autorização. O que as pessoas fazem?
Vão sem, porque a burocracia é enorme. No mês passado, dois americanos foram pegos dentro da Raposa. Um era internacionalista e outro trabalhava para uma empresa de prospecção de petróleo. Mas é muito raro a Polícia Federal pegar alguém na Raposa sem autorização. Não tenho como provar, mas a gente sabe que há entrada de estrangeiros até porque a fronteira é vulnerável.
A melhor maneira de fazer o controle é treinar a comunidade para fazê-lo.
Folha - Um dos argumentos centrais dos opositores à demarcação em área contínua é a ameaça à soberania nacional. Faz diferença se a terra é indígena ou não?
Marcelle - Não basta garantir uma soberania no âmbito do território. Não adianta ter uma presença enorme das Forças Armadas, seja ela terra privada ou da União, se você não tem forma de garantir que o conhecimento ou a ciência que pode ser gerada nessa área tão rica seja administrada pela comunidade científica do Brasil. A facilidade de transporte de informações hoje é incrível. Não precisa levar plantas, você faz pesquisa e leva informações em microchip. A riqueza não é necessariamente diamante ou ouro. Você pode ter uma mina de diamante que não vale nada perante a possibilidade de desenvolvimento da indústria farmacêutica, por exemplo.
Folha - O que o prolongamento do impasse na Raposa/Serra do Sol pode acarretar à região?
Marcelle - Há muito maniqueísmo. Por causa dessa polarização, um novo adiamento do julgamento traz mais ansiedade. Isso é um problema que vem há 30 anos. A Raposa virou um símbolo, mas temos outras questões indígenas para resolver. O caminho que se tomar tende a ficar como marco para futuras decisões. Um confronto direto pode acontecer? Pode.
Mas não gostaria de colocar isso em tom alarmista porque as partes sabem que partir para a violência é muito prejudicial.
FSP, 15/12/2008, Brasil, p.A10.