Memorial da Comunidade Indígena Socó - como Assistente da União - na Petição n. 3388

Autor: 
Paulo Machado Guimarães
Data de publicação: 
21/08/2008

MEMORIAL DA COMUNIDADE INDÍGENA SOCÓ
- como Assistente da União -

Petição nº 3388

Relator: Excelentíssimo Senhor Ministro Carlos Brito

Autor: Augusto Botelho
Ré: União Federal

Advogados da Comunidade Indígena Socó:
Paulo Machado Guimarães
OAB-DF nº 5.358
Cláudio Luiz dos Santos Beirão
OAB-AL nº 3.347

Tema: Demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol tradicionalmente ocupada pelos Povos Indígenas Macuxi, Ingarikó, Patamona, Taurepang e Wapixana

Em pauta para julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal. Agendado para o dia 27/08/2008

Sumário

1. Síntese da pretensão do autor popular e da tramitação do processo

2. Os direitos constitucionais, legais e regulamentares dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam
2.1. Caracterização de uma terra como sendo tradicionalmente ocupada por índios
2.2. O usufruto exclusivo assegurado constitucionalmente aos índios
2.3.As hipóteses de restrições constitucionais à posse permanente e ao usufruto exclusivo sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios
2.3.1. Pesquisa e lavra de recursos minerais e Aproveitamento dos recursos hídricos e dos potenciais energéticos
2.3.2. Remoção de grupos indígenas de suas terras
2.3.3. Atos de relevante interesse da União

3. Demarcação das terras tradicionalmente ocupadas por índios
3.1. A competência da União para demarcar as terras indígenas;
3.2. A natureza jurídica da demarcação das terras indígenas;
3.3. O procedimento administrativo para a demarcação das terras indígenas

4. A demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol:
4.1. O Procedim. Adm. 3233/77, da Funai – Identificação e Delimitação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol:
4.2. O Procedim. Adm. 889/93, da Funai – Declaração de Limites e determinação para a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol
4.3. O Procedim. Adm. 772/99, da Funai – Homologação da demarcação administrativa da Terra Indígena Raposa Serra do Sol;

5. A improcedência das alegações suscitadas pelo Autor da Ação Popular e pelo Estado de Roraima
5.1. Ofensa ao princípio do devido processo legal, em razão de vícios no procedimento administrativo de demarcação da Terra Indígena da Raposa/Serra do Sol”.
5.2. Riscos à integridade da soberania do Estado brasileiro em razão da TIRSS se localizar na Faixa de Fronteira
5.3. Marco temporal para definição da ocupação tradicional da terra pelos índios e Terras indígenas como terras devolutas do Estado
5.4. Relatório da Comissão de Peritos na Ação Popular que tramitou no Justiça Federal de Roraima e no STF
5.5. Desconstituição de Município e de títulos imobiliários por Decreto Presidencial e Centros populacionais
5.6. Superposição de terras indígenas e Parque Nacional
5.7. Comprometimento do princípio federativo
5.8.Ofensa ao princípio da razoabilidade
5.9. Isolamento dos índios na TIRSS
5.10. Êxodo rural dos indígenas não conformados com demarcação da TIRSS e a exacerbação dos conflitos intergrupos

6. Subsídio sobre a organização dos povos e das comunidades indígenas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, com suas atividades produtivas, seu crescimento populacional e seus esforços no atendimento à saúde e na educação escolar

7. Conclusão

1. Síntese da pretensão do autor popular e da tramitação do processo

Nesta Ação Popular, seu Autor pretende:
“a nulidade da Portaria n° 534/2005”, por considerá-la “derivada de procedimento de demarcação viciado e por afrontar os princípios da razoabilidade, proporcionalidade, segurança jurídica, legalidade, devido processo legal, dentre outros”.

Fundamentando sua pretensão, o Autor da ação alega a existência de:
• “ofensa ao princípio do devido processo legal, em razão de vícios que macularam o procedimento de demarcação da Raposa/Serra do Sol”, por ter sido conduzido com desrespeito às normas que regulam o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas.
• Quanto a estes alegados vícios, o Autor considera os indicados por Comissão de Peritos constituída pelo Juízo da 1ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Roraima, na Ação Popular n° 1999.42.00.000014-7, já extinta por decisão do STF e para tanto transcreve as seguintes observações:
“Que seja considerada nula de pleno direito a Portaria 820, de 11 de dezembro de 1998, do Excelentíssimo Senhor Ministro de Estado da Justiça, que declarou de posse indígena a ‘terra indígena Raposa Serra do Sol’, por ter sido ato praticado após a vigência do Decreto 1.775/96, e não se ter pautado pelas normas ali prescritas, além de todo o processo ter sido eivado de erros e vícios insanáveis, tais como:
i. Contou com a participação parcial de apenas um dos lados dos indígenas, a que dos defendem a demarcação em área contínua;
ii. Teve a participação do Governo do Estado completamente comprometida, inclusive, por omissão e descaso do próprio Governo Estadual, à época;
iii. A academia não foi devidamente convidada a participar, nem participou como deveria;
iv. Sem razão explicitada, incluiu no grupo técnico interinstitucional, a Igreja Católica, única representante das entidades religiosas, com dois representantes;
v. Os Municípios à época envolvidos, Boa Vista e Normandia, não participaram nem foram convidados a participar do grupo técnico;
vi. Os produtores agropecuários, os comerciantes estabelecidos nas localidades, os garimpeiros, e os demais atores não foram sequer considerados;
vii. O Grupo Interinstitucional de trabalho não apresentou ‘relatório circunstanciado ao órgão federal de assistência ao índio, caracterizando a terra indígena a ser demarcada’ como manda o parágrafo 7° do art. 2° do Decreto n° 22, de 04.02.91 (vigente à época), sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas;
viii. O relatório apresentado pela antropóloga é uma coletânea de peças completamente independentes, sem formar um corpo lógico tendente a indicar qualquer tipo de demarcação;
ix. O relatório não contém análise alguma da qual se possa tirar conclusões sobre importantes tópicos, tais como:
a . reflexos sobre os interesses da Segurança e da Defesa Nacionais;
b. Reflexos sobre a importância da região para a economia do Estado de Roraima;
x. O laudo antropológico da FUNAI (apresentado pela antropóloga Maria Guiomar) é uma reprodução, sem novidade alguma, de laudo anteriormente apresentado para justificar outro tipo de demarcação para as mesmas terras da Raposa Serra do Sol;
xi. A Portaria 820/98 englobou na demarcação das terras indígenas Raposa Serra do Sol a área constante do Parque Nacional Monte de Roraima, criado pelo Decreto 97.887, de 28.07.89;
xii. A Portaria 820/98 englobou a área de 90.000 ha dos Ingarikós, já demarcada anteriormente por meio da Portaria Interministerial n° 154, de 11.06.89, sem maiores explicações”

• Prejuízo à segurança e à defesa nacional e comprometimento da soberania nacional. Invoca as seguintes observações atribuídas ao então Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, em Aviso que seria de sua autoria, porém sem juntá-lo aos autos: “pretensão da Venezuela de estender sua fronteira até o rio Essequibo, em território guianense”; “intenção da ONU de restringir a atuação das forças armadas em território indígena;

• Comprometimento do princípio federativo, em razão de prejuízo ao Estado de Roraima e pelo fato de competir à União demarcar terras indígenas, sem que esteja assegurada a participação da unidade da federação, além de reflexos na economia do Estado, em razão de impactos “na produção agropecuária do Estado de Roraima;

• Ofensa ao princípio da razoabilidade, em razão da homologação da demarcação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol em área contínua;

• Isolamento dos índios na TIRSS, considerando-os “integrados”, por manterem atividades produtivas e relações de comércio com não-ínidos;

• “êxodo rural dos indígenas não conformados com nova situação para a periferia de Boa Vista”;

• “exacerbação dos conflitos intergrupos, já que a demarcação em área contínua abrange índios de etnias diferenciadas num mesmo solo”.

O autor pretende comprovar suas alegações por intermédio dos seguintes documentos que acompanham sua petição inicial:

1. Portaria n° 534, de 13 de abril de 2005, do Ministro de Estado da Justiça, que declara os limites e determina a demarcação administrativa da Terra Indígena Raposa Serra do Sol;
2. Relatório da Comissão de Peritos nomeados nos autos da Ação Popular n° 1999.42.00.000014-7, que tramitou na 1ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Roraima e posteriormente o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Reclamação n° 2833 reconheceu a perda de seu objeto, bem como de outras ações propostas com a mesma causa de pedir, em razão da revogação da Portaria n° 820/96, pela Portaria n° 534/2005, ambas do Ministro de Estado da Justiça;
3. Relatório Parcial da Comissão Temporária Externa do Senado Federal sobre demarcação de terras indígenas – Área Indígena Raposa Serra do Sol (Roraima).

A liminar requerida para suspender os efeitos do ato administrativo impugnado foi indeferida, por despacho do Relator, em 02/05/2005, tendo sido mantida pelo Pleno do STF, no julgamento do Agravo Regimental interposto pelo Autor contra a decisão que indeferiu a liminar requerida, cujo provimento foi negado por unanimidade .

Francisco Mozarildo de Melo Cavalcanti requereu seu ingresso no processo em 4/4/2006, como assistente do Autor, porém, não atendeu a determinação do Relator consignada no despacho de fls. 330 , de 29/08/2006, no sentido de “apresentar instrumento de mandato no prazo de 15 (quinze) dias (art. 37 do CPC)”.

Somente em 20 de maio de 2008, às fls. 9772, portanto transcorridos um ano, oito meses e quinze dias após sua intimação, Mozarildo Cavalcanti requereu a juntada da procuração a seus advogados, pretendendo, com isso, regularizar sua representação nos autos, embora esta possibilidade se revele absolutamente preclusa.

A União contestou a ação, às fls. 309 a 328.

O Autor da ação popular não se manifestou sobre a contestação, apesar de intimado pelos despachos de fls. 344 e 350.

Quanto à especificação de provas, objeto do despacho de fls. 356, o Autor não se manifestou e a União, às fls.361 manifestou-se no sentido de não ter “provas a produzir”, requerendo inclusive o julgamento antecipado da lide.

Somente a União apresentou Alegações Finais, atendendo ao despacho de fls. 363.

Por fim, em 25/04/2008 o Procurador Geral da Republica emitiu seu parecer opinando pela improcedência da pretensão do Autor, cujos fundamentos foram sintetizados na seguinte ementa:
“Petição. Ação Popular. Ato de demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol e respectiva homologação. Delineamento do modelo constitucional atual em relação aos índios. Necessidade de demarcação das áreas tradicionalmente ocupadas pelas comunidades indígenas, como a de que tratam os autos, para a preservação de sua tradição e cultura. Distinção entre o conceito de posse indígena e aquela do direito civil. Legitimidade do procedimento administrativo de que decorreram os atos questionados, regido por decreto específico. Estudo antropológico realizado por profissional habilitado para tanto. Respeito ao contraditório e à ampla defesa. Risco à soberania nacional que, se existente, não possui imediata implicação com o modelo de respeito ao direito de posse dos indígenas, no que diz com o elemento geográfico, havendo de ser avaliado e, se for o caso, eliminado por mecanismos outros de proteção. Abalo à Autonomia do Estado de Roraima elidida pelo caráter originário e anterior do direito dos indígenas. Processo natural em território que sempre contou com a presença de numerosos grupos indígenas. Parecer pela improcedência do pleito”.

A Fundação Nacional do Índio e o Estado de Roraima requereram respectivamente nos dias 5 e 7 de maio de 2008, o ingresso nos autos. A primeira como Assistente da União e o segundo como Litisconsorte Ativo Necessário.

A Funai juntou aos autos os seguintes documentos, que se localizam dos volumes 2 a 19 dos autos, sustentando, em síntese a validade do ato impugnado e reforça os argumentos e fundamentos suscitados pela União e no parecer do Procurador Geral da República:
1. Procedimento Administrativo da Funai nº 889, de 1993, que trata da declaração dos limites e da determinação de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, pelo Ministro de Estado da Justiça - fls. 421 a 1285;
2. Procedimento Administrativo da Funai nº 772, de 1999, que versa sobre a homologação da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República - fls. 1286 a 1659;
3. Procedimentos Administrativos contendo contestações administrativas ao Relatório de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol:
1. Proc. 1163/96 – do Estado de Roraima – fls. 3845 a 3916, acompanhada de documentos;
2. Proc. 1185/96 – de Saga Mineração – fls. 2016;
3. Proc. 1258/96 – de Lacy de Oliveira, Francisdo de Assis Pinto, Perly de Araújo Lira, Sebastião da Silva, Marlene Ribeiro, José Brandão e Olindo de Souza – fls. 2036;
4. Proc. 1259/96 – de Newton Tavares – fls. 1914;
5. Proc. 1264/96 – de Alaiza Paracat e outras seis pessoas – fls. 2100;
6. Proc. 1265/96 – de Raimundo de Jesus, Cacilda Brasil e outros – fls.2386;
7. Proc. 1266/96 – de Said Samu Salomão – fls. 2038;
8. Proc. 1439/96 – da Prefeitura de Normandia – fls. 1831;
9. Proc. 122/ 99 – de Heloísa P. Silva, José Antão de Sales, Leonor Macedo Hart (esposa do norte-americano Lawrence Manly Hart – fls.2165), Maria de Souza da Cunha, Pedro Casarim, Zilda Michel, Walter Nogel, Osvaldo Costa D’Almeida – fls. 2483;
4. Laudo Pericial Antropológico no Processo nº 91.13363-9, elaborado pelo Prof. Dr. Paulo José Santilli, que tramitou na Justiça Federal de Roraima – fls. 1660;
5. Carta Compromisso entre o Governo Federal e as seguintes Organizações Indígenas, sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol: ALIDCIR; APIRR; CEIKAL; CIR; COPING; SODIUR; OMIR; e OPIR;
6. Despacho sobre Petição da Funai;
7. Laudo Preliminar de Constatação de infrações ambientais, elaborado pelo IBAMA, sobre terras ocupadas por Paulo César Quartiero, na TIRSS – fls. 4978;
8. Artigo intitulado “A invasão das Monoculturas”, publicado na Revista Ciência Hoje, da SBPC – fls. 4997;
9. texto de pesquisadores do INPA, intitulado “O Avanço de Monoculturas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol”;
10. Relatório sobre a proposta de demarcação da área indígena Raposa Serra do Sol – fls. 5011.

O Estado de Roraima, por sua vez comparece aos autos requerendo, conforme já indicado, seu ingresso como Litisconsorte Ativo Necessário, agregando, em síntese, as seguintes alegações, com base nas quais pretende corroborar a pretensão do Autor popular:
1. Vício na formação do laudo antropológico;
2. Relatório do GT/Funai assinado pela Antropóloga, não tratou da questão sociológica;
3. Formação do GT/Funai;
4. Ausência de publicidade do Relatório circunstanciado do GT/Funai;
5. Pedido de Reconsideração, o Recurso Administrativo Ordinário, o Recurso Hierárquico e a Avocatória, apresentados pelo Estado de Roraima ao Ministro da Justiça;
6. O Despacho nº 50, de 1998, do Ministro de Estado da Justiça;
7. A ofensa ao princípio da proporcionalidade;
8. Aspectos econômicos e sociais resultantes da demarcação da TIRSS em área contínua;
9. A inconstitucionalidade do Decreto nº 22, de 1991 e a conseqüente nulidade dos atos praticados sob sua vigência;
10. A nulidade da ampliação da área indígena sem fundamentação antropológica específica e sem conferir oportunidade de manifestação aos entes públicos e pessoas interessadas;
11. A nulidade da ampliação da área indígena pela Portaria Ministerial nº 534, de 2005;
12. A impossibilidade de desconstituição de Municípios e títulos de propriedade por meio da edição de decreto Presidencial;
13. A caracterização da terra como tradicionalmente ocupada por índios;
14. O marco temporal a identificar os extintos aldeamentos indígenas;
15. As terras devolutas pertencentes aos Estados-Membros e as existentes na faixa de fronteira;
16. A ocupação de terras indígenas frente a inovação trazida pela Emenda Constitucional nº 01/1969 e pela Constituição de 1988;
17. A lesão ao patrimônio público do Estado de Roraima;
18. A ausência de terras por parte do Estado de Roraima a conferir-lhe autonomia enquanto ente federado;
19. A exigência de lei para demarcar área indígena;
20. Os imóveis titulados pelo INCRA existentes na área demarcada:
1. da particular questão da Fazenda Guanabara;
2. da área ocupada pelos arrozeiros;
3. das demais propriedades existentes na área demarcada;
21. Os centros populacionais consolidados;
22. A impossibilidade de superposição de terras indígenas e parques nacionais;
23. A proteção da área de fronteira e a questão da soberania nacional;
24. O relatório parcial da Comissão Temporária Externa do Senado Federal sobre a demarcação de terras indígenas – Área Indígena Raposa/Serra do Sol;
25. A homologação da Reserva Raposa/Serra do Sol e a questão federativa;
26. A possibilidade de remoção de grupos indígenas em prol da segurança nacional;
27. A participação do Congresso Nacional na demarcação de área indígena;
28. A manifestação prévia do Conselho de Defesa Nacional para a homologação da demarcação de terras indígenas localizadas na faixa de fronteira.

Com sua manifestação, o Estado de Roraima requer a juntada aos autos das seguintes cópias de documentos e papéis, que se encontram nos volumes 20 a 36:
1. Procedimento administrativo nº 889/96, da Funai – vols. I, II e III – fls. 5262 a 5815;
2. Procedimento administrativo nº 1163/96 – contestação administrativa do Estado de Roraima ao Relatório de Identificação e Delimitação da Funai – fls. 5817 a 6204;
3. Relatório da Comissão de Peritos na Ação Popular nº 1999.4200000014-7 , que tramitou na 1ª Vara da JF/RR e no STF – fls. 6207 a 6310;
4. Relatório dos Assistentes dos Peritos: Carlos Alberto Borges (org.); Daniel Gianluppi – agrônomo; Robson Oliveira de Souza – agrônomo; Juscelino K Pereira – advogado; Jona de Souza Macolino – Tuxaua Macuxi – fls. 6312 a 6379;
5. Despacho da Exmª Senhora Min. Ellen Gracie, como Presidente do STF, na SL nº 38 – fls. 6381 a 6384;
6. Memorial e referências das atividades do Grupo Técnico especializado de estudos de áreas indígenas do Estado de Roraima – fls. 6385 a 6411;
7. capa do vol. 2 do processo referente à ACO 804 (sem qualquer conteúdo) – fls. 6412;
8. Ata da 7ª Reunião Ordinária do Grupo de Trabalho Especial instituído pelo Governador do Estado de Roraima, realizada em 14/8/2003 – fls. 6414;
9. Projeto de Lei Complementar do Governo de Roraima – fls. 6415 a 6419;
10. Requerimento do Deputado Alceste Almeida – fls. 6420;
11. Indicação do Dep. Alceste Almeida;
12. Anteprojeto de Medida Provisória do Presidente da República, alterando a Lei nº 10.304, de 5 de novembro de 2001, para transferir para RR, terras da União;
13. Relatório parcial da Comissão Externa do Senado Federal sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol – fls. 6441 a 6512;
14. Relatório da Comissão Externa da Câmara dos Deputados, destinada a avaliar in loco, a situação da demarcação em área contínua da Reserva Indígena Serra do Sol, no Estado de Roraima – fls. 6519 a 6589;
15. Relatório de Situação do Grupo de Trabalho da Amazônia, com identificação de seu Coordenador, Gélio Fregapani, com anexos – fls. 6590 a 6610;
16. Parecer do Antropólogo e Assistente Técnico do Estado de Roraima, Carlos Alberto Borges da Silva, de 16/5/2002 – fls. 6612 a 6631;
17. Pedido de Avocatória e Pedido de Reconsideração do Estado de Roraima ao Ministro da Justiça – fls. 6633 a 6663;
18. Pedido de Declaração de Nulidade do Processo Administrativo e de Revogação do Ato decisório e Pedido de Reconsideração, encaminhados ao Ministro da Justiça – fls.6665 a 6758;
19. Relatório sobre o Procedimento de demarcação da TIRSS (sem autoria, sem data e sem fonte) – fls. 6761 a 6778;
20. Registros de viagem à RR e à TIRSS pelo então Ministro da Justiça Nelson Jobim e comitiva que o acompanhou – fls. 6782;
21. Despacho do então Ministro da Justiça Nelson Jobim, de 20/12/1996 – fls. 6809;
22. Decisão da Desembargadora Selene Maria de Almeida, do TRF da 1ª Região, no Agravo de Instrumento nº 2004.01.00.010.111-0/RR – fls. 6832 a 6934;
23. Relatório da Comissão de Peritos na Ação Popular nº 1999.42.00000014-7, que tramitou na JF/RR e no STF – fls. 6936 a 7158;
24. Relação de locais de votação na TIRSS – fls. 7159 a 7162;
25. Discriminação das atividades econômicas desenvolvidas por comunidades agrícolas da área indígena Raposa Serra do Sol – fls. 7163;
26. Relação de patrimônios estaduais e municipais na TIRSS;
27. Informação da Funasa sobre a situação demográfica e sanitária das Comunidades Indígenas na TIRSS, datado de 5/4/2004;
28. Decreto nº 601, de 4 de maio de 1992, do Governador do Estado de Roraima, designando servidores para compor Grupo Técnico da Funai;
29. parte da manifestação de Alcides da C. Lima e Silvino L. da Silva, sobre perícia elaborada por Comissão de Peritos na Ação Popular nº 1999.42.00000014-7, por eles proposta na JF/RR – fls. 7822;
30. Visão Regional sobre a Área Indígena Raposa Serra do Sol, elaborado em 2004, pelo Grupo de Trabalho Especial do Governo do Estado de Roraima – fls. 7383;
31. Relatório da Comissão Externa da Câmara dos Deputados sobre a TIRSS;
32. Áreas propícias para produção de arroz na TIRSS (sem apresentar qualquer mapa de reconhecimento do solo) – fls. 7603;
33. Parecer do Ministério Público Federal sobre o Relatório da Comissão Interdisciplinar constituído pelo Juízo da 1ª Vara Federal da SJRR, na Ação Popular nº 1999.42.00000014-7 – fls. 7610 a 7707;
34. Parecer técnico (identificado como Voto em separado) do antropólogo Erwin Frank, membro da Comissão Interdisciplinar constituído pelo Juízo da 1ª Vara Federal da SJRR, na Ação Popular nº 1999.42.00000014-7, consignando profundas divergências com os métodos de trabalho, os fundamentos e as conclusões adotadas pelos demais integrantes da Comissão Interdisciplinar – fls. 7711 a 7847;
35. cópia da Lei nº 399, de 30 de setembro de 2003, do Estado de Roraima, que altera os arts. 1º e 3º da Lei nº 215, de 11 de setembro de 1998, de forma a estabelecer que “cooperativas, associações agropecuárias localizadas no Estado e produtores que participam do projeto integrado de exploração agropecuária e agro-industrial do Estado de Roraima” têm direito à isenção tributária até 2018;
36. Pequeno histórico sobre a atenção básica à saúde na TIRSS – fls. 8029;
37. Discriminação de terras devolutas da União para o Município de Boa Vista e o Território Federal de Roraima – Edital do INCRA no DOU (sem indicar data da publicação) – fls. 8146;
38. papel consignando tratar-se de área fora da pretensão da Funai no interior da Gleba Caracaranã, com 207.112 ha – fls. 8147;
39. documento sobre a Gleba Caracaranã, com 342.755 ha - fls. 8149;
40. papel consignando tratar-se de área fora da pretensão da Funai no interior da Gleba Carnaúba, de 22/6/91 – fls. 8226;
41. Petição de Nelson Massami Itikawa, de 18/11/93, requerendo ao Superintendente Estadual do Incra, de RR, a expedição de declaração de que o título definitivo emitido para Edmilson Cordeiro de Melo, referente à Gleba Carnaúba, com 2.717,6899 ha, “não padece de vícios insanáveis” – fls. 8285;
42. Declaração da Superintendente Regional Adjunta do Incra, Senhora Silvia Tereza Novaes de Menezes, datado de 26/11/93, no sentido de que o Título Definitivo Rural nº 628, expedido pelo Incra, para Edmilson Cordeiro, “não padece de vícios insanáveis”;
43. Escritura de compra e venda firmada entre Bento Pinho da Fonseca e outros e Itikawa Ind. Com. Ltda., referente à 2.025,0216 ha, da Gleba Caracaranã, no Município de Normandia;
44. Documento referente à Fazenda Conceição do Mau;
45. Documento referente à Fazenda Jacaré;
46. Manifestação da Funai e da União na Ação Popular nº 1999.42.00000014-7, sobre o Relatório da Comissão Interdisciplinar de Peritos constituída pelo Juízo da 1ª Vara Federal da SJRR, na referida Ação Popular – fls. 8363 a 8417;
47. Relatório da Comissão Externa do Senado Federal – fls. 8420 a 8443;
48. Petição inicial da ACO 1035, em tramitação no STF, na qual o Estado de Roraima litiga contra a União, pretendendo autorização judicial para que a União transfira para o Estado de Roraima, independente de regulamentação da Lei nº 10.304/2001, quanto à exceção prevista no art. 2º, para regularizar a transferência de bens que o Estado de Roraima considera seus, conforme previsto no art. 14 do ADCT, no art. 15 da LC 41/81 e no art. 1º da Lei 10304/2001, sendo seus advogados, Francisco Rezek e Ives Gandra;
49. Declaração do Chefe de Gabinete da Ministra Cármen Lúcia, do STF, sobre apreciação da medida liminar na AC 1794 – fls. 8482;
50. Despacho sobre medida cautelar na Ação Cautelar nº 1794, de 10 de setembro de 2007 (no qual constam referências à AC 1725 e à Pet. 4129) – fls. 8484;
51. Ofício da Companhia de Águas e Esgotos de Roraima, informando as localidades com serviços de rede de abastecimento de água, em 13 comunidades indígenas e na Vila do Surumú e nas então existentes vilas de Mutum e Socó – fls.8489;
52. Ofício da Companhia Energética de Roraima, informando localidades atendidas com serviço de energia elétrica – fls. 8492;
53. Requerimento ao Ministro Tarso Genro para localização de Procedimento Administrativo – fls. 84997;
54. Ofício da Secretaria de Educação informando sobre educação indígena – fls. 8514;
55. Auditoria na Rede de ensino, nas Escolas Indígenas nos municípios de: Uiramutã; Amajari; Bonfim; Rorainópolis; Boa Vista; Normandia; Iracema; Caroebe; Alto Alegre; e Pacaraima – fls. 8534;
56. Projeto Insikirian – curso superior para índios – fls. 8585;
57. Decreto nº 1360, de 17 de dezembro de 1960, do Governador do Território Federal de Roraima, de criação da Vila Surumú – fls. 8587
58. Esc. s/Dec. criação por Município – fls. 8589;
59. Relatório de processos de obras com recursos do Tesouro/2008 (sem autoria e sem fonte) – fls. 8592;
60. texto “Doutrina: Direitos Humanos na Região Amazônica” (sem autoria e sem fonte) – fls. 8594;
61. Matéria publicada na Revista “Consulex”, edição nº 267, de fevereiro de 2008, intitulada “Internacionalização da Amazônia: Realidade e Utopia”, de Miguel Daladier Barros;
62. Matéria publicada na “Military Review”, em sua edição de março/abril, intitulada “Amazônia: vulnerabilidade, cobiça e ameaça”, do Gen. de Brigada R1, Luiz Eduardo Rocha Paiva – fls. 8627;
63. Papel intitulado “Apreciação 001/08 - Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal – PPTAL” – com data de 25/1/2008 - sem autoria e sem fonte – fls. 8634;
64. Papel intitulado “Apreciação 002/07 – Terra Indígena Raposa Serra do Sol” – com data de 27/2/07 – sem autoria e sem fonte – fls.8640;
65. Papel intitulado “Apreciação 006/04 – Raposa Serra do Sol” – com data de 26/5/04 – sem autoria e sem fonte – fls. 8644;
66. Papel intitulado “Apreciação 007/04 – Bloqueio de Estradas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol” – com data de 7/7/04 – sem autoria e sem fonte – fls. 8651;
67. Papel intitulado “Apreciação 009/06 – Solicitação de manobra patrimonial feita pelo Incra de RR” – com data de 24/4/06 – sem autoria e sem fonte – fls. 8655;
68. Papel intitulado “Apreciação 010/04 – Terra Indígena Raposa Serra do Sol” – com data de 26/8/04 – sem autoria e sem fonte – fls. 8657;
69. Papel intitulado “Apreciação 010/07 – Visita Ministro Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República à Roraima” – com data de 11/6/07 – sem autoria e sem fonte – fls. 8667;
70. Papel intitulado “Apreciação 012/07 – Situação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol” – com data de 27/6/07 – sem autoria e sem fonte – fls. 8669;
71. Papel como indicação de ser “Despacho do Ministro da Justiça Renan Calheiros”, em papel sem timbre, sem número, sem data e sem assinatura – fls. 8673;
72. Informação da Secretaria da Fazenda e da Secretaria da Agricultura, ambas do Governo do Estado de Roraima – fls. 8675;
73. Despacho nº 80/96, do Ministro da Justiça Nelson Jobim, a Portaria nº 820/98, do Ministro da Justiça Renan Calheiros, a Portaria nº 534/2005, do Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos e o Decreto do Presidente da Republica, Luís Inácio Lula da Silva, de 15/4/2005, homologando a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol – fls. 8681;
74. Relatório técnico das fazendas tituladas – fls. 8696;
75. Títulos imobiliários de Itikawa, Nopoleão Machado, Riomar Macuxi e Domício de Souza Cruz;
76. Processo referente à Gleba Caracaranã – sobre Projeto Piloto do Incra;
77. Mapas.

Em seguida, a Comunidade Barro e outras comunidades indígenas que tradicionalmente ocupam a Terra Indígena Raposa Serra do Sol requereram seu ingresso como assistentes da União, em petição às fls. 9066 a 9095, na qual apresentam suas razões fáticas e jurídicas pela improcedência da ação popular, juntando novos documentos.

Em 16 de maio de 2008, a Comunidade Indígena Socó, do Povo Macuxi requereu seu ingresso nos autos como litisconsorte passiva necessária, por ser, como todas as 194 comunidades indígenas que habitam a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, beneficiária do ato administrativo impugnado nesta ação popular, conforme previsto no art. 6º da Lei nº 4.717/65, ou como assistente da União, nos termos do art. 50 do CPC.

Por fim, Lawrence Manly Hart, Olga Silva Fortes, Raimundo de Jesus Cardoso Sobrinho, Ivalcir Centenaro, Nelson Massami Itikawa, Genor Luiz Faccio, Luiz Afonso Faccio, Paulo César Justo Quartiero, Itikawa Ind. e Com. Ltda, Adolfo Esbell, Domício de Souza Cruz, Ernesto Francisco Hart, Jaqueline Magalhães Lima e o Espólio de Joaquim Ribeiro Peres requereram, em conjunto, às fls. 9607, o ingresso nos autos como Assistentes Litisconsorciais do Autor, conforme previsto na Lei da Ação Popular, reservando-se para se manifestar sobre os termos da demanda após o deferimento de pedido de vista dos autos.

A Funai, às fls. 9641 requer a juntada dos seguintes documentos:
1. cópia da Ação de Consignação em Pagamento – Pet 4129 – Rel. Min. Carlos Brito, proposta no STF, pela Funai em 16/8/2007, contra 53 ocupantes não-índios da TIRSS – fls. 9642;
2. Parecer do Assistente técnico do MPF, na Ação Popular nº 1999.42.00000014-7, que tramitou na 1ª VF/RR e no STF.

A União se manifesta, às fls. 9783, sobre as pretensões de ingresso na Ação, concordando com o pleito de todos como assistentes, no caso da Funai e das Comunidades Indígenas, no pólo ativo da relação processual e no caso do Estado de Roraima e dos fazendeiros e arrozeiros, no pólo passivo, ao passo em que requer a juntada aos autos dos seguintes documentos:
1. Decreto do Presidente da República, de 15/4/2005, homologando a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol;
2. Informação nº 007/DEID/98, da Funai;
3. decisão do Agravo Regimental na Pet. 3388;
4. Lei nº 941, de 1917, do Estado do Amazonas;
5. Acórdão do julgamento do RE 183.188;
6. Despacho nº 80/96, do então Ministro da Justiça Nelson Jobim;
7. Relatório de Comissão do Conselho Federal da OAB;
8. Relação da População Indígena e das Aldeias Indígenas em Roraima, elaborado pela Administração Regional da Funai em Roraima;
9. Lei nº 215/98, do Estado de Roraima;
10. Artigo da Revista Ciência Hoje, sobre a situação na TIRSS;
11. Auto de Infração ambiental contra Ivo Barili;
12. Laudo de Constatação do Ibama, sobre infrações ambientais praticatas por Paulo César Quartiero;
13. Quadro com controle de pagamentos de indenizações de benfeitorias de ocupantes não-índios na TIRSS;
14. Notícias de imprensa;
15. Portaria nº 534, de 2005, do Ministro da Justiça.

Apesar do Procurador Geral da República, atendendo ao despacho de fls. 9973, ter se manifestado, às fls. 9975 favoravelmente ao ingresso nos autos da Funai, do Estado de Roraima, das Comunidades Indígenas e dos ocupantes não-índios, reiterando seu parecer pela improcedência da ação, aguarda-se ainda decisão a respeito da admissão do ingresso destes requerentes.

2. Os direitos constitucionais, legais e regulamentares dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam

A Constituição Federal estabelece, em seu art. 231, que são reconhecidos aos índios “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo a União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

A formulação do atual texto constitucional em relação às terras indígenas decorreu de acordo entre as forças político-partidárias no Congresso Nacional Constituinte - CNC, superando expressivo conjunto de interesses que pretendiam consagrar formulação que orientasse sua compreensão de maneira a que as terras indígenas fossem reduzidas.

O texto aprovado na Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias previa o respeito às “terras ocupadas” pelos índios. Em seguida, a Comissão da Ordem Social manteve esta formulação.

Com esta redação, a garantia das terras indígenas e a sua demarcação seriam efetivadas com base no conhecimento científico e experiente do conceito de ocupação que cada grupo indígena tem, de acordo com seus usos, costumes e tradições.

Porém, quando os anteprojetos de Constituição chegaram à Comissão de Sistematização do Congresso Nacional Constituinte o seu Relator, o então Deputado Federal Bernardo Cabral, teve a oportunidade de elaborar um anteprojeto, o qual, em tese, deveria considerar os trabalhos anteriormente produzidos pelas Sub-comissões e Comissões temáticas. Ocorre que em relação aos índios, como ocorreu em outros temas o Relator desconsiderou por completo as formulações aprovadas pelas instâncias anteriores do poder constituinte e propôs em seu anteprojeto de Constituição que se considerassem terras indígenas as “terras de posse imemorial onde se acham (os índios) permanentemente localizados”.

Esta formulação contou, até o fim dos trabalhos constituintes, com o apoio de setores ligados à ex-Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional e de expressivos segmentos das forças políticas que se articularam no que se denominou como "Centrão".

Com a formulação que então passou a vigorar tinha-se a pretensão de se considerar como terras indígenas as áreas das aldeias e as que lhe fossem próximas.

A posse imemorial significaria a ocupação histórica do grupo enquanto que a expressão "onde se acham permanentemente localizados" constituiria a região onde os índios se fixassem com constância.

A região das terras indígenas onde estes elementos se apresentam seria a aldeia, o que inviabilizaria a existência destes grupos étnicos enquanto tais, já que os espaços territoriais onde concretizam e realizam seus específicos e diferenciados modos de vida ficariam retalhados, como “ilhas” cercadas por propriedades privadas.

Por ocasião da negociação das lideranças partidárias e forças políticas, a respeito do dispositivo que trata dos bens da União (o atual art. 20, XI) acolheu-se, por sugestão do Senador Jarbas Passarinho a formulação: TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS; como forma equacionadora das divergências, já que o termo tradicionalmente expressaria a presença indígena, considerando a conciliação entre as referências históricas da ocupação, de acordo com os costumes culturais de cada grupo.

A utilização da expressão “tradicionalmente”, como elemento integrante da denominação das terras indígenas, já constava da Convenção nº 107, sobre a “Proteção e Integração das Populações Tribais e semitribais de Países independentes”, adotada pela Organização Internacional do Trabalho – OIT, em 26 de junho de 1957, promulgada pelo Brasil pelo Decreto nº 58.824, de 14 de julho de 1966.

Somente no ano seguinte à promulgação da Constituição Brasileira, em 1989, a Organização Internacional do Trabalho reviu a Convenção nº 107, passando a adotar a Convenção nº 169, assinada pelo Brasil, aprovada pelo Congresso Nacional e promulgada pelo Presidente da República em 2004.

Ao considerar as terras indígenas como bens da União o constituinte originário manteve idêntica orientação do texto constitucional anterior, concepção esta que remonta à Constituição de 1934..

Dessa forma, todos os cidadãos têm legítimo interesse jurídico na proteção das terras indígenas. Além do aspecto humanitário da obrigação de todos respeitarem a diversidade étnica, o tratamento das terras indígenas como bens da União remete à circunstância de tratar-se de objeto cuja segurança importa à todos no país.

Conforme bem ressaltado pelo Ministro Celso de Mello, na Ementa do Acórdão do julgamento do RE nº 183.188/MS:
“A Carta Política, com a outorga dominial atribuída à União, criou, para esta, uma propriedade vinculada ou reservada, que se destina a garantir aos índios o exercício dos direitos que lhes foram reconhecidos constitucionalmente (CF, art. 231, §§ 2º, 3º e 7º), visando, desse modo, a proporcionar às comunidades indígenas bem-estar e condições necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” .

O reconhecimento aos direitos originários sobre as terras que os índios tradicionalmente ocupam significa a aceitação da existência de relação de titularidade jurídica entre os índios e o espaço físico sobre o qual as diversas nações organizaram-se antes mesmo da constituição do Estado brasileiro.

Esta relação de anterioridade, conforme ressalta João Mendes Junior resulta do título congênito a que os índios têm direito por ocuparem as suas terras, caracterizando o instituto do indigenato. Conforme analisou em uma de suas Conferências realizadas em 1902:
“Não quero chegar até o ponto de affirmar, como P.J. Proudhon, nos Essais d’une philos.populaire, que - o indigenato é a única verdadeira fonte jurídica da posse territorial; mas, sem desconhecer as outras fontes, já os philosophos gregos affirmavam que o indigenato é um título congenito, ao passo que a occupação é um título adquirido. Conquanto o indigenato não seja a única verdadeira fonte jurídica da posse territorial, todos reconhecem que é, na phrase do Alv. de 1º de Abril de 1680, a primaria, naturalmente e virtualmente reservada, ou na phrase de Aristoteles (Polit., I, n.8), - um estado em que se acha cada ser a partir do momento do seu nascimento. Por conseguinte, o indigenato não é um facto dependente de legitimação, ao passo que a occupação, como facto posterior, depende de requisitos que a legitimem.
O indígena, primariamente estabelecido, tem a sedum positio, que constitue o fundamento da posse, segundo o conhecido texto do jurisconsulto Paulo (Dig.titul. de acq. vel. Amitt. Possess., L. 1), a que se referem Savigny, Molitor, Maiz e outros romanistas; mas, o indígena, além desse jus possessionis, tem o jus possidendi, que já lhe é reconhecido e preliminarmente legitimado, desde o Alvará de 1º de Abril de 1680, como direito congenito”

Em outra passagem relevante para a correta compreensão sobre a natureza jurídica da relação dos índios com as terras que ocupam, o mesmo João Mendes Junior assinala que:
“Aos Estados ficaram as terras devolutas; ora, as terras do indigenato, sendo terras congenitamente possuidas, não são devolutas, isto é, são originariamente reservadas, na forma do Alvará de 1º de abril de 1680 e por deducção da própria Lei de 1850, e do art.24 § 1º do Decr. De 1854...”

Este resgate histórico sobre a natureza jurídica da posse da terra pelos índios afigura-se relevante, na medida em que o constituinte, ao reconhecer os direitos originários dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, fundamenta-se na circunstância de que este direito originário resulta da natureza congênita da ocupação da terra pelos índios, não sendo, por isso dependente de legitimação.

Além disso, este reconhecimento acarreta conseqüência de extrema importância na proteção das terras indígenas, como será exposto mais à frente, no tópico relativo à posse permanente.

2.1. Caracterização de uma terra como sendo tradicionalmente ocupada por índios;

O § 1º do art. 231 da CF define as “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”, como:
“...as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.

Para se atingir esta definição, quando da negociação do capítulo dos índios os mesmos setores parlamentares articulados no “Centrão”, que não conseguiram restringir o significado das terras indígenas, por ocasião da discussão do dispositivo sobre os bens da União, voltaram a sustentar a inclusão do termo “permanentemente” no lugar de “tradicionalmente”.

Não conseguindo inserir esta modificação no caput do artigo 231, posicionaram-se no sentido de incluir esta referência no conceito de terra tradicionalmente ocupada consignado no § 1º do art. 231.

No confronto entre as posições políticas dos parlamentares, na busca da formulação de um texto comum a ser submetido à aprovação do plenário acordou-se incluir no elemento relativo à habitação o indicativo de ser em caráter permanente.

As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios resultam, assim da constatação de quatro requisitos, os quais devem ser considerados conjuntamente, a saber:
a) as terras por eles habitadas em caráter permanente;
b) as utilizadas para suas atividades produtivas;
c) as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar;
d) as necessárias a sua reprodução física e cultural.

Estes quatro aspectos, também em razão de expressa determinação constitucional devem ser compreendidos "...segundo seus usos, costumes e tradições".

Tal determinação constitucional é relevante e extremamente necessária porque desta forma fica estabelecida a orientação estatal no sentido de que os elementos constitutivos de uma terra tradicionalmente ocupada por índios devem ser compreendidos a partir dos valores culturais, dos costumes e das tradições das comunidades que tradicionalmente ocupam determinada área de terra.

E não poderia ser de outra forma. Se o caput do art. 231 da Constituição Federal reconhece aos índios "...sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições...", quando o poder público for demarcar os limites das terras que os índios tradicionalmente ocupam e cujo direito originário também está reconhecido constitucionalmente somente poderá fazê-lo sob a ótica dos usos, costumes e tradições da organização social dos índios que ocupam a área a ser demarcada.

Neste sentido poder-se-ia entender que a orientação constitucional de compreender os elementos constitutivos da terra tradicionalmente ocupada por índios segundo seus usos, costumes e tradições seria redundante. Porém acredita-se, como o constituinte originário, que a explicitação desta orientação para a adequada aplicação da norma constitucional torna-se necessário tendo em vista sua opção de consignar no texto constitucional a definição do que se entende por terra tradicionalmente ocupada por índios.

Em razão destas disposições constitucionais extraem-se como conseqüências para a ação administrativa da União em relação ao seu dever constitucional de demarcar as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, como também se aplica ao Poder Judiciário e nas relações com particulares:
1º. a necessidade preliminar de conhecer quais são os usos, costumes e tradições da organização social dos índios que ocupam a área a ser demarcada ou cujo conflito deva ser solucionado, para que se possa saber quais são as terras: "...por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural...";
2º. com base nestes conhecimentos têm-se os elementos suficientes para saber quais e onde são os limites da terra tradicionalmente ocupada por uma ou algumas comunidades indígenas de um ou de vários grupos étnicos e em conseqüência a dimensão deste território;
3. colocação dos marcos oficiais nos limites das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, demarcando-as, ou assegurando-se, por decisão judicial a integridade da posse e do usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes no solo, nos rios e nos lagos das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.

Exemplo salutar quanto a correta aplicação desta definição constitucional pode ser aferida pelo seguinte entendimento firmado pela 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em acórdão da lavra do Exmo Sr Desembargador Federal Mário César Ribeiro, no sentido de que:
“2. O território indígena é constituído não só pela área efetivamente ocupada pelo grupo tribal, isto é, a que circunscreve a aldeia e as roças, mas também as imprescindíveis à conservação de sua identidade étnico-cultural
3.A área de residência dos Cinta Larga ‘muda periodicamente, em intervalo aproximado de cinco (05) anos, em entendimento a fatores ecológicos e religiosos, sem entretanto sair dos limites da terra definida como pertencente à patrilhinhagem. Por serem caçadores e coletores os Cinta Larga têm grande mobilidade, mas em nenhuma hipótese o território por onde se deslocam pode ser classificado de ‘área de perambulação’. Trata-se de ocupação efetiva’ (CARMEM JUNQUEIRA – Antropóloga)” .

Neste exemplo é interessante observar como o órgão julgador interpreta o conceito de habitação, com base em correto suporte antropológico, de forma adequada aos usos e costumes do grupo indígena objeto da demanda judicial.

O § 2º do art. 231 da CF, ao assegurar que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são destinadas “a sua posse permanente...”, explicita que aos índios é destinado o direito de estabelecerem-se de maneira constante e da forma que seus valores culturais determinam, usando e aproveitando dos bens que a natureza lhes proporciona.

No dizer do Professor José Afonso da Silva:
“Quando a Constituição declara que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios se destinam a sua posse permanente, isso não significa um pressuposto do passado como ocupação efetiva, mas, especialmente, uma garantia para o futuro, no sentido de que essas terras inalienáveis e indisponíveis são destinadas, para sempre, o seu habitat. Se se destinam (destinar significa apontar para o futuro) à posse mesma, e é o direito originário já mencionado” .

Outro aspecto relevante consiste na circunstância de que o direito dos índios à posse permanente das terras que tradicionalmente ocupam independe da sua demarcação.

Ao apreciar a Questão de Ordem na Ação Cível Originária nº 312, suscitada por seu então Relator, o Min. Nelson Jobim, foi expressamente consignado na ementa do Acórdão da decisão unânime adotada por esta Suprema Corte, que:
“TERRAS INDÍGENAS NÃO DEMARCADAS PELA UNIÃO. DESNECESSIDADE DE PRÉVIA DEMARCAÇÃO ADMINISTRATIVA. PROSSEGUIMENTO DO JULGAMENTO PELO TRIBUNAL PARA EMISSÃO DE JUÍZO CONCLUSIVO SOBRE A SITUAÇÃO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DAS ÁREAS ABRANGIDAS PELOS TÍTULOS.
Questão de Ordem que assim se resolve:
(1) a demarcação prévia da área abrangida pelos títulos, não é, em si, indispensável ao ajuizamento da própria ação;
(2) o Tribunal pode examinar se a área é indígena ou não para decidir pela procedência ou improcedência da ação”

Constatado que uma terra esteja tradicionalmente ocupada por uma ou algumas comunidades indígenas este fato acarreta inexoravelmente a aplicação do disposto no § 6º do mesmo art. 231 da CF, de forma que quaisquer atos que visem a posse, o domínio ou a ocupação destas terras serão nulos de pleno direito, pouco importando estarem as terras demarcadas ou não, como inclusive já fora decidido por unanimidade pela 4ª Turma do TRF da 1ª Região, em processo relatado pela então Desembargadora Federal Eliana Calmon:
“Constitucional – Área Indígena – Título de Domínio – Indenização
1. Comprovada ser a área de posse imemorial dos índios, torna-se de pleno direito nulo o título dominial, sem necessidade de declaração judicial (art.231, parag. 6, da CF/88).
2. Não tem direito a indenização por benfeitorias o possuidor de má-fé.
3. Apelo improvido”

No mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal se manifestou, por ocasião do julgamento da Ação Cível Originária nº 323, declarando a nulidade dos títulos imobiliários incidentes na terra tradicionalmente ocupada pelo Povo Indígena Krenak, no Estado de Minas Gerais, em Acórdão, Relatado pelo Ministro Francisco Resek, assim ementado:
“AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA. TÍTULOS DE PROPRIEDADE INCIDENTES SOBRE ÁREA INDÍGENA. NULIDADE.
Ação declaratória de nulidade de títulos de propriedade de imóveis rurais, concedidos pelo governo do Estado de Minas Gerais e incidentes sobre área indígena imemorialmente ocupada pelos índios Krenak e outros grupos.
Procedência do pedido” .

Cumpre observar que a Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, que dispõe sobre o Estatuto do Índio já dispunha neste sentido no seu art. 25, nos seguintes termos:
“O reconhecimento do direito dos índios e grupos tribais à posse permanente das terras por eles habitadas, nos termos do artigo 198 da Constituição Federal, independerá de sua demarcação, e será assegurado pelo órgão federal de assistência aos silvícolas, atendendo à situação atual e ao consenso histórico sobre antigüidade da ocupação, sem prejuízo das medidas cabíveis que, na omissão ou erro do referido órgão, tomar qualquer dos Poderes da República”

Este dispositivo legal, como o tratamento infraconstitucional sobre a posse indígena, expresso nos arts. 18, 22 e 23 da Lei nº 6.001/73, estão em pleno vigor por estarem em perfeita sintonia com o disposto no atual ordenamento constitucional, tendo sido, por isso recepcionados pela Constituição de 1988.

2.2. O usufruto exclusivo assegurado constitucionalmente aos índios

O usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos, assegurado aos índios nas terras por eles tradicionalmente ocupadas tem assumido destaque na reflexão jurídico indigenista, tendo em vista sua implicação na integridade do patrimônio indígena, no que tange a utilização das riquezas naturais existentes nas suas terras e consiste em instituto jurídico, que a exemplo da posse permanente deve ser compreendido com base em parâmetros do direito público.

Incorporado inicialmente ao ordenamento normativo brasileiro com a Constituição de 1967, no qual em seu art. 216 reconhecia o direito indígena ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas utilidades existentes nas terras indígenas, com o art. 24 da Lei nº 6.001/73, o legislador ordinário regulou este instituto, ao dispor que:
“O usufruto assegurado aos índios ou silvícolas compreende o direito à posse, uso e percepção das riquezas naturais e de todas as utilidades existentes nas terras ocupadas, bem assim ao produto da exploração econômica de tais riquezas naturais e utilidades.
§ 1º - Incluem-se, no usufruto, que se estende aos acessórios e seus acrescidos, o uso dos mananciais e das águas dos trechos das vias fluviais compreendidos, nas terras ocupadas.
§2º - É garantido ao índio o exclusivo exercício da caça e pesca nas áreas por ele ocupadas, devendo ser executadas por forma suasória as medidas de polícia que em relação a ele eventualmente tiverem de ser aplicadas”.

A exclusividade determinada aos índios pelo texto constitucional para o exercício do usufruto, decorre do fato das comunidades indígenas serem as únicas titulares dos direitos de uso e fruição das riquezas naturais existentes no solo, nos rios e lagos das terras que tradicionalmente ocupam.

A União Federal, enquanto titular do domínio não pode exercer o terceiro atributo da propriedade, a disponibilidade, por força de expressa vedação constitucional e a nulidade de qualquer ato que restrinja a posse da terra pelos índios, representa singularidade deste instituto aplicado aos povos indígenas e que deve ser muito bem considerada.

Esta singularidade decorre ainda da circunstância das terras indígenas deverem ser compreendidas como “habitat” de um povo, conforme já se manifestou o Ministro Victor Nunes Leal, no julgamento do Mandado de Segurança nº 16.443-DF, em 9 de novembro de 1.967 :
“Parece, pois, que o simples fato de pertencerem à União as terras ocupadas pelos índios, não as sujeita integralmente ao regime local de venda dos bens públicos, dado o seu caráter de inalienabilidade. Não está envolvido, no caso, uma simples questão de direito patrimonial, mas também um problema de ordem cultural, no sentido antropológico, porque essas terras são o habitat dos remanescentes das populações indígenas do País. A permanência dessas terras em sua posse é condição de vida e sobrevivência desses grupos; já tão dizimados pelo tratamento recebido dos civilizados e pelo abandono em que ficaram.
A Constituição atual foi além da anterior, que só protegia a posse, porque ela também protege o usufruto exclusivo, pelos índios, dos recursos naturais e de todas as utilidades existentes nas terras. Pela Constituição, mesmo a alienação de certos frutos essas áreas podem ficar dependendo de condições que não sejam normalmente exigidas para alienação dos bens públicos em geral”.

O usufruto, direito real de uso e fruição de determinado imóvel transferido do proprietário para o usufrutuário implica, naturalmente na possibilidade dos índios plantarem, coletarem frutos, pescarem, caçarem, enfim, utilizarem plenamente as riquezas naturais existentes no solo, no rio e nos lagos das terras que tradicionalmente ocupam, inclusive explorando-os economicamente.

Ocorre que esta utilização deve ser feita respeitando-se determinados balizamentos próprios ao ordenamento jurídico aplicável aos índios.

A questão não oferece maiores complicações, quando se considera o usufruto para a realidade de comunidades indígenas que, em razão de seu pouco contato com a sociedade brasileira, utilizam as riquezas naturais existentes em suas terras para sua subsistência, ou seja, plantam, caçam, coletam para seu próprio consumo.

Nestes casos, as comunidades indígenas realizam todas as operações necessárias ao uso e à utilização dos resultados das riquezas naturais existentes em suas terras. De certa forma, pode-se considerar ser este o modelo econômico tradicionalmente conhecido e praticado por comunidades indígenas, quando, pelo seu grau de contato, revelavam-se auto-suficientes em suas necessidades materiais e alimentícias.

Mas quando as comunidades indígenas, para conseguir viabilizar a aquisição de bens industrializados, manufaturados e têxteis, já incorporados ao seu cotidiano, são levadas a produzir determinados excedentes, como farinha de mandioca, para comercializarem na localidade mais próxima de suas aldeias ou por intermédio de comerciantes que circulam pelos interiores , iniciando-se uma nova e inesgotável experiência econômica, cuja apropriação e conhecimento por muitas comunidades indígenas se processa lentamente.

Com o avanço da relação com a realidade econômica de outras sociedades, impulsionadas mesmo pelo contato empreendido por agentes de frentes de expansão econômica nas regiões, as comunidades indígenas vão sendo expostas a uma quantidade de objetos com base tecnológica distinta das que então produziam, como panelas, facas e redes e naturalmente passam a utilizá-los, acarretando, com isso inevitáveis dependências a estes bens industrializados e manufaturados.

Esta situação repercute inevitavelmente sobre o patrimônio das comunidades indígenas, na medida em que suas necessidades passam a lhes pressionar para que suas riquezas venham a ser utilizadas para a satisfação das novas exigências de consumo.

A venda de madeira assume, assim, a condição de um dos principais problemas. Com o avanço de empreendimentos econômicos sobre regiões amazônicas, a construção de estradas implica no desbravamento de regiões florestais e uma das primeiras e principais atividades econômicas consiste na exploração madeireira. Com a construção da BR-364 , foi isso que se verificou, inclusive porque esta rodovia cortou ao meio o território do povo Nambikwara. Atualmente as terras indígenas localizadas nas regiões de Rondônia, norte do Mato Grosso e sul do Pará continuam sendo as mais atingidas.

Além disso, a exploração minerária por garimpeiros representa outro grave problema, que como os madeireiros, se aproximam de membros de comunidades indígenas para obterem supostas e ilegítimas permissões para ingressar nos limites de suas terras, acenando vultosos ganhos econômicos, que em regra jamais se concretizam.

Situar a análise jurídica do instituto do usufruto exclusivo neste contexto social é relevante, na medida em que sua aplicação poderá servir ao agravamento desta situação, ou poderá contribuir para que alternativas eficazes venham a ser apresentadas aos povos indígenas, como mecanismo para a superação de suas dificuldades econômicas.

No que se refere à exploração madeireira, cumpre assinalar que ainda prevalece, em expressivas áreas do Ministério Público Federal e do Poder Judiciário, o entendimento segundo o qual as comunidades indígenas não têm direito de dispor das árvores naturais existentes nas suas terras, pelo fato de integrarem o patrimônio público federal, já que nos termos do Código Civil brasileiro, as árvores e os frutos pendentes estão compreendidos nos imóveis representados pelas terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, bens que são da União.

Em que pese a relevância deste argumento e consciente das implicações sociais e jurídicas de entendimento distinto, não se pode desconsiderar que com a Lei nº 6.001/73, o seu art. 46 excepcionou, em relação às terras indígenas o referido dispositivo do Código Civil, por prever a possibilidade do corte de madeira nas terras indígenas:
“O corte de madeira nas florestas indígenas consideradas em regime de preservação permanente, de acordo com a letra g e § 2º, do artigo 3º do Código Florestal, está condicionado à existência de programas ou projetos para o aproveitamento das terras respectivas na exploração agropecuária, na indústria ou no reflorestamento”.

Este dispositivo legal contém, porém uma impropriedade. Indicar que o aproveitamento das terras objeto do corte de árvores será na exploração agropecuária, na indústria ou no reflorestamento não respeita a destinação da terra para a posse e usufruto exclusivo dos índios. Ademais, esta orientação não se coaduna com o atual ordenamento constitucional. De acordo com o disposto no inciso IV do § 1º do art. 225 da CF “...para a instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente...” deverá ser realizado estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade. Além disso, ainda de acordo com o texto constitucional, incumbe ao poder público, nos termos do art. 225, § 1º, VII, “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”. E por fim, conforme dispõe o § 4º do art. 225 da CF: “a Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais”.

Embora possa ser aceitável o corte de árvores pelos índios em florestas localizadas em terras indígenas, esta atividade deverá ser precedida de estudo de impacto ambiental e nos termos da legislação ambiental deverá estar cercada de cautelas destinadas ao cumprimento das demais exigências constitucionais

A conseqüência prática deste entendimento é que as comunidades indígenas e não seus membros individualmente, podem usar e obter os rendimentos de todas as riquezas naturais existentes no solo, nos rios e nos lagos de suas terras, inclusive sobre as árvores, desde que atendam as exigências constitucionais e legais destinadas a preservação desta riqueza natural, para que o conjunto destas riquezas não se deteriore, garantindo a sua utilização por outras gerações, ou seja sem comprometer a existência e a utilização futura das riquezas naturais para as gerações vindouras dos povos indígenas.

Em síntese pode-se estabelecer, à título de delineamento para o usufruto exclusivo das riquezas naturais pelos índios que:
1. o uso e o aproveitamento das riquezas naturais do solo, dos rios e lagos existentes nas terras que tradicionalmente ocupam não pode comprometer a existência e a utilização futura destas riquezas, ou seja não se pode admitir que uma floresta seja extinta;
2. o uso e o aproveitamento econômico das riquezas naturais existentes em suas terras não implique em perda ou limitação do exercício da posse permanente, sob pena do ato jurídico ensejador da atividade ser nulo de pleno direito, por violação ao disposto no § 6º do art. 231 da CF.

A propósito deste tema, o Prof. Roberto Araújo de Oliveira Santos, respondendo a consulta sobre a questão da parceria pecuária em terra indígena situa com muita propriedade o conceito deste instituto do usufruto exclusivo assegurado aos índios, observando que:
“...não se pode interpretar a Constituição como se ela tratasse seus destinatários de modo irônico ou desleal, dando, por exemplo, às populações indígenas um presente de grego: outorgar-lhes o usufruto, por um lado e, por outro, interditar-lhes o gozo das riquezas da terra. O chamado usufruto exclusivo corresponde a modalidade algo distinta da estudada na doutrina civil tradicional, mas no conjunto suas bases conceituais são idênticas. E, como veremos, esse usufruto não priva o usufrutuário de usar a terra e fruir seus frutos de forma normal” .

Em outra passagem Prof. Roberto Santos complementa:
”O que a Constituição tem em vista, seguramente, é não coonestar nenhum tipo de desenvolvimento do usufruto que implique perda da posse por parte dos índios. Os dois institutos, o usufruto exclusivo e a posse permanente, completam-se e se apóiam reciprocamente. A posse é necessária e deve ser permanentemente afirmada. Mas ela, só, não basta às comunidades indígenas, que precisam empregar as riquezas possuídas na sua própria manutenção, no seu lazer, no desfrute de seus valores culturais e, se o quiserem, na absorção da cultura chamada branca. Por seu turno, o usufruto não é um usufruto qualquer, mas uma variante que preserva todo tempo a posse da terra, base da segurança econômica e do futuro biocultural da sociedade indígena” .

Este parecer do Prof. Roberto Santos, representa um marco no processo de reflexão sobre os institutos jurídicos aplicados aos povos indígenas e destinados à proteção legal de seus direitos territoriais. Resultado que é de um esforço para solucionar uma das invasões de terra indígena mais antiga, moldada sob a forma de arrendamento para a utilização do pasto em território do povo Kadiwéu, no Estado do Mato Grosso do Sul delineia a forma da parceria pecuária de maneira a preservar os direitos constitucionais dos índios. Isto implicaria em que os donos dos gados tivessem que recontratar a atividade pecuária, de forma que os índios passassem a exercer plenamente a atividade econômica. Desta forma estariam usufruindo as riquezas do solo, explorando-as economicamente em seu benefício, ou seja de maneira exclusiva.

Nas explorações madeireiras e garimpeira, somente para enfatizar estas duas modalidades de atividade econômica que mais problemas têm acarretado aos povos indígenas, as cautelas preconizadas na reflexão do Prof. Roberto Santos, como decorrência precisa dos parâmetros constitucionais e legais em vigor devem ser integralmente aplicadas.

A comunidade indígena que tenha interesse em proceder ao aproveitamento econômico de árvores em suas terras, poderá implementar as providências legais e administrativas indispensáveis ao seu propósito. Porém, observe-se que é a comunidade indígena a titular do empreendimento e a responsável por sua execução. Se para tanto for necessário e fatalmente seria, a contratação de profissionais, técnicos e operadores de máquinas para a consecução do projeto, nada estará a objetar.

As terras tradicionalmente ocupadas por índios são, de acordo com o § 4º do art. 231 da CF “inalienáveis, indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”. Dessa forma, o constituinte originário formatou a moldura jurídico-constitucional aplicada às terras indígenas, firmando a determinação de que as terras tradicionalmente ocupadas pelo índios se destinam a eles. Não podem ser alienadas a qualquer título. Não podem ser destinadas para outros fins, que não seja a posse permanente e o usufruto exclusivo do solo, dos rios e dos lagos nas terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, não estando, portanto disponíveis para quaisquer outras finalidades. Em conseqüência, como elevada garantia contra quaisquer formas de usurpação de seus direitos constitucionais, os direitos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam não prescrevem.

E reiterando o núcleo normativo do texto constitucional anterior (1967/69), o § 6º do art. 231 da CF estabelece que:
“São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé”.

Com este dispositivo, o constituinte originário manteve a disposição em explicitar as conseqüências dos atos que impliquem na restrição aos direitos indígenas.

Se aos índios é assegurada a posse permanente sobre suas terras, o usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes no solo, rios e lagos nelas existentes; se são consideradas inalienáveis e indisponíveis é evidente que a incidência de ato de qualquer natureza, portanto atos particulares, como o título imobiliário resultante de contrato de compra e venda, ou atos administrativos originários de qualquer ente da administração pública direta, indireta e autárquica, como decretos dispondo sobre a construção de estradas, ou Decretos e Portarias determinando a construção de bens públicos em terras tradicionalmente ocupadas por índios, não podem repercutir validamente sobre algo cuja destinação está gravada pela Constituição, para a posse e o usufruto índígena.

O texto constitucional inova na ressalva quanto à possibilidade das benfeitorias derivadas de ocupação de boa-fé serem indenizadas. Esta providência revelou-se útil e socialmente justa, tendo em vista a necessidade de que muitos posseiros, assentados em terras indígenas por órgãos públicos estaduais e federal serem ressarcidos quanto às benfeitorias feitas ou construídas no terreno.

2.3. As hipóteses de restrições constitucionais à posse permanente e ao usufruto exclusivo sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios

Os direitos assegurados constitucionalmente aos índios têm, seus limites, como decorrência da própria relação de autonomia no âmbito da organização estatal.

A seguir, cada uma das quatro restrições previstas constitucionalmente aos direitos territoriais dos índios são analisadas, ou seja, as exceções à regra geral, segundo a qual são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras indígenas.

2.3.1. Pesquisa e lavra de recursos minerais e Aproveitamento dos recursos hídricos e dos potenciais energéticos

O texto constitucional promulgado em 1988 dispõe sobre a exploração de minérios em terras indígenas junto com a possibilidade de aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos, fixando no § 1º do art. 176 e no § 3º do art. 231, da C.F. as seguintes exigências comuns:
a) autorização do Congresso Nacional (art.49, XVI da CF) ;
b) prévia audiência das comunidades indígenas afetadas;
c) condições específicas para o desenvolvimento das atividades;
d) participação nos resultados da lavra.

Ao contrário do que ocorria na vigência da Constituição passada e do que prevalece para regiões não-indígenas do país, a autorização para esta atividade foi deslocada do Poder Executivo para o Poder Legislativo, o qual deverá se capacitar para desincumbir-se desta nova atribuição.

Este preparo deve consistir no municiamento, pelo Congresso, de informações e assessoria competente para analisar as solicitações de maneira independente.

A prévia audiência das comunidades indígenas afetadas constitui-se também numa inovação legislativa no Brasil. Esta possibilidade ainda não foi suficientemente estudada no tocante à sua natureza, significado e implicações.

Ao se prever que as comunidades afetadas serão ouvidas a respeito do pedido de autorização para pesquisa e concessão de lavras ou de aproveitamento dos recursos hídricos, está-se proporcionando a realização de consulta ao grupo étnico a cerca de suas impressões sobre a matéria.

Esta manifestação deve ser interpretada como expressão da situação jurídica dos índios que possuem status de grupo social autônomo, ocupando uma região gravada por esta qualidade constitucional e que o poder constituinte, no exercício de sua soberania, inseriu uma ressalva a autonomia assegurada a estes grupos étnicos sobre seus territórios, consistente no aproveitamento, por terceiros, de algumas das riquezas naturais existentes em suas terras.
Compreendendo assim a relação dos povos indígenas com o Estado entende-se a prévia audiência das comunidades indígenas afetadas como um mecanismo de tratamento e acomodação do problema entre o Estado, através de seu Poder Legislativo e o grupo étnico.

Neste sentido, a audiência poderá revelar aspectos ao Poder Legislativo que assumam dimensão decisória.

Com esse mecanismo podem ser revelados aspectos intrínsecos da vida da comunidade, os quais recomendem a desautorização da atividade ou a sua autorização com reservas ou condições.

Outro aspecto relacionado pela Constituição consiste na discriminação, em lei ordinária de condições específicas para o desenvolvimento da atividade minerária em terras indígenas.

Com tal referencial o constituinte originário quis sinalizar sobre a necessidade de providências acauteladoras contra distúrbios que na vida dos povos indígenas possam ser provocados de maneira irreversível ou irreparável.

O desenvolvimento das atividades previstas no § 1º do art. 176 da C.F. (exploração mineral e aproveitamento de recursos hídricos), a depender da dimensão da mina ou da barragem, pode desencadear uma série de interferências no grupo étnico, que por sua vez, dependendo do grau de contato e de compreensão sobre a realidade da sociedade envolvente, sofrerá repercussões as quais devem ser previstas antecipadamente para que se tente minorar ao máximo os inevitáveis distúrbios.

As condições específicas para o desenvolvimento das atividades em análise, devem assim, ser contempladas em quatro níveis:
1. os requisitos necessários, para que seja emitida a autorização pelo Congresso Nacional;
2. os requisitos próprios ao desenvolvimento das atividades na terra indígena exigíveis em todos os povos e em relação a todas as atividades;
3. as condições específicas peculiares a cada povo;
4. as condições específicas particulares a cada povo.

Os dois primeiros níveis de condições deverão, necessariamente, estar previstos na lei ordinária a que se refere o dispositivo constitucional. O terceiro nível de condições deverá estar contemplado no Decreto Legislativo do Congresso Nacional que autorizar as atividades e o quarto nível de condições seria reservado para a possibilidade de novos acertos entre a empresa e a comunidade ou povo indigena, previsto em ato bilateral firmado pelas partes e sob a fiscalização do Ministério Público.

As informações e comprovações que comporão os requisitos para que o Congresso Nacional aprecie o pedido de autorização deverão proporcionar aos membros do Poder legislativo um conhecimento das dimensões do empreendimento quanto a sua infra-estrutura e recursos humanos, o potencial minerário, o tempo de duração da atividade e o espaço físico a ser objeto da exploração. Também deverá ser providenciado laudo etno-histórico do grupo étnico que ocupa a área objeto do pedido de autorização e análise antropológica das repercussões da atividade na organização social do grupo e as implicações, no povo, da utilização do local indicado para a exploração mineral.

Quanto ao desenvolvimento da atividade em si, algumas questões precisam ser analisadas para que o espírito protetivo da Constituição se realize. As atividades minerárias e de aproveitamento de recursos hídricos demandam significativa quantidade de mão-de-obra, por longo período de tempo, o que significa risco de contatos os quais, se realizados de maneira rude e desrespeitosa tendem a acarretar graves conseqüências. Além disso, o controle da movimentação da área, o cuidado com a saúde dos funcionários e o acompanhamento antropológico destes, para que possam, por meios educativos, conscientizarem-se de que estão laborando em território indígena no qual seus possuidores detém poder de autonomia frente ao Estado brasileiro, deve ser objeto de previsão legal.

Embora seja evidente a impossibilidade legal de que os serviços e espaços de apoio à realização das atividades minerárias e aproveitamento de recursos hídricos se realize nos limites de terras indígenas, talvez a explicitação desta circunstância seja conveniente, devido às implicações com o custo do investimento, repercutindo assim no interesse sobre a atividade em terra indígena.

A participação nos resultados da lavra também merece reflexão apurada quanto à fiscalização da quantidade do minério concentrado, isto é, do produto mineral já beneficiado e não em estado bruto, extraído da mina, sobre o qual incidirá percentual a ser fixado na lei.

2.3.2. Remoção de grupos indígenas de suas terras

Por ocasião da apresentação do anteprojeto de Constituição do Relator da Comissão de Sistematização do Congresso Constituinte, foi prevista a possibilidade de que os povos indígenas fossem removidos de suas terras em caso de catástrofe ou epidemia e no caso de interesse da soberania do país.

Tal proposição correspondia às preocupações da então Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional, a cujo titular interessava em garantir no texto constitucional mecanismos que permitissem à União deslocar grupos indígenas de trechos da Faixa de Fronteira, em especial na região de atuação do Projeto Calha Norte.

Dessa forma, esta restrição aos direitos indígenas sobre suas terras, a exemplo da exploração mineral e do aproveitamento de recursos hídricos, foi admitida, porém condicionada à autorização do Poder Legislativo Federal, conforme restou previsto no § 5º do art. 231 da CF.

Admitiu-se, porém, que nos casos de catástrofe ou epidemias que ponham em risco a população indígena, a autorização do Congresso seja decidida posteriormente à remoção, tendo em vista a eventual urgência de ação da administração pública.

Já no caso de interesse da soberania nacional os constituintes originários firmaram o entendimento de que remoção de grupo indígena fundada neste motivo está condicionada a prévia deliberação do Congresso Nacional.

Afastou-se, assim, o risco de que o Presidente da República, ouvido o Secretário do Conselho de Defesa Nacional ou provocado pelo Gabinete de Segurança Institucional - GSI ou mesmo pelo Ministro da Defesa, pudesse determinar a remoção de grupo indígena de suas terras, circunstância na qual os setores diretamente afetados apenas saberiam do ato quando a remoção estivesse em curso ou já consumada.

Uma garantia que também restou firmada consiste no caráter transitório deste tipo de constrição ao direito dos índios ao seu território. Em qualquer hipótese, o retorno deve ser imediato logo que cesse o risco. Naturalmente que o Congresso Nacional deverá estipular mecanismo de aferição do término do risco fixando um prazo de validade para a remoção, a qual possa ser prorrogada mediante expressa autorização do poder competente.

Portanto, evidencia-se, inclusive pelas preocupações e o contexto político em que os constituintes deliberaram sobre esta matéria, que esta foi a equação normativa encontrada para compatibilizar as preocupações de órgãos governamentais com a defesa da soberania do Estado Brasileiro, com os direitos constitucionais assegurados aos índios, como também é expressão desta compatibilização a exceção prevista no § 6º do art. 231 da CF, prevendo lei complementar para dispor sobre os atos de relevante interesse da União, que terão validade em terras indígenas, conforme será analisado a seguir.

2.3.3.Atos de relevante interesse da União

A exemplo das outras restrições, algumas forças político-parlamentares na constituinte, para firmarem o acordo de lideranças que viabilizou a aprovação do texto em relação aos índios, manifestaram a preocupação no sentido de que fosse inserida uma exceção na regra do atual § 6º do art. 231, onde ficam declarados nulos e extintos os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.

Tratava-se de prever a validade de atos em terras indígenas, sob o argumento de que a regra nulificando os atos de qualquer natureza que visem à posse, o domínio ou a ocupação de terras indígenas, seria demasiadamente ampla, podendo acarretar prejuízos ao desenvolvimento de regiões e por conseqüência do país.

Mas como não se tinham como discriminar os atos que teriam validade, aceitou-se restringir esta exceção aos atos de relevante interesse da União. Com isso, afastou-se a possibilidade de validação de atos particulares, estaduais e municipais.

Além disso, vinculou-se a discriminação dos atos de relevante interesse da União que visem à posse, o domínio ou a ocupação de terras indígenas e que terão validade em terras indígenas à aprovação pelo Congresso Nacional de Lei Complementar à Constituição.

Desde 1990, por iniciativa da Mesa do Senado Federal, tramita, já aprovado pelo Senado, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei Complementar nº 260, de 1990, que visa dispor sobre os atos de relevante interesse da União em terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.

Da mesma forma, espera-se que o Congresso Nacional conclua a revisão da Lei nº 6.001, de 1973, que dispõe sobre o Estatuto do Índio, por intermédio da deliberação dos Projetos de Lei 2.057/90, 2.160/90 e 2691/92, que visam dispor, respectivamente sobre o “Estatuto das Sociedades Indígenas”, o “Estatuto das Comunidades Indígenas”, e o “Estatuto dos Povos Indígenas”, já analisados por Comissão Especial da Câmara dos Deputados em junho de 1994, quando foi aprovado Substitutivo da Relatoria do Deputado Federal Luciano Pizzatto (do então PFL/PR, atual DEM/PR). Desde 6 de dezembro de 1994, esta matéria está com sua tramitação sobrestada na Mesa da Câmara dos Deputados, aguardando a apreciação de recurso interposto por parlamentares, para que o Substitutivo e os Projetos de Lei que lhe deram origem sejam apreciados pelo Plenário da Câmara dos Deputados.

3. Demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios

3.1. A competência da União para demarcar as terras indígenas

O caput do art. 231 da CF fixou a competência da União para demarcar as terras indígenas.

Em conseqüência, tratando-se a demarcação de ato administrativo declaratório de limites de terra tradicionalmente ocupada por índios, cabe à Administração Pública a responsabilidade em providenciar o cumprimento do comando constitucional.

Por sua vez, a Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973, por seu art. 19 estabelece, como expressão normativa do Poder Legislativo da União, devidamente recepcionada pela Constituição de 5/10/1988, que as demarcações serão implementadas de acordo com processo estabelecido em decreto do Presidente da República e cuja demarcação será por ele homologada, conforme previsto no § 1º do art. 19 da Lei nº 6.001/73. Resulta disso, que os Decretos do Presidente da República que homologam demarcações administrativas de terras indígenas estão amparados em determinações constitucionais e legais.

A União pratica, portanto os atos que o constituinte originário lhe atribuiu, de acordo com o que a legislação infraconstitucional e o decreto regulamentar estabelecem, por intermédio de sua estrutura administrativa, cuja direção superior é exercida, repita-se pelo Presidente da República, com o auxílio dos Ministros de Estado.

Daí a integral legitimidade do Presidente da República, como do Ministro de Estado da Justiça, e da própria Funai, para proceder à identificação e delimitação da área, à declaração dos limites a serem demarcados e à homologação da demarcação feita administrativamente pela Funai, enquanto ente autárquico encarregado do trato das questões indígenas na administração pública federal.

Imaginar que o Presidente da República somente pode praticar os atos relacionados no art. 84 da Constituição Federal implica negar o disposto no inciso XXVII deste mesmo dispositivo constitucional, na medida em que prevê “outras atribuições previstas nesta Constituição”.

E uma destas “outras atribuições” consiste exatamente na conformação de ato administrativo previsto em lei recepcionada pelo texto constitucional em vigor, de forma a possibilitar a consumação de atribuição fixada para o ente administrativo, cuja direção superior é exercida pelo Presidente da República.

Trata-se, por fim, ao contrário do que alguns erroneamente sustentam, em especial o Estado de Roraima, nestes autos, da estrita aplicação do princípio da legalidade.

A respeito da legitimidade do procedimento administrativo para a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas por índios, o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade analisar a questão e se posicionar, acompanhando o Voto da Exmª Senhora Ministra Ellen Gracie, no julgamento do Mandado de Segurança nº 23.862, no qual S. Excia. consigna que:
“Essa demarcação administrativa tem respaldo Constitucional (CF, art. 231) e é nesse procedimento administrativo, disciplinado pela legislação infraconstitucional, que os interessados devem discutir direitos eventualmente postergados”

Vale dizer que o constituinte originário, o legislador ordinário e a autoridade com poderes para dispor como determinado órgão da administração federal irá funcionar, editaram atos normativos que, em sua conformação sistêmica, indicam e determinam atribuição específica ao Presidente da República, no sentido de homologar a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.

No mesmo sentido, acreditar que o Presidente da República somente possa homologar a demarcação de uma terra indígena após prévia autorização do Congresso Nacional, implica admitir inaceitável atentado ao princípio constitucional da separação de poderes. No caso, ponderando que a demarcação de terras indígenas decorre da reunião de provas, em especial documentais e periciais da ocupação tradicional de uma terra por índios, acompanhadas de outras informações complementares e tais providências se situam no âmbito da execução dos atos normativos, atribuição esta típica da administração à cargo do Poder Executivo.

A natureza mesma do ato administrativo que demarca uma terra indígena o situa no âmbito das responsabilidades do Poder Executivo, não tendo sentido que o Poder Legislativo venha a praticar tal ato, como também pretendem alguns, como Estado de Roraima. A premissa adotada pelo Estado de Roraima, para sustentar que a demarcação de terras pela União só pode se efetivar por intermédio de lei formal é equivocada, pelo fato das terras tradicionalmente ocupadas por índios não incidirem, como jamais incidiram em terras devolutas do Estado de Roraima. Ou seja jamais foram terras devolutas.

3.2. A natureza jurídica da demarcação das terras indígenas;

Demarcar uma terra indígena consiste em explicitar oficialmente os limites das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.

Trata-se de ato administrativo complexo, de natureza declaratória. Vale dizer, que ao se demarcar uma terra tradicionalmente ocupada por índios, o poder público não constitui direito algum para os índios. Com os atos administrativos declaratório de ocupação, praticado atualmente pelo Ministro de Estado da Justiça e homologatório, da competência do Presidente da República, a União evidencia os limites de um bem seu, cuja destinação é constitucionalmente afetada aos índios que tradicionalmente ocupam a terra em questão.

A propósito desta questão, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial nº 802.412-PB reconheceu a natureza declaratória do ato administrativo com base no qual é feita a demarcação das terras indígenas, conforme expresso no seguinte trecho da Ementa do Acórdão:
“...
8. As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios não perdem essa característica por ainda não terem sido demarcadas, na medida em que a demarcação tem efeito meramente declaratório....”

3.3. O procedimento administrativo para a demarcação das terras indígenas

Para consumar esta explicitação de limites, a administração pública indigenista orienta-se pelo disposto na Constituição e na Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1073, onde seu art.19 determina que "as terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo".

Neste processo o poder público federal:
1. reúne os elementos de prova da ocupação tradicional;
2. delimita a área a ser demarcada através de um ato administrativo, onde são declarados os limites das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e é determinada sua demarcação administrativa;
3. demarca os limites da terra indígena;
4. homologa a demarcação feita; e
5. registra o domínio da terra indígena demarcada em cartório e no Serviço de Patrimônio da União.

Cada uma dessas tarefas corresponde a uma fase do procedimento administrativo.

Na fase conhecida como identificação, ocorre a produção ou a reunião dos elementos de prova da ocupação da terra por uma ou algumas comunidades indígenas. Iniciado o procedimento administrativo para a demarcação de uma terra indígena o órgão indigenista, por Portaria de seu Presidente constitui um Grupo Técnico composto preferencialmente por servidores do próprio órgão e sob a coordenação de antropólogo, com a finalidade de realizar estudos complementares de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e levantamento fundiário (§1º, art. 2º Dec.1775/96 ).

A fase da delimitação consiste na declaração dos limites em ato administrativo próprio do Ministro de Estado da Justiça, que por sua vez também determina a demarcação administrativa da terra indígena conforme a delimitação constante na Portaria assinada por ele. O Ministro da Justiça, após analisar todo o procedimento administrativo para a demarcação pode no prazo de 30 dias declarar os limites da terra indígena, prescrever diligências que julgue necessárias, ou desaprovar a identificação, mediante decisão fundamentada, demonstrando o não atendimento ao disposto no §1º do art. 231 da CF (§ 10, art. 2º, Dec.1775/96 ).

A fase da demarcação compreende a colocação de marcos oficiais nos limites da terra indígena, de acordo com a delimitação constante na Portaria do Ministro da Justiça.

A homologação consiste no ato administrativo da competência do Presidente da República, no qual o Chefe da Administração Pública Federal confirma e chancela a demarcação realizada. Este ato formal desencadeia a fase da regularização imobiliária.

Na regularização a administração pública procede o registro da área demarcada e homologada no Serviço de Patrimônio da União e no Cartório de Registro imobiliário da comarca onde a terra indígena se localiza. É neste momento em que se materializa um conflito de interesses jurídicos entre a União e um particular, decorrente do procedimento administrativo para a demarcação de terras indígenas, tendo em vista a eventual existência de título imobiliário incidente nos limites das terras indígenas demarcadas. É nesta fase e somente nesta ocasião que teria sentido cogitar-se do exercício do contraditório. De acordo com a sistemática prevista na Lei nº 5.972, de 11 de dezembro de 1973, afigura-se possível que o juízo federal possa ordenar, de ofício ou a requerimento da União, a notificação de terceiro interessado para, no prazo estipulado pelo juiz, impugnar o registro requerido, juntando as provas que entender necessárias.

No procedimento administrativo para a demarcação das terras indígenas ainda existem algumas atividades que merecem ser registradas, tendo em vista sua relevância:

1. Levantamento fundiário – objetiva conhecer os bens de valor econômico pertencentes a não-índios e inseridos nos limites definidos da terra indígena. A rigor este levantamento fundiário não deve ser considerado parte integrante da identificação de uma terra tradicionalmente ocupada por índios, mas uma providência administrativa correlata à identificação. Enquanto que com a identificação, ou melhor com os estudos etnohistóricos e sociológicos busca-se conhecer a organização social e os valores culturais que determinam a forma de ocupação de uma terra por comunidades ou povos indígenas, com o levantamento fundiário pretende-se obter informações sobre a dimensão e qualidade de ocupações da terra identificada por não índios. A relevância deste levantamento de informações sobre a situação fundiária incidente na terra indígena está:
a) na previsão do § 6º do art. 231 da Constituição quanto a possibilidade das benfeitorias derivadas de ocupação de boa-fé serem indenizadas pela União;
b) no estabelecimento, no art. 4º do Dec. 1775/96 da obrigação do órgão fundiário federal proceder ao reassentamento de ocupantes não índios.
2. Colaboração de membros de comunidades científicas ou de outros órgãos públicos - O Dec. 1775/96, no § 4º do seu art. 2º, como foi previsto no § 4º do art. 2º do Dec. 22/91, prevê a possibilidade do grupo técnico encarregado da identificação solicitar a colaboração de membros da comunidade científica ou de outros órgãos públicos para embasar os estudos etnohistóricos, sociológicos, cartográficos e fundiários. O sentido desta norma é exatamente proporcionar a liberdade necessária à equipe técnica para que, através das colaborações necessárias fique provado de maneira cabal a ocupação tradicional da terra pelos índios. Neste sentido havendo pesquisadores, não só da área antropológica, mas por exemplo do campo arqueológico, jurídico, ambiental dentre outras áreas, cabe ao referido grupo técnico utilizar esta possibilidade em benefício dos direitos indígenas e do patrimônio público federal.

3. Informações à equipe técnica - O órgão indigenista deve cuidar do correto cumprimento desta norma, proporcionando quando da publicação do ato que constitui o grupo técnico para a identificação da área as informações necessárias para que se possa distinguir o local da área a ser demarcada, a fim de que as informações possam ser prestadas sobre ocorrências incidentes na terra indígena em questão.

4. Relatório da equipe técnica - Os trabalhos do Grupo Técnico devem ser concluídos com a apresentação de relatório circunstanciado ao órgão indigenista federal caracterizando a terra indígena a ser demarcada. Pretende-se que todos os fatos e circunstâncias verificados nos autos constem do relatório. Neste sentido, as informações coletadas e aquelas prestadas pelo poder público ou por particulares devem ser relatadas e na fundamentação dos limites a serem demarcados, todas as alegações ou eventuais aspectos suscitados como obstáculos devem ser analisados à luz do que dispõe a Constituição e a legislação específica sobre a matéria. Para tanto a equipe técnica, se não tiver nenhum membro com formação jurídica deve utilizar a possibilidade prevista no § 4º do art. 2º do Dec. 1775/96 para solicitar a colaboração de profissionais da área jurídica especializados no trato da questão indígena, vinculados a instituições acadêmicas, ao Ministério Público Federal, à Advocacia da União, ou a profissional de reconhecido conhecimento sobre a matéria. Da densidade, precisão e segurança das informações e análises deverá resultar um ato administrativo inatingível, favorecendo, com isso as comunidades indígenas.

5. Indenização das benfeitorias - Para o pagamento das indenizações das benfeitorias, de acordo com a possibilidade prevista no § 6º do art.231 da CF necessário se faz identificar quais benfeitorias devem ser indenizadas e com isso quais os ocupantes de boa-fé. As benfeitorias objeto de indenização são as consideradas necessárias e úteis. Quanto à natureza das ocupações a administração pública deverá verificar quais posses são de boa-fé, ou seja o possuidor deve comprovar que ignorava que a terra por ele ocupava era indígena, ou ignorava este obstáculo que lhe impedia a aquisição da coisa, no caso do ocupante ser detentor de algum título imobiliário, ou do direito possuído. A Portaria PP nº 69, de 24 de janeiro de 1989, da Funai dispõe sobre as instruções para o estabelecimento de indenizações de benfeitorias. De acordo com estas orientações qualquer processo ou expediente objetivando o recebimento de indenizações de benfeitorias edificadas em terras idígenas, será objeto de sindicância feita por Comissões previamente designadas. Estes pedidos deverão ser instruídos com documentação e informações fornecidas pelos setores fundiário, antropológico e jurídico da Funai, inclusive com o levantamento das benfeitorias e seus valores estimados. Constatada pela Comissão de sindicância a boa-fé do ocupante será procedida a avaliação das benfeitorias indenizáveis. Este procedimento previsto na Portaria 239/89, da Funai constitui uma iniciativa da administração pública em se adiantar para aferir o que considera ocupação de boa-fé, para efeitos do pagamento de indenização das benfeitorias, evitando com isso discussões judiciais.

6. Participação indígena - Talvez esta seja a principal e mais saudável novidade adotada inicialmente pelo Dec. 22/91 e posteriormente mantida pelo Dec. 1775/96. O § 3º do art. 2º deste Decreto assegura a participação do grupo indígena envolvido, ou seja a comunidade ou povo indígena que ocupe a terra a ser demarcada, em todas as fases do procedimento administrativo.

Como medida de segurança às demarcações, o § 2º do art. 19 do Estatuto do Índio veda a concessão de interditos possessórios, mas possibilita aos interessados contra ela recorrerem utilizando-se de ação petitória ou ação demarcatória.

O decreto do Poder Executivo previsto no art. 19 da Lei nº 6.001/73 têm natureza regulamentar, conforme, inclusive já decidiu o Supremo Tribunal Federal, ao não conhecer das Ações Diretas de Inconstitucionalidade do Decreto nº 22, de 1991, propostas pela Assembléia Legislativa do Estado de Roraima e pelo Governador do Estado do Pará :
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ATOS MATERIALMENTE ADMINISTRATIVOS.
A ação direta de inconstitucionalidade é meio impróprio ao ataque de atos meramente administrativos. Isto ocorre quando se impugna decreto do Chefe do Poder Executivo e Portaria de Ministro de Estado que disciplinam a demarcação de terras indígenas de tratam de parâmetros para a atividade administrativa a ser desenvolvida. Possível extravasamento resolve-se no âmbito da ilegalidade”.

Como ato regulamentar, o Decreto do Presidente da República que dispõe sobre o procedimento administrativo para a demarcação de terras indígenas estabelece apenas os atos da administração pública tendentes à reunião dos elementos de prova da ocupação da terra indígena e de levantamentos fundiários relacionados à área a ser demarcada, bem como das providências a serem adotadas pela autoridade competente para declarar os limites e determinar a demarcação administrativa.

Não dispõe de qualquer matéria da competência especial do Congresso Nacional, já que não dispõe sobre bens da União, mas apenas como a administração pública federal procederá na explicitação dos limites da terra tradicionalmente ocupada por índios. Trata-se de matéria intrínseca à atividade administrativa, que embora possa vir a ser regulada em lei, não se caracteriza, para os efeitos do que dispõe o art. 25 do ADCT, como delegação de competência assinalada ao Congresso Nacional.

Atualmente as normas procedimentais continuam condensadas no Decreto nº 1775, de 8 de janeiro de 1996.

Antes, os regulamentos que dispunham sobre o procedimento administrativo para a demarcação das terras indígenas eram:

1. Dec. 76.999, de 8 de janeiro de 1976 – regulamentou o procedimento no período dos governos militares, de forma que todo o procedimento era realizado pela Fundação Nacional do Índio, cumprindo, assim o disposto no art. 19 da Lei nº 6.001/73, segundo o qual as terras indígenas seriam demarcadas “...por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio...”;

2. Dec. 88.118, de 23 de fevereiro de 1983 – as normas procedimentais neste decreto refletiram o processo contraditório do final da ditadura militar, quando o Governo do General João Baptista Figueiredo, pressionado por seu isolamento político, nomeou para a presidência da Funai um civil, que agiu de forma liberal, readmitindo funcionários comprometidos com os direitos indígenas. As normas procedimentais anteriores foram alteradas para que o poder de iniciativa e orientação do procedimento demarcatório atribuído à Funai fosse eliminado. Criou-se duas instâncias de apreciação do procedimento: um Grupo de Trabalho Interministerial “composto de representantes do Ministério do Interior, Ministério Extraordinário para Assuntos Fundiários, Fundação Nacional do Índio e de outros órgãos federais e estaduais julgados convenientes”, com a atribuição de emitir um parecer conclusivo sobre a proposta de delimitação apresentada pela Funai; e a decisão final sobre os limites a serem demarcados foi atribuída aos Ministros de Estado do Interior e Extraordinário para Assuntos Fundiários. Aprovada, a proposta era encaminhada ao Presidente da República para que, por Decreto estabelecesse os limites a serem demarcados. Em uma o poder de orientação da Funai foi drásticamente reduzido e na outra instância o poder de orientação da Funai foi eliminado;

3. Dec. 94.945 e 94.946, ambos de 23 de setembro de 1987 –Com este novo regulamento o Poder Executivo institucionalizou a participação da Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional , no Grupo de Trabalho Interministerial, que continuava com a atribuição de emitir parecer conclusivo sobre as propostas de limites de terra indígena apresentadas pela Funai e nos demais atos do procedimento administrativo, quando tratasse de áreas indígenas localizadas na Faixa de Fronteira. Além disso, previa-se a participação do Incra e de outros órgãos estaduais na definição da proposta de limites a ser submetida aos Ministros de Estado. Neste Decreto, a declaração dos limites, com base no qual é feita a demarcação foi transferida para os Ministros de Estado envolvidos no Grupo de Trabalho Interministerial. Com o Dec. 94.946/97 definia-se a fórmula que os militares buscavam desde o início do Projeto Calha Norte para a demarcação das terras indígenas. Por intermédio da distinção dos índios entre aculturados e não aculturados, as terras seriam demarcadas, respectivamente como Colônias Indígenas e Áreas Indígenas. A base desta distinção governamental era a mesma adotada no texto do ante-projeto de Constituição do Relator da Comissão de Sistematização, denotando, até pela ocorrência dos fatos na mesma época (agosto e setembro de 1987) em dupla movimentação sincronizada, com o intuito de ver a política indigenista do Governo expressa naqueles decretos, legitimada pelo texto constitucional.;

4. Dec. 22, de 4 de fevereiro de 1991 – Com o procedimento adotado neste regulamento o anterior Grupo de Trabalho Interministerial foi eliminado. As atribuições de identificação dos limites das terras indígenas foi mantido na Funai, que a realizou por intermédio de Grupo Técnico, “...composto por técnicos especializados do seu quadro funcional, que sob a coordenação de Antropólogo do próprio órgão de assistência ou de instituição científicas afins, realizará estudos etnohistóricos, sociológicos, cartográficos e fundiários necessários”. Este Grupo Técnico elaborava um Relatório circunstanciado caracterizando a terra indígena a ser demarcada. Após aprovado pelo Presidente da Funai, o Relatório era publicado no Diário Oficial da União, incluindo as informações recebidas. Em seguida a esta publicidade o procedimento era remetido ao Ministro da Justiça a quem competia declarar, mediante portaria, os limites da terra indígena, determinando sua demarcação. Além de outras alterações, decorrentes da revogação dos Decretos 94.945 e 94.946, as modificações mais significativas foram a eliminação do Grupo de Trabalho Interministerial e a exclusão dos militares das fases procedimentais. Nas conclusões dos seus trabalhos o referido GTI propôs, em relação a demarcação das terras indígenas, que fosse criada uma nova fase procedimental, na qual quaisquer interessados que estivessem ocupando os limites da terra indígena a ser demarcada pudesse se manifestar, pelo prazo de 30 dias. Esta proposta não prevaleceu nos trabalhos da Comissão criada por Collor em janeiro de 1991. No entanto foi previsto no § 5º, art. 2º, Dec.22/91 que: “Os órgãos públicos federais, estaduais e municipais devem, no âmbito de suas competências, e às entidades civis é facultado, prestar, perante o grupo técnico, informações sobre a área objeto de estudo, no prazo de trinta dias contados a partir da publicação do ato que constituir o referido grupo”. Esta previsão, no entanto não satisfez os interesses de particulares sobre as terras indígenas, que continuaram suas articulações.

4. A demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol:

4.1. O Procedim. Adm. 3233/77, da Funai – Identificação e delimitação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol:

Em 7 de março de 1977, o então Delegado da 10ª Delegacia Regional da Funai, Senhor José Carlos Alves encaminhou ao Diretor Geral de Operações da Funai, o Ofício nº 078 no qual solicita:
“gestões junto aos órgãos competentes da Funai para criação da citada Reserva antes que o Território seja invadido pelos colonos, vindos de outras partes do Brasil, o que ocorrerá tão logo seja aberta ao tráfego, a estrada BR-174 – Manaus-Boa Vista – BV-8”.

Dessa forma, iniciou-se a tramitação do Procedimento Administrativo na Funai, destinado à demarcação de terras indígenas no então Território Federal de Roraima, portanto, sob a vigência do Decreto nº 76.999, de 8 de janeiro de 1976.

Percebem-se assim, já na manifestação inicial acima transcrita, que os riscos e as ameaças à integridade das terras então ocupadas, conforme assegurado no art. 198 da CF de 67/69 eram grandes.

Na Informação nº 180/77-DGPC, da Funai, de 5/9/77, a antropóloga Ana Maria da Paixão registra seu entendimento no sentido de que as terras a serem demarcadas, indicadas pelas lideranças indígenas, devam ser as que a Funai venha a aceitar, ponderando que:
“O problema de terras no Território agrava-se a cada dia, com a implantação de agro-pecuárias, indústrias e extração de minérios, sendo lamentável a situação em que se encontram os indígenas. Não aceitamos a transferência dessas ‘malocas’ para a área da Fazenda São Marcos, principalmente, porque isto significa abandono de seu ‘habitat’ tradicional, onde eles conhecem a terra. Não adiantaria qualquer decisão neste sentido, pois aquelas comunidades se recusariam a abandonar suas terras tradicionais. Quanto mais delongas houver na definição de áreas no Território Federal de Roraima, tanto mais difícil se tornará a defesa das terras indígenas. No caso, as terras foram delimitadas acertadamente pela própria comunidade, cabendo apenas ao Órgão, oficializá-la”.

Em 12 de dezembro de 1980, foi anexado a este Procedimento, o Processo Funai/Bsb/5004/79, atendendo, conforme consta no Termo de Anexação (fls. 18) solicitação da Chefe da Divisão de Identificação e Delimitação/DGPI, da Funai. Nestes autos, constam inúmeros registros de servidores da Funai informando sobre conflitos pela posse da terra provocados por invasões de aldeias por fazendeiros e interesses privados na região, conforme exemplifica o radiotelegrama de 31/10/79, juntado às fls. 25, deste procedimento administrativo.

Por intermédio do Memo nº 080/78 – DGPC, a antropóloga Isa Maria Pacheco Rogedo encaminhou à Chefe da DEP/Funai “relatório preliminar oriundo de minha permanência no Território Federal de Roraima, em cumprimento a Portaria nº 550/P, de 21 de outubro de 1977”. No entanto este relatório preliminar não consta deste procedimento administrativo.

Às fls.61 consta Memorial Descritivo indicando ser da “Área Indígena Raposa/Serra do Sol”, com área aproximada de 1.347.810 ha.

Em 3/3/83, o antropólogo Antonio Flávio Testa, também da Funai, apresenta a Informação nº 090/DID/DGPI/83, na qual, após consignar sua opinião contrária à demarcação da Área Indígena Raposa Serra do Sol como Colônia Indígena, observa que: “os índios reivindicam para si o respeito às suas terras tradicionais, hoje totalmente invadidas por não índios que ao longo da história desenvolveu um processo de ocupação territorial baseado na pecuária extensiva, sobre um solo que não oferece boas condições nutritivas, condicionando, para manutenção deste tipo de economia, maior demanda de terra”; e conclui sugerindo a “criação de um GT para estudar a fundo a questão e propor limites para as áreas indígenas a serem demarcadas imediatamente após a definição dos mesmos”.

Após a juntada aos autos de várias manifestações de lideranças indígenas, de servidores da Funai, inclusive do então Governador do Território Federal de Roraima, Otomar de Souza Pinto, o Presidente do órgão indigenista federal, Senhor Jurandy Marcos da Fonseca firmou a Portaria nº 1645, de 29 de maio de 1984, portanto na vigência do Dec. 88.118, de 23 de fevereiro de 1983, na qual determina, em cumprimento ao disposto no § 1º do art. 2º deste Decreto, o deslocamento à “Área Indígena Raposa/Serra do Sol”, dos servidores: Maria Guiomar de Melo, antropóloga; Petrônio Laranjeira Barbosa, técnico de agricultura e pecuária; Luiz Antonio Sberze, engenheiro cartógrafo; sob a coordenação da primeira e acompanhados do técnico agrícola do Incra, Calos Augusto Oliveira e Silva; para proceder aos “estudos visando a definição do limite da terra indígena acima mencionada, bem como o respectivo levantamento fundiário...” (fls. 204).

Às fls. 260 do procedimento administrativo, consta correspondência de 29 e 30 de novembro de 1984, de vários Tuxauas, na qual afirmam ao então Delegado Regional da Funai que:
“nós todos os tuxawas reunidos das seguintes regiões: Raposa, Santa Cruz, Maturuca, Serra do Sol e Surumu, falando decidimos englobar toda essa área e queremos uma área única.
Limitando pelo Rio Itacutu, Rio Mau até Serra do Sol. Paralelamente com o Rio Surumu, Rio Miank até Serra do Sol.
Nós não queremos saber se tem muitos fazendeiros dentro dessa área e nem tão pouco saber se eles têm título de suas fazendas porque essa área é nossa. Como falam que têm seus títulos, mas que esse título não é verdadeiro, no nosso título verdadeiro está em primeiro lugar. Nós somos netos e bisnetos dos nossos Bisavos que nasceram naquela terra; nós não viemos de outros Estados.
Agora eles que vem de foram dizem que são donos, isso completamente errado.
Esta terra já estamos ocupando, com nossas criações.
Aqui nós não abrimos a mão, nós podemos morrer, mas morremos pelo amor da nossa terra”.

Esta manifestação enfática das lideranças indígenas da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, expressa a tensão que a indefinição dos limites da terra por eles ocupada já acarretava em 1984, como resultado mesmo dos alertas que os servidores do órgão indigenista faziam há quase dez anos antes.

Em 30/8/85, a antropóloga Maria Guiomar de Melo, por intermédio do Memo nº 28/85-Setor Antrop./10ª DR encaminhou o “Relatório sobre a identificação da Área Indígena Makuxi de Raposa a Serra do Sol” (fls. 280 a 374) , em cumprimento ao determinado na Portaria nº 1645/84, do Presidente da Funai.

Após apresentar histórico do contato dos índios na área em questão, as atividades sócio-econômicas dos grupos étnicos na região objeto do trabalho de identificação, destacando as atividades na agricultura, caça e pesca, criação de gado, garimpo, cantina comunitária, artesanato indígena, comércio intertribal, a situação na área considerando a relação dos índios com os “invasores de sua terra”, as mudanças sociais, como a escola e língua, a relação dos índios com a Igreja e o Estado, conclui consignando uma proposta de delimitação da área indígena, com aproximadamente 1.577.850,00 ha, conformada nas seguintes cinco (5) regiões, contíguas umas com as outras: Xununu-e-étamu, com aproximadamente 53.510 ha; Surumu, com aproximadamente 455.610 ha; Raposa com cerca de 347.040 ha; e Maturuca/Serra do Sol, com aproximadamente 721.690 ha.

No entanto, após relatar as iniciativas adotadas no sentido de expor o trabalho desenvolvido para as lideranças indígenas que tradicionalmente ocupam a área objeto do trabalho que orientaria a demarcação administrativa, a antropóloga Maria Guiomar informa, às fls.365 e 366 do procedimento administrativo, que em reunião realizada no dia 01/12/84, 66 Tuxawas apresentaram o entendimento das comunidades no sentido de que a área a ser demarcada deva abranger “aproximadamente 2.000.000,00 ha (...), sendo que os limites da terra indígena deve ser pelos rios Surumu, Tacutu e Mau até a Serra Paracaima na fronteira entre o Brasil e a Venezuela” e conclui seu relatório acolhendo a pretensão dos representantes das comunidades indígenas, considerando que:
“- pelo levantamento etnohistórico, os Makuxi, os Taurepang (Pemon), os Ingarikó e os Wapixanas habitam tradicionalmente essa região;
- a área entre os rios Surumu e Cotingo foram demarcadas em 1977;
- existe na região cerca de 87 aldeias de índios de diversas etnias, com uma população aproximada de 8.500 indivíduos (ver anexo II);
- a terra a nordeste de Roraima possui pouca fertilidade de acordo com o levantamento pedológico realizado pelo projeto RADAM (vol. 8)”

Já em 1985, portanto no início do Governo do Presidente José Sarney, a demanda para a demarcação da TIRSS prossegue, com pedidos de lideranças indígenas e informações de servidores da Funai, no sentido de que o Ministro do Interior, Ronaldo Costa Couto, proceda à constituição de um novo Grupo de Trabalho.

Às fls. 468 consta Relatório do servidor Valter Ferreira Mendes, em razão das providências determinadas pela Portaria nº 171, de 29/5/86. Em seguida, o antropólogo Célio Horst junta aos autos uma série de certidões imobiliárias, que lhe foram encaminhadas pelo referido servidor Valter Mendes. E em 23/9/87, o mesmo Célio Horst apresenta o Relatório de Viagem à Serra do Sol, em atendimento às Instrução Técnica nº 9, de 7/8/86, assinado pelos funcionários Jorge Quirino, Petrônio Barbosa e João Ciconet, no qual relatam visita que teriam feito à maloca Serra do Sol, da comunidade do Povo Ingarikó.

Às fls. 630, Célio Horst junta novos relatórios com levantamentos e laudos de vistoria e avaliação de benfeitorias, informações, mapas e sugestões de fazendeiros. E às fls. 767, Célio Horst junta aos autos documentação relativa à Fazenda Tatu, localizada na região do Cotingo, Município de Normandia, Território Federal de Roraima .

O 3º volume do Proc. Adm. 3233/77 inicia-se com a Carta 003/Presi/nº 162/89, de 17/5/89, do Presidente da Funai, para os Membros do Grupo de Trabalho Interministerial previsto no art. 3º do Dec. 94.945, de 23/9/87, visando apreciar a proposta de demarcação da Área Indígena Ingarikó, com superfície de 90.000 ha .

A este documento, segue-se uma “Memória”, elaborada por Valter Mendes e datada de 7/6/89, referente a uma notícia veiculada pelo jornal “O Estado de Mato Grosso”, a respeito de nota do Conselho Indigenista Missionário – Cimi, noticiando a intenção governamental em reduzir os limites da terra indígena Raposa Serra do Sol, separando inicialmente a Área Indígena Ingarikó, do restante da TIRSS, na qual consigna, confirmando o que fora divulgado pelo Cimi, que:
A denominada Área Indígena Raposa/Serra do Sol, situada na faixa de fronteira entre o Brasil e Venezuela, foi motivo de vários estudos, sendo o último concluído neste ano de 1989, com a participação do órgão fundiário Federal, do Governo do Estado de Roraima e SADEN. Face a extrema dificuldade de se viabilizar a demarcação na conformidade dos estudos anteriores, isto por que existem mais de 300 fazendas instaladas na área contínua anteriormente proposta, decidiu-se delimitar algumas áreas, sendo que a Área Indígena INGARIKÓ, foi a primeira a ser apreciada pelo GTI do Dec. 94.945/87, recebendo o Parecer de nº 220/89.
As demais terras indígenas que compõem a Área Raposa/Serra do Sol serão oportunamente levadas a apreciação do GTI, Dec. 94.945/87”.

A relevância deste documento, consiste na admissão, por servidor do órgão indigenista, quanto ao propósito do governo federal da época em implementar a demarcação da TIRSS, em desacordo com a vontade das comunidades indígenas e dos estudos de identificação realizados até então, seccionando a região em várias áreas indígenas. Dessa forma a Área Indígena Ingarikó, seria a primeira.

Às fls. 826, o servidor Petrônio Laranjeira encaminha, em 19/9/86, ao Chefe do GTI, Relatórios referentes aos levantamentos realizados nas Malocas: Pedra Branca; Morro; Enseada; Maloquinha; Maracanã, Piolho, Wiramutã, Cana, Willeimon, Monte Muriat, Lilás, Socó, Flexal, Barreirinha, Bananeira, e Fazendas São Francisco, JP, Redenção Curupira, Sítio Silêncio, Sítio Lilás e Vila Socó.

Às fls. 917, em 16/9/87, consta CI nº 378/87, por intermédio da qual Célio Horst estaria encaminhando para o Setor de Apoio da Superintendência de Assuntos Fundiários da Funai, relatórios de visitas às malocas Pacu, Perdiz, Flexal, Pedra Preta, Maturuca e Ticoça, Nova Vida e das Fazendas Feliz Encontro e Caio, além de proposta dos índios das malocas de Santa Maria e Cararuau. No entanto não constam, anexados e após esta correspondência, quaisquer dos documentos nele indicados. O mesmo se sucede com a CI 386/87, com a CI 398/98 e com a CI 429/87 todas subscritas pelo mesmo Célio Horst.

Às fls. 926, Célio Horst subscreve a Informação nº 009/89, de 4/4/89, para a Sra Sônia Demarquet, consignando o seguinte grave conteúdo:
“1. A região denominada Raposa/Serra do Sol – RR é uma das mais conflitantes e está a merecer uma solução política – os dados técnicos estão todos disponíveis.
2. O Conselho Indígena de Roraima está reivindicando uma área única e contínua e, segundo informações de superiores hierárquicos, não tem a menor condição de ser aprovada porque abrange extensa faixa de fronteira, é de superfície elevada, possui um total de 305 fazendas e nesta área estão inseridas 4 vilas, sendo uma a sede do Município de Normandia.
3. Segundo o Relatório do Dr. Valter Ferreira Mendes (10/06/86) a recomendação é de que a região Raposa/Serra do Sol ‘seja reestudada excluindo a faixa de fronteira e deixando espaço, entre a Fazenda São Marcos, criando-se várias áreas indígenas”.

No mais, coincidindo com o término do Governo do Presidente José Sarney e o início do Governo do Presidente Collor de Mello, nos autos constam inúmeras manifestações e petições de lideranças indígenas reclamando providências contra abusos e agressões sofridas por membros de suas comunidades, inclusive petição inicial de Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público Federal contra União, para a retirada dos não-índios que se encontravam na área explorando minérios.

Na análise deste volume, evidencia-se que ao término de um Governo e em razão do início de outro, qualquer providência destinada à superar as concepções antagônicas que se expressam desde o início da tramitação do procedimento administrativo fora adotada.

Embora não haja qualquer despacho ou decisão de representante legal do órgão indigenista, ou mesmo de outra autoridade “hierarquicamente superior”, resta evidente, pelas manifestações de servidores, como Valter Mendes e Célio Horst por terem atuado intensamente nos autos, que as pretensões das lideranças indígenas e consequentemente as sugestões apresentadas pela antropóloga Maria Guiomar, na identificação e delimitação realizada em 1984 e em 1985 não seriam admitidas, sem que fossem apresentados argumentos e provas de que a terra cuja demarcação era reivindicada não era ocupada por índios.

Apenas revelava-se a existência de óbice fundado na circunstância de que:
• a terra se localiza na faixa de fronteira;
• na terra existem centenas de fazendas;
• na terra existem vilas e sede de município; e
• a terra tem dimensão extensa.

O 4º volume do Procedimento Adm. 3233/77, inicia-se com a juntada de documentos recebidos dos índios, com reivindicações e denúncias de agressões e violências praticadas por fazendeiros, contra membros de comunidades indígenas.

Às fls. 1236 e 1245, constam manifestações de Tuxauas, conselheiros, professores, vaqueiros e outros membros de várias comunidades indígenas dos Povos Macuxi e Ingarikó, no sentido de não aceitarem “a proposta do Governador Otomar de Souza Pinto feito através do seu Secretário do Interior e Justiça, Sr. Robério Araújo e do Coordenador do Núcleo de Assuntos Indígenas da mesma Secretaria, Sr Valdir Mateus de demarcar a área Raposa/Serra do Sol reduzida em ilhas”.

Nos autos, percebem-se documentos com registros de iniciativas do então Presidente da Funai, Sidney Possuelo, no sentido de se reunir com representantes do Governo de Roraima, para viabilizar supostas condições para a conclusão da demarcação da terra indígena Yanomami e Raposa/Serra do Sol.

Seguem nos autos várias outras manifestações de lideranças indígenas relatando agressões, ameaças e violências praticadas contra as comunidades indígenas, ao passo em que reiteram pedidos de que suas terras sejam demarcadas e protegidas pelo Governo Federal.

A partir das fls. 1328 a 1344 e 1358 constam correspondências relativas à consultas da Direção da Funai, para a USP, para o Governo de RR, no sentido de viabilizar apoios para a realização de um novo trabalho de identificação e delimitação da terra indígena Raposa/Serra do Sol.

Por oportuno, cumpre assinalar, de forma a desfazer equívocos, que o Estado de Roraima insiste em suscitar, que o Senhor José Juliano Carvalho, Professor do Departamento de Economia da Faculdade de Economia e Administração da USP, não é como jamais foi membro do CIMI. Na realidade, este equívoco decorre da referência consignada à indicação que teria sido feita pelo CIMI, do nome do Prof. José Juliano, na consulta encaminhada a este conceituado docente, pela Diretora Interina da Diretoria de Assuntos Fundiários da Funai, a em. antropóloga Isa Maria Pacheco Rogedo. Ocorre, que por razões desconhecidas, o Prof. José Juliano não teve condições de participar e contribuir com os trabalhos do Grupo Técnico.

Em 6 de agosto de 1992, o Presidente da Funai, por intermédio da Portaria nº 1141/92 (fls. 1424), criou o Grupo de Trabalho Inter-institucional, “com a finalidade de identificar e delimitar a Área Indígena Raposa/Serra do Sol”, composto por:
1. Maria Guiomar de Melo, antropóloga da Funai e coordenadora do GTI;
2. Zenildo de Souza Castro, técnico em agrimensura da Funai;
3. Osires Ribeiro Soares, técnico agrícola da Funai;
4. Nilton Sérgio Martins Costa de Freitas, técnico agrícola do Incra;
5. Robério Bezerra de Araújo, representante do órgão fundiário do Governo de Roraima;
6. Odilon Ernesto Malheiros, Donaldo Souza Marculino, Augostinho Paulino, José Adalberto da Silva, Jucelino Joaquim Marques e Severino Constantino, do CIR;
7. Paulo José Brando Santilli, antropólogo da Faculdade de Ciências e Letras da USP;
8. Felisberto Assunção Damasceno, do Cimi;
9. José Juliano Carvalho, economista da Faculdade de Administração e Economia da USP;
10. Ana Paula Souto Maior, representante da Diocese de Roraima.

Posteriormente, por intermédio da Portaria nº 1375/92, de 8/9/92, foram incluídos no referido Grupo de Trabalho Inter-institucional:
1. Antônio de Paula Nogueira Neto, Manuel Reginaldo Tavares, engenheiros agrônomos da Funai;
2. José Valmir de Oliveira, técnico agrícola da Funai
3. Antônio Humberto Bezerra de Matos, Luis Alfredo Mendes de Souza, Gerôncio Gomes Teixeira, Dorval Costa Júnior, Vagner Amorim de Souza e Maildes Fabrício Lemos , representantes do órgão fundiário do Estado de Roraima ;
4. José Adalberto, Candinha Joaquim Marques, Martins de Oliveira, representantes de comunidades indígenas da Região da Serra, da Área Indígena Raposa/Serra do Sol;
5. Alcides Constantino, representante das Comunidades Indígenas da Região Baixo Cotingo, da Área Indígena Raposa/Serra do Sol;
6. Melquíades Peres Neto, representante das Comunidades Indígenas da Região de Surumú, da Área Indígena Raposa/Serra do Sol;
7. Severino Amaro, João Batista e Rufino de Souza, representantes das Comunidades Indígenas da Região da Raposa, da Área Indígena Raposa/Serra do Sol.

Quanto à composição deste Grupo Técnico, importa consignar algumas observações.

Na realidade, de acordo com o disposto no § 1º do art. 2º do Dec. 22/91, o Grupo Técnico encarregado de proceder aos estudos e levantamentos destinados à identificação dos limites da terra indígena a ser demarcada, para atender o disposto no § 1º do art. 231 da CF era composto por técnicos especializados do órgão indigenista federal, sob a coordenação de antropólogo. Este Grupo Técnico tinha, assim a responsabilidade de realizar “estudos etnohistóricos, sociológicos, cartográfico e fundiários”.

Para a realização do levantamento fundiário, se fosse considerado necessário, o § 2º do art. 2º do Dec. 22/91 previa a possibilidade de ser realizado em conjunto com o órgão fundiário federal ou estadual específico.

O § 3º do art. 2º do Dec. 22/91 assegurava a possibilidade de participação do “grupo indígena envolvido” em todas as fases do processo.

E nos termos do § 4º do art. 2º do mesmo Dec. 22/91:
“Outros órgãos, membros da comunidade científica ou especialistas sobre o grupo indígena envolvido poderão ser convidados, por solicitação do Grupo Técnico, a participar dos trabalhos”.

O § 5º do art. 2º do Dec. 22/91 previa ainda que:
“Os órgãos públicos federais, estaduais e municipais devem, no âmbito de suas competências, e às entidades civis é facultado, prestar, perante o Grupo Técnico, informações sobre a área objeto de estudo, no prazo de trinta dias contados a partir da publicação do ato que constituir o referido Grupo”.

Considerados os parâmetros regulamentares sobre o desenvolvimento dos trabalhos do Grupo Técnico, resulta compreensível que o Presidente da Funai, preocupado com a gravidade do caso, bem como em dinamizar e acelerar as atividades do Grupo Técnico, inovou, constituindo um Grupo Técnico “inter-institucional” - GTI, com a participação de: 6 técnicos da Funai; 1 técnico do Incra; 7 servidores do Estado de Roraima; 14 representantes de grupos indígenas envolvidos; 1 membro da comunidade científica (que não obstante ter sido nomeado não participou dos trabalhos do GTI); 3 especialistas sobre os grupos indígenas envolvidos.

Em que pese o Dec. 22/91 tenha previsto a constituição de um Grupo Técnico, que no caso seria composto apenas pelos 6 técnicos da Funai, tendo em vista a relevância do caso e considerando que cada um dos demais participantes do denominado Grupo Técnico Inter-institucional contribuíram, nos limites das possibilidades regulamentares previstas nos §§ 2º a 5º do art. 2º do Dec. 22/91, não se identifica qualquer vício ou prejuízo para a Administração Pública Federal, os demais, servidores públicos de autarquia educacional, do Incra, do Estado de Roraima, membros de comunidades indígenas e de entidades religiosas, que atuaram como especialistas nos grupos envolvidos terem integrado o Grupo Técnico, considerado que foi especificamente “inter-institucional”.

Reitere-se que a singularidade e a gravidade dos conflitos então verificados na Terra Indígena Raposa/Serra do Sol, motivaram o Presidente da Funai, no âmbito de seu poder discricionário, a envolver a todos num esforço de proporcionar que todas as informações fossem melhor disponibilizadas para a apreciação da administração pública federal.

Além disso, mesmo que os demais não compusessem o GTI, ainda assim suas contribuições não só poderiam, como deveriam ser consideradas no trabalho dos técnicos da Funai.

Foi com este propósito, que o Grupo de Trabalho Inter-institucional acordou entre seus membros, em reunião realizada no dia 22/8/92 (fls. 1605), que:
“1. as lideranças indígenas identificariam os limites reivindicados para Área Indígena;
2.realizar o levantamento fundiário com técnicos agrícolas da Funai, do Incra e do Órgão Fundiário do Estado;
3. as instituições, que possuem interesse na área, deverão encaminhar até o dia 06.10.92, ao GT, suas pretensões” .

Esta dinâmica do trabalho do Grupo Técnico explica, inclusive a razão pela qual o “Relatório sobre a proposta de demarcação da Área Indígena Raposa/Serra do Sol”, juntado aos autos às fls. 1428 a 1553 foi composto pelas contribuições de seus diversos integrantes.

Com efeito, considerando que em 1985, Maria Guiomar, também como coordenadora do GT então constituído concluíra seu trabalho identificando como área aproximada 1.577.850 ha, embora houvesse admitido a conformação integral dos limites nos termos indicados pelas comunidades indígenas, a delimitação apresentada como conclusão do GT instituído pela Portaria do Presidente da Funai, nº 1141, de 1992, com superfície aproximada de 1.678.800 ha, representava um acréscimo de 100.950 ha em relação à proposta anterior.

Esta alteração afigura-se perfeitamente compreensível, considerando o esforço, do poder público e das comunidades indígenas em conformar uma demarcação definitiva da Área Indígena Raposa Serra do Sol, respeitando os limites da ocupação tradicional, conforme os índios e as análises antropológicas têm afirmado coerentemente desde o início da tramitação do procedimento administrativo: dos limites das fronteiras do Brasil com a Venezuela e a Guiana, aos rios Maú, Tacutu, Surumú e Miang.

No que se refere ao Relatório de Identificação e Delimitação, não há qualquer irregularidade no fato de ser o resultado das contribuições dos participantes do Grupo Técnico, em especial de Paulo Santilli, por ser antropólogo estudioso da realidade étnica e cultural dos povos que tradicionalmente ocupam a terra indígena objeto do procedimento administrativo para a demarcação, como de Felisberto Ascenção Damasceno, advogado, que à época prestava serviços para o Conselho Indigenista Missionário – Cimi, como Assessor Jurídico do Regional Norte I, envolvendo os Estados do Amazonas e Roraima, sendo um dos profissionais da advocacia mais dedicados e especializados na defesa dos direitos indígenas no país e em especial na Região Norte. Ambos, Paulo Santilli e Felisberto Damasceno são profundos conhecedores da realidade étnica, cultural, social, política e econômica que envolve os Povos Indígenas em Roraima. Consequentemente, suas contribuições prestadas, pelo que se percebe nos autos, sem ônus para o erário federal, são relevantes e fundamentais para a análise adequada dos variados aspectos então suscitados.

Da mesma forma, a contribuição do Estado de Roraima, por intermédio de seus servidores assumiu relevância, na medida em que possibilitou a reunião de informações corretas sobre a ocupação de não-índios na região, além de terem colaborado com o bom desempenho das atividades do Grupo Técnico.

No que se refere à ausência do Prof. José Juliano Carvalho, não há que se cogitar de qualquer conseqüência negativa para o Relatório de Identificação e Delimitação. Por razões que não ficaram esclarecidas nos autos, a contribuição deste renomado economista não se efetivou. Não tendo acarretado qualquer gasto ou despesa para a administração pública e tendo em vista que sua contribuição era, como é facultativa, nada de prejudicial emerge desta circunstância à contaminar a integridade do trabalho realizado.

Quanto à participação indígena, importa observar que o direito assegurado regulamentarmente aos grupos indígenas no § 3º do art. 2º do Dec. 22/91 se destina a todos. Se eventualmente alguma comunidade ou liderança não se apresentou ou não gestionou meios perante a Funai, para participar do processo, não há elementos que permitam afirmar que isto não ocorreu em razão de omissão da administração pública.

Os autos do procedimento administrativo são fartos de notícias e informações sobre comunidades e lideranças que concordam e reivindicam a demarcação da área em limites contínuos, como de lideranças que em determinado momento teriam consignado posição distinta.

As duas opiniões foram objeto de apreciação permanente no procedimento administrativo. Pode-se afirmar, inclusive, que esta questão, somada com a localização da terra indígena na faixa de fronteira, como a presença de interesses privados na área a ser demarcada consistiram nas polêmicas centrais que desde o início do procedimento administrativo tem galvanizado a atenção e os esforços de todos que se envolveram na análise e no acompanhamento da questão.

Na conclusão da análise do Procedimento Administrativo nº 3233/77, importa observar ter sido realizado denso e comprovado estudo etnohistórico e sociológico da ocupação tradicional pelas comunidades dos Povos Indígenas Macuxi, Wapixana, Taurepang, Patamona e Ingarikó, na terra indígena Raposa Serra do Sol, demonstrando-se com precisão científica que a área delimitada é, como sempre foi tradicionalmente ocupada por índios.

Esta conclusão é a que tem relevância constitucional. A circunstância da presença de não-índios na área, com ou sem títulos imobiliários, sob o aspecto constitucional é irrelevante. Suas ocupações ou títulos de domínio são nulos.

A circunstância de se demarcar uma terra na qual se localizam mais de um grupo étnico não é novidade, como não é novidade a demarcação de terras indígenas em faixa de fronteira.

O Parque Indígena do Xingú, a Terra Indígena do Vale do Javari, a Terra Indígena do Rio Negro, são exemplos de terras indígenas demarcadas, homologadas e registradas em cartório e no serviço de patrimônio da União, na quais convivem mais de um grupo étnico e são localizadas na faixa de fronteira.

Além dos elementos desenvolvidos por Maria Guiomar, tanto em 1985, como em 1992, por serem fundamentalmente em torno da mesma questão, demonstrando com clareza a relação entre os grupos étnicos da região, Paulo Santilli agrega às observações de Guiomar, considerações relevantes, dentre as quais, destaca-se o seguinte trecho, que demonstra com precisão a forma de ocupação da área pelas comunidades indígenas e a relação entre os cinco grupos étnicos:
“As variações climáticas e as características do solo constituem fatores determinantes para o assentamento e a distribuição da população indígena, e o aprimoramento de estratégias especializadas de exploração econômica do território, mantendo a integridade de seus sistemas ecológicos.
A distribuição da população dispersa em aldeias de 10 a 200 indivíduos em média, e a disposição espacial das aldeias, distanciadas entre 10 e 30 km aproximadamente, bem como a sua localização variável, relativamente móvel, possibilitam produzir alimentos cultivados – basicamente mandioca e milho – suficientes para assegurar o sustento dos indivíduos, através de técnicas de agricultura de coivara, que implicam na rotatividade das áreas de plantio, e no resguardo necessário para a recomposição dos terrenos, esgotados após o seu aproveitamento com duas ou três colheitas, de modo a evitar, assim a sua degradação.
A alteração sazonal das atividades de exploração – na agricultura, a queimada restrita de pequenos trechos de mata, seguida pela coivara, pela limpeza e plantio das roças, que, nas serras, ocorrem no fim da seca e no início das chuvas, e, nas vazantes, no princípio da estiagem; na coleta, os procedimentos diversificados, especializados localmente, em período determinados, e alternados durante todo o ano; na caça, praticada, sobretudo nas áreas de mata durante a transição das estações, e próximo aos cursos e reservatórios d’água durante a seca; e na pesca, empreendida com ênfase redobrada nos meses de estiagem na região de campos, ao sul do território-, supõe, por parte da população indígena, uma dinâmica peculiar de mobilidade cíclica, que consiste, basicamente, de deslocamentos dos grupos locais, (que apresentam tendência a dispersão pelas roças familiares espalhadas nas matas durante as chuvas, e a concentração em torno do núcleo central das aldeias no período de seca), como também, da ocorrência de outros movimentos de maior amplitude, da população das aldeias nos campos para as serras, onde há áreas de florestas mais extensas que podem ser cultivadas nos meses de chuvas, e, ainda, no fluxo semelhante, porém em direção oposta, durante a estação seca, em que os habitantes das serras descem para as aldeias nos campos, em busca dos lagos e rios perenes para conseguir peixes, cujas espécies de porte médio e grande sobrevivem apenas nos trechos mais caudalosos destes rios, abaixo das altas cachoeiras, ou nos grandes lagos das planícies e, de modo significativo, representam um componente essencial da alimentação indígena nos períodos de estiagem.
Os deslocamentos abrangendo percursos extensos ocorrem com maior freqüência na estação seca, enquanto os movimentos localizados são mais rotineiros ao longo de todo ano, visando a obtenção de frutas, fibras e outros gêneros silvestres ou produzidos em determinadas temporadas e/ou por grupos locais. Os procedimentos de coleta, em parte realizados nos movimentos localizados, entre outras atividades desenvolvidas no mesmo âmbito, embora de caráter complementar, mas nem por isso menos essenciais para a sobrevivência dos índios, também integram-se na composição da mesma dinâmica peculiar” .

Em cumprimento ao disposto no § 7º do art. 2º do Dec. 22/91, o referido Relatório circunstanciado de identificação e delimitação foi aprovado pelo Presidente da Funai, publicando-o, em seguida no Diário Oficial da União.

4.2. O Procedim. Adm. 889/93, da Funai – Declaração de Limites e determinação para a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol

O Proced. Adm. nº 889/93, iniciado com a remessa, pelo então Presidente da Funai, Cláudio dos Santos Romero, para o Ministro de Estado da Justiça, da cópia do Relatório de Identificação e Delimitação elaborado pelo Grupo Técnico constituído pela Portaria da Funai nº 1141/92, é, logo em 2/7/93 submetido à apreciação do Consultor Jurídico do Ministério da Justiça, Dr Guilherme Magaldi Netto, que opina, sendo aceito, pelo então Ministro da Justiça Maurício Corrêa, no sentido de que os autos retornem à Funai, com base no disposto no § 8º do art. 2º do Dec. 22/91, para que preste informações adicionais, em razão de “laudo antropológico divergente que acompanha o Aviso nº 002/93, do Senhor Governador do Estado de Roraima ”.

Às fls. 173 a 194, a Superintendente da Superintendência de Assuntos Fundiários da Funai, a antropóloga Isa Maria Pacheco Rogedo presta as informações adicionais solicitadas pelo Ministro da Justiça, considerando os elementos apresentados na ocasião pelo Estado de Roraima.

Nesta peça, a Superintendente de Assuntos Fundiários da Funai, reitera a demonstração de que:
1.a área indígena Raposa Serra do Sol corresponde precisamente ao território de ocupação tradicional dos povos Macuxi e Ingarikó;
2. o reconhecimento oficial da área indígena Raposa Serra do Sol é condição essencial para garantir as formas próprias de organização social, assim como a sobrevivência física e cultural dos povos Macuxi e Ingarikó;
3. a demarcação da área indígena Raposa Serra do Sol é uma providência não só necessária e oportuna, mas sobretudo urgente, dado os conflitos que se tem verificado nas últimas décadas entre índios e brancos, os quais vêm se intensificando mais recentemente, colocando em risco a vida das populações nativas.

Após várias manifestações de lideranças indígenas noticiando conflitos na área e solicitando a conclusão do procedimento administrativo, com a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, às fls. 226, o Consultor Jurídico do Ministério da Justiça submete ao Ministro da Justiça a sugestão de que o Ministério Público Federal pudesse oferecer “manifestação conclusiva sobre a controvérsia suscitada pelo Governo do Estado de Roraima”.

Acolhida tal sugestão pelo Ministro da Justiça, em 5 de outubro de 1993, às fls. 228, o então Procurador Geral da República Aristides Junqueira Alvarenga encaminhou ao Ministro da Justiça Maurício Correa, a “referente à demarcação administrativa da área indígena Raposa Serra do Sol”, na forma do Parecer nº 052/CDDPI/MPF, elaborado pelo então Procurador da República e Coordenador da Defesa dos Direitos e Interesses das Populações Indígenas do Ministério Público Federal, Aurélio Virgílio Veiga Rios, no qual conclui pela improcedência das alegações do Estado de Roraima e pela integral possibilidade jurídico constitucional de demarcação da área indígena em questão na faixa de fronteira (fls. 245 a 247 do Proc. Adm. 889/93).

Às fls. 248, não obstante reconhecer ter sido esclarecida, com a manifestação conclusiva do Ministério Público Federal, a “questão da imemorialidade da posse indígena sobre a área objeto deste procedimento administrativo demarcatório”, o Consultor Jurídico do Ministério da Justiça suscita a possibilidade da “oitiva – facultativa e não obrigatória - do Estado Maior das Forças Armadas (EMFA) e do próprio Conselho de Defesa Nacional...”. Por sua vez, o Ministro da Justiça entende oportuna e necessária a manifestação do EMFA.

Às fls. 266, o Almirante-de-Esquadra Arnaldo Leire Pereira, então Ministro de Estado Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas manifesta “o parecer totalmente contrário do Estado-Maior das Forças Armadas quanto à considerar-se área indígena a redinão denominada RAPOSA/SERRA DO SOL, de exagerada dimensão totalmente localizada na faixa de fronteira”.

Em 6 de janeiro de 1994, às fls. 286 do Proced. Adm. 889/93, o Consultor Jurídico do Ministério da Justiça após afirmar não vislumbrar “qualquer outra medida instrutória a ser adotada”, opina “ pela constitucionalidade e juridicidade do projeto de Portaria demarcatória, submetido pela FUNAI ao crivo do titular da Pasta da Justiça” e assegura ao Ministro da Justiça, a inexistência, no plano jurídico de “qualquer entrave à edição da mencionada Portaria demarcatória”.

Às fls. 291, do mesmo Proced. Adm. 889/93, o então Advogado Geral da União, Geraldo Quintão encaminha ao Ministro da Justiça o Parecer nº GQ – 81, de 6/9/95, elaborado pelo Consultor da União, Miguel Pró de Oliveira Furtado, no qual conclui que “a demarcação de terras indígenas em área contínuas ou descontínuas é matéria de fato, dependente do fator ocupação, e estritamente sujeita aos parâmetros constitucionais traçados no art. 231”.

Não tendo sido assinada a Portaria Declaratória pelo então Ministro da Justiça Maurício Correa, em 11/1/96, o então Consultor Jurídico do Ministério da Justiça opina no sentido de que “com a edição do Decreto nº 1.775/96, impõe-se seja aberto prazo para oferta de razões, na forma do disposto em seu art. 2º, § 8º”.

E os autos retornam para a Funai, que em 7/6/96 devolve o Proced. Adm. para o Ministro da Justiça Nelson Jobim, “com as manifestações e provas oferecidas”, no total de 7 procedimentos administrativos de contestação, todos juntados aos autos desta Petição nº 3388, pela Funai.

Em 20 de dezembro de 1996, o então Ministro da Justiça Nelson Jobim despachou nos autos , analisando as contestações apresentadas e o Relatório de Identificação, para efeito do disposto no § 10 do art. 2º do Dec. 1775/96, já tendo sido cumprido o disposto art. 9º deste regulamento, com a apresentação das referidas contestações administrativas.

Ao rejeitar as preliminares suscitadas pelos contestantes, o Ministro Nelson Jobim observou que:
1.o procedimento demarcatório se desenvolveu de modo regular, observando as disposições do Dec. 22/91, sob cuja vigência se consumaram os atos respectivos;
2. foi feito levantamento antropológico da área, “à luz dos pressupostos elencados no art. 231 , § 1º, da Constituição Federal, sendo o respectivo relatório publicado no Diário Oficial da União”, sendo suficiente, “pelas normas administrativas então vigentes, para garantir o devido processo legal”;
3. “os procedimentos adicionais de publicidade, instituídos pelo Decreto nº 1775/96, incidem, obviamente, enquanto inovações procedimentais, sobre os atos praticados após a sua vigência, carecendo de qualquer respaldo jurídico a pretensão de aplica-los, retroativamente, aos atos anteriormente realizados”;
4. a competência, de caráter especial, prevista no art. 19 da Lei nº 6.001/73, “não foi derrogada pela Lei nº 6.683, de 07 de dezembro de 1976, que atribuiu ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, a discriminação de terras devolutas da União, nas quais não se subsumem as terras ocupadas pelos índios. Nem conflita a competência atribuída à FUNAI com o art. 20, XI, da Constituição Federal, o qual diz pertencerem à União as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, cabendo, por isso, somente a ela demarca-las. Com efeito, a demarcação das terras indígenas se faz mediante procedimento complexo em que a FUNAI desempenha apenas atividade instrutória, seguida de Portaria Declaratória, do Ministro da Justiça, e de Decreto de Homologação, do Presidente da República. A exigência dos contestantes de que a demarcação seja feita pela União se encontra, assim, plenamente atendida”.

No mérito, o Ministro Nelson Jobim considerou que:
“...o levantamento antropológico, conclusivo quanto à ocupação tradicional indígena da área em questão, goza de presunção ‘juris tantum’ de veracidade, cabendo aos contestantes ministrar as provas que descaracterizem o indigenato das terras. No caso, tais provas não foram feitas...”

Quanto às questões suscitadas contra o Relatório de Identificação e delimitação, notadamente o aspecto relacionado à demarcação da terra indígena de forma contínua ou não, defendido pelo Estado de Roraima, o Ministro da Justiça concluiu que:
1. “a proposta demarcatória da área indígena sob análise, de forma contínua, para preservar a unidade cultural dos grupos indígenas que a habitam, corresponde, assim, aos postulados constitucionais, insculpidos no art. 231, § 1º, da Carta Republicana”;
2. “a proposição do Estado de Roraima, no sentido de se fragmentar a área em ‘adensamentos’, constituídos pelas comunidades indígenas isoladas ou não integradas, mesmo que se a ampliasse, estendendo-a também aos núcleos de índios não isolados, continuaria, ainda assim, frontalmente contrária ao preceito constitucional, pelas razões expostas no laudo citado”.

Porém, quanto aos “ajustes” indicados pelo r. Despacho nº 80, de 1996, do Ministro da Justiça Nelson Jobim, importa traçar algumas considerações que se afiguram relevantes.

Em relação ao “refazimento das linhas divisórias sul, leste e oeste da área delimitada, com o objetivo de excluir da mesma as propriedades privadas tituladas pelo INCRA a partir de 1982, bem como, a ‘Fazenda Guanabara’, pertencente a Newton Tavares, observando , quanto às primeiras, em princípio, a linha divisória explicitada no laudo por ela elaborado em 1981”, deve-se atentar serem atos jurídicos nulos, por força do disposto no art. 198 da CF de 67/69. A conseqüência jurídica possível e cabível para tais situações consiste na reparação de danos, com o pagamento de indenização, se for assim judicialmente comprovado, pela União, ou por quem tenha alienado as terras para particulares, incidentes em terras indígenas.

A exclusão pretendida “da sede municipal do recém criado município de Uiramutã”, foi implementada, pelo Presidente da República, no seu Decreto de homologação da demarcação da TIRSS. Porém necessário ponderar que soluções desta natureza não contribuem para o correto equacionamento de problemas desta natureza. Melhor seria que o Município de Uiramutã continuasse parte das unidades municipais anteriores, sob pena de implicar em conseqüências prejudiciais à sua autonomia financeira. É que não se pode, definitivamente criar-se um Município integralmente em terras tradicionalmente ocupadas por índios. Sendo bem da União, gravada com a inalienabilidade e a indisponibilidade em benefício dos índios que têm direito à posse permanente e ao usufruto exclusivo de suas riquezas naturais, o Município não terá meios para se desenvolver e se estruturar autonomamente, sem violentar o texto constitucional.
No que se refere às Vilas do Surumú, Água Fria, Socó e Mutum, importa asseverar que neste momento, somente a Vila do Surumú continua existindo, em razão de esforços de alguns últimos invasores da terra indígena. As demais Vilas, que historicamente surgiram como expressões de invasões de garimpeiros na terra indígena em questão, não mais existem. Todas estão integradas às comunidades indígenas.

Além disso, não se podem considerar válidos, atos nulos de pleno direito, por força do disposto no art. 198 da CF de 67/69, como no art. 231 da CF em vigor.

Após a apresentação pela Funai, da Informação nº 007/DEID/98, de 21/5/98, elaborada pelo antropólogo Walter Coutinho Jr, a respeito das diligências e determinações consignadas pelo Min. Nelson Jobim, em seu Despacho nº 80, de 1996 (fls. 724 a 762), o então Presidente da Funai, Sulivan Silvestre Oliveira, em 19 de junho de 1998 encaminhou ao então Ministro da Justiça Renan Calheiros o Ofício nº 0371, no qual solicita, “em caráter excepcional, a reconsideração do” Despacho nº 80,de 1996, por considerar que “implicará na remoção de diversas comunidades indígenas dos locais que tradicionalmente habitam, bem como na exclusão de áreas usadas para atividades produtivas e necessárias à preservação dos recursos ambientais e à reprodução física e cultural das comunidades indígenas que ocupam a TI Raposa/Serra do Sol...”.

Em 10 de dezembro de 1998, o Ministro Renan Calheiros, decidiu, por intermédio do Despacho nº 50 , “expedir portaria declaratória da terra indígena Raposa Serra do Sol determinando que fiquem ressalvadas, para solução posterior, as situações controvertidas”, alinhando-se aos termos do Parecer do Consultor Jurídico do Ministério da Justiça, Byron Prestes Costa juntado aos autos às fls. 767. Desta decisão resultou a Portaria nº 820 , de 11 de dezembro de 1998, declarando de posse permanente dos índios a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, com superfície aproximada de 1.678.800 ha. O art. 3º desta Portaria cuidou de excluir dos limites da terra indígena a “área do Pelotão Especial de Fronteira (6º PEF), no Município de Uiramutã – RR”

4.3. O Procedim. Adm. 772/99, da Funai – Homologação da demarcação administrativa da Terra Indígena Raposa Serra do Sol;

Demarcada a área, com a colocação dos marcos oficiais nos limites indicados na Portaria nº 820, de 1998, do Ministro da Justiça, a Funai autuou o Proced. Adm. nº 772/99, para submeter ao Exmo Senhor Presidente da República, sua homologação por Decreto, conforme previsto no § 1º do art. 19 da Lei nº 6.001/73.

Às fls. 24 e 25 deste Procedimento Administrativo, juntado aos autos desta Ação Popular pela Funai, às fls. 1286 a 1659, contam o “Memorial Descritivo de Demarcação” e a “Descrição do perímetro” da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no qual constam as coordenadas geodésicas, a base cartográfica adotada e as dimensões precisas da área demarcada, indicando: 1.751.330,9285 ha (um milhão, setecentos e cinqüenta e um mil trezentos e trinta hectares, noventa e dois ares e oitenta e cinco centiares) de superfície e 934.279,58 m (novecentos e trinta e quatro mil, duzentos e setenta e nove metros e cinqüenta e oito centímetros) de perímetro.

No caso, esclareça-se desde já, inclusive em resposta a questionamento feito pelo Estado de Roraima, que a diferença à maior, no quantitativo de 72.530,9285 ha (setenta e dois mil, quinhentos e trinta hectares, noventa e dois ares e oitenta e cinco centiares) entre a superfície aproximada declarada na Portaria-MJ nº 820/98 e o Memorial descritivo da demarcação, decorre de medições precisas quando da efetiva colocação dos marcos nos locais correspondentes às coordenadas geográficas aproximadas indicadas na Portaria declaratória dos limites da terra indígena.

Esta Suprema Corte já teve oportunidade de analisar impugnação fundada em alegado vício do ato administrativo de homologação de terra indígena, em razão de divergência na superfície indicada no Decreto de Homologação, em comparação com a Portaria declaratória dos limites a serem demarcados. Tratava-se do Mandado de Segurança nº 21.896, referente à homologação da demarcação da Terra Indígena Jacaré de São Domingos, tradicionalmente ocupada por comunidades do Povo Indígena Potiguara, no Estado da Paraíba. Por ocasião de seu julgamento a maioria acompanhou o Voto divergente do Ministro Joaquim Barbosa, inclusive com esclarecimentos técnicos prestados pelo Ministro Nelson Jobim, assentando, o que restou sintetizado no seguinte tópico de sua Ementa:
“...
No que tange à declaração dos limites e superfície da terra indígena a ser demarcada, é possível haver diferença entre área e perímetro estabelecidos pela Portaria do Ministério da Justiça e aqueles constantes do decreto presidencial.
...”

Ocorre que o Decreto de Homologação, cuja minuta consta dos autos às fls. 28 não pode ser assinado pelo então Presidente da República, em razão de decisão liminar concedida pelo Ministro Aldir Passarinho Júnior, do Superior Tribunal de Justiça, em 18 de junho de 1999, nos autos do Mandado de Segurança nº 6210, impetrado pelo Estado de Roraima, na qual suspendeu:
“os efeitos da Portaria n. 820/98 quanto aos núcleos urbanos e rurais já constituídos até a edição do referenciado ato, bem como para permitir, também, aos seus respectivos moradores, o livre acesso e trânsito necessário à normalidade de suas vidas”.

Com o julgamento do referido Mandado de Segurança, pela Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, em 27/11/2002, já sob a Relatoria da Ministra Laurita Vaz, ocasião em que o processo foi extinto sem julgamento de mérito, “ressalvadas as vias ordinárias”, por ausência de direito líquido e certo do impetrante , fora superado o óbice judicial.

Em conseqüência, somente em 31 de março de 2004, o então Diretor de Assuntos Fundiários da Funai encaminhou ao então Chefe de Gabinete do Ministro da Justiça nova minuta de Decreto de Homologação da demarcação da TIRSS, acompanhada de novo “Memorial descritivo de demarcação” e “Descrição de perímetro” e da Informação nº 040/CGD, também de 31/3/2004, na qual o engenheiro agrimensor da Funai, Renato Eduardo Pereira D’Alencar (fls. 162 do Proc. Adm. 72/99) esclarece que:
“...foi editada e divulgada a nova Malha Municipal Digital do IBGE e com base nestes dados procedemos a atualização do mapa e do memorial descritivo desta demarcação especificamente nos limites de fronteira, utilizando-se também os dados da PCDL (Primeira Comissão Demarcadora de Limites) referentes às coordenadas dos marcos de fornteira, conforme lista anexa, passando após estas correções, a ter a superfície de 1.743.089,2805 ha (um milhão setecentos e quarenta e três mil,oitenta e nove hectares, vinte e oito ares e cinco centiares) e perímetro de 957.399, 13 m (novecentos e cinqüenta e sete mil, trezentos e noventa e nove metros e treze centímetros).
Tal procedimento fora tomado para que obtivéssemos mais precisão dos limites internacionais, uma vez que a demarcação anterior fora realizada com base nas cartas do Projeto Radam que, conforme já é do amplo conhecimento, apresentam algumas incorreções.
Informamos ainda que os dados das coordenadas geodésicas dos marcos implantados na linha seca demarcada em 1999 (do Marco M-04 ao Marco M-05) não sofreram alterações”.

Ocorre que em 4 de março de 2004, foi concedida nos autos da Ação Popular nº 1999.42.00.000014-7, pelo Juiz Substituto da 1ª Vara Federal da Seção Judiciária de Roraima, decisão liminar para “suspender os efeitos da Portaria nº 820/98 (fl 13) quanto aos núcleos urbanos e rurais já constituídos, equipamentos, instalações e vias públicas federais, estaduais e municipais, e, principalmente, o art. 5º do mesmo ato administrativo”.

No Agravo de Instrumento nº 004.01.00.011116-9/RR, interposto pelo Ministério Público Federal contra a referida decisão liminar, sua Relatora, a Desembargadora Federal Selene Maria de Almeida, decidiu, em 13 de maio de 2004:
“No exame sumário e provisório desta decisão, apreciando o pedido de concessão de efeito suspensivo excluir da área indígena Raposa Serra do Sol, até julgamento final da demanda, as seguintes áreas:
1. faixa de fronteira (art. 20, § 2 º, da CF/88), até que seja convocado o Conselho de Defesa Nacional, ex vi do art. 91, § 1º, inciso III, da CF/88 para opinar sobre o efetivo uso das áreas localizadas na faixa de fronteira com a Guiana e Venezuela;
2. a área da unidade de conservação ambiental Parque Nacional Monte Roraima.
Mantenho a decisão agravada para o efeito de manter excluídas os Municípios, as vilas e as respectivas zonas de expansão; as rodovias estaduais e federais e faixas de domínio e os imóveis de propriedade e posse anterior ao ano de 1934, e as plantações de arroz irrigados no extremo sul da área indígena identificada.
Reformo parcialmente a decisão agravada para manter a proposta da FUNAI saída das propriedades rurais tituladas após a Constituição de 1934 ou que não estejam alcançados pela coisa julgada”.

O pedido dos efeitos jurídicos destas decisões liminares requerido pela União ao Presidente do STJ, na Suspensão de Liminar nº 94-RR, foi indeferido, tendo sido mantida pela Corte Especial do STJ, por ocasião do julgamento do Agravo Regimental interposto contra a decisão indeferitória do Presidente do Tribunal.

Da mesma forma, a então Vice-Presidente do Supremo Tribunal Federal, no exercício da Presidência, a Exma Senhora Ministra Ellen Gracie, em 29 de junho de 2004, indeferiu a mesma pretensão do MPF, nos autos da Suspensão Liminar nº 38-1/RR, decisão esta confirmada por unanimidade, pelos Ministros deste Supremo Tribunal Federal, em 01/09/2004, no julgamento do Agravo Regimental interposto pelo Ministério Público Federal .

Em 13 de abril de 2004, o Ministro da Justiça firmou a Portaria nº 534, ratificou, “com as ressalvas contidas nesta Portaria, a declaração de posse permanente dos grupos indígenas Ingarikó, Makuxi,Taurepang, e Wapixana sobre a Terra Indígena denominada Raposa Serra do Sol”. Neste ato administrativo, além de manter a terra indígena submetida ao disposto no § 2º do art. 20 da Constituição, excluiu dos limites demarcados:
1. “a área do 6º Pelotão Especial de Fronteira (como já havia sido estabelecido na Portaria nº 820/98”;
2. os equipamentos e instalações públicos federais e estaduais atualmente existentes”;
3. o núcleo urbano atualmente existente da sede do Município de Uiramutã, no Estado de Roraima”;
4. “as linhas de transmissão de energia elétrica”; e
5. “os leitos das rodovias públicas federais e estaduais atualmente existentes”.

Tendo em vista os termos deste novo ato administrativo, com o julgamento procedente da Reclamação nº 2833, proposta pelo Ministério Público Federal, com o qual o Supremo Tribunal Federal reconheceu sua competência para processar e julgar a Ação Popular nº nº 1999.42.00.000014-7, que então tramitava na 1ª Vara Federal da Seção Judiciária de Roraima e a extinguiu, por perda superveniente de seu objeto.

Em conseqüência, o Presidente da República homologou a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 15 de abril de 2005, adotando “Plano de consolidação da Terra Indígena Raposa após sua Homologação e outras Medidas Fundiárias Complementares”.

A este Plano de consolidação, somou-se o “Plano de destinação de terras públicas para o Estado de Roraima”, (cuja cópia requer-se a juntada aos autos) elaborado pelo INCRA, por intermédio do qual foi, como está assegurada a possibilidade de reassentamento de todos os não-índios que se encontravam nos limites da terra indígena Raposa Serra do Sol.

5. A improcedência das alegações suscitadas pelo Autor da Ação Popular e pelo Estado de Roraima

A improcedência das alegações do Autor são corroboradas pelas cópias de documentos juntados aos autos pelo Estado de Roraima. Ao informar os locais de votação na TIRSS, o atendimento à saúde indígena, com base em informações da Funasa, informações da Companhia de Águas e Esgotos de Roraima, quanto à aldeias indígenas com serviços de rede de abastecimento de água, bem como pelo atendimento de serviço de energia elétrica pela Companhia Energética de Roraima, além de informações da Secretaria de
Educação sobre as atividades oficiais de educação escolar indígena, inclusive em ensino superior de terceiro grau, evidencia-se que a TIRSS é ocupada por comunidades indígenas, que se beneficiam e querem se beneficiar, como cidadãos e cidadãs brasileiros, dos serviços devidos pelo Estado nacional.

Por outro lado, impugnam-se os papéis juntados aos autos pelo Estado de Roraima, requerendo desde já se desentranhamento dos autos, denominados como “Apreciação...”, com diversas numerações e datas, sem que conste qualquer referência à sua autoria e fonte, nos quais são consignadas afirmações falsas envolvendo comunidades indígenas e terceiros.

No que se refere à Declaração da Superintendente Regional Adjunta do INCRA, de 26/11/93, no sentido de que o título emitido em favor de Edmilson Cordeiro, e que posteriormente foi vendido para Itikawa Ind. Com. Ltda, "não padece de vícios insanáveis”, cumpre observar que se para a servidora do INCRA não havia vício insanável quanto aos atos praticados na ocasião por esta autarquia, tal assertiva não convalida o ato jurídico em questão, tendo em vista que sua nulidade decorre de expressa determinação constitucional inscrita no § 6º do art. 231 da CF. No caso, os beneficiários desta Declaração poderão, no máximo se habilitar em processo judicial de reparação de danos materiais contra a União, que por sua vez deverá exercer seu direito de regresso contra quem provocou tal prejuízo.

Conforme foi precisamente assinalado na Ementa do Acórdão da Remessa Ex Officio nº 96.01.08732-0/DF, cuja Relatora foi a então Juíza Federal convocada Selene Maria de Almeida, julgado pela Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região:
“...
2. Toda a região norte-oriental do Estado de Roraima apresenta vestígios de ocupação imemorial indígena, pelos povos Wapixana, Makuxi e Taurepang, que além de numerosos, mantêm estreitos laços de parentesco, áreas comuns de exploração dos recursos naturais e rituais comuns, conforme reiterados relatos históricos, estudos e pareceres oficiais conhecidos.
3. Apesar da constatação da ocupação indígena, no início da década de 80 a FUNAI, utilizando critérios tecnicamente discutíveis ou até mesmo desconhecidos e despidos de amparo legal, retalhou a região em apreço em dezenas de áreas de dimensões reduzidas, deixando entre elas o espaço livre para o afluxo de ocupantes não índios, intensificado pela construção de estradas com traçado sobre as próprias áreas delimitadas e por outros incentivos oficiais ou semi-oficiais. Este fato atentou contra o modo de vida, a reprodução física e cultural das tribos mencionadas, pois dificultou a manutenção dos laços de parentesco entre as várias malocas, afastou a caça e a pesca e as expôs a numerosos conflitos com posseiros não índios que, a cada embate, acabavam estendendo mais os limites de suas atividades agropecuárias, extrativas e especulativas, não hesitando mesmo em adentrar áreas formalmente delimitadas como indígenas, como na hipótese objeto da presente ação civil pública”

Esta decisão, que se referia à Terra Indígena Canauanim, tradicionalmente ocupada por comunidades indígenas dos Povos indicados no Acórdão expressa com trágica certeza, o que se buscou evitar com a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, nos limites declarados no ato impugnado nesta ação popular.

Não existe, na Constituição Federal, como na legislação infraconstitucional e regulamentar que dispõem sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas e sua demarcação administrativa pela União quaisquer referências que permitam indicar ou mesmo sinalizar a perspectiva de que uma terra tradicionalmente ocupada por povos indígenas deva ser demarcada de uma forma ou de outra.

Os limites a serem demarcados e consequentemente a conformação de seu perímetro e dimensão territorial decorrem, sempre, inclusive como já se verificava na vigência da Constituição Federal de 1967/1969, nos termos do disposto no então vigente art. 198, como nos termos previstos no art. 231 da Constituição Federal, da compreensão e da comprovação da ocupação da terra, de acordo com os usos e costumes de cada grupo étnico, ou mesmo de mais de um grupo étnico que coabitem uma mesma região geográfica, cientes de que estes grupos sociais étnica e culturalmente distintos entre si distribuem-se nos espaços territoriais e usufruem das riquezas naturais nelas existentes, de acordo com suas formas próprias de organização social, seus usos, costumes, línguas, crenças e tradições.

Quando se está diante, portanto, do desafio no sentido de demonstrar e comprovar se uma terra é tradicionalmente ocupada por índios, não existe a hipótese de considerá-la de forma contínua ou descontínua, ou mesmo na forma de “ilhas”, como se tem divulgado na imprensa.

As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios somente poderão ser corretamente consideradas dessa forma, se forem garantidas, por demarcação administrativa, ou por decisão judicial nas suas corretas dimensões, de forma que possibilitem às comunidades dos povos indígenas: as habitarem em caráter permanente; as utilizarem para suas atividades produtivas; preservarem os recursos ambientais considerados imprescindíveis e necessários a seu bem-estar e as necessárias à reprodução física e cultural destes povos indígenas.

Conceber a demarcação de uma terra indígena sem contemplar estes aspectos, que, afirme-se são requisitos mínimos concebidos pelos constituintes originários implica em submeter as comunidades indígenas beneficiárias destes atos administrativos, como observado no Acórdão anteriormente transcrito, a situações que prejudicam e até mesmo inviabilizam sua existência enquanto povos indígenas ou grupos sociais étnica e culturalmente distintos e diferenciados entre si e da sociedade brasileira.

A situação em que vivem comunidades indígenas dos povos Kaiowá e Ñadeva, no Estado do Mato Grosso do Sul, é atualmente a demonstração dramática da concepção de se demarcar as terras indígenas em limites reduzidos e diminutos, liberando-se as áreas em volta das terras indígenas demarcadas para a apropriação privada, por intermédio de alienação pelo Estado federado, com a subseqüente titulação do domínio em nome de pessoas naturais e jurídicas nacionais ou estrangeiras.

A exemplo do que ocorre em várias terras indígenas demarcadas nas décadas de 60, de 70 e de 80, que atualmente são objeto de insistentes pedidos de revisão de limites formulados por comunidades indígenas, inclusive com o apoio de representantes do Ministério Público Federal e até mesmo com decisões judiciais, os povos indígenas Kaiowá e Ñandeva no Estado do Mato Grosso do Sul necessitam e para tanto a Funai firmou com o Ministério Público Federal um Termo de Ajustamento de Conduta – TAC, exatamente para rever os limites das terras demarcadas, ou mesmo demarcar as terras tradicionalmente ocupadas por comunidades destes povos indígenas, que vivem efetivamente “ilhadas” por fazendas que, além de explorarem a mão de obra barata dos trabalhadores indígenas, ameaçam e constrangem suas comunidades e lideranças quando implementam a retomada da posse das terras que tradicionalmente ocupam, mas que estão invadidas por não-índios.

Os registros de suicídios e violências entre membros destas comunidades indígenas, que tem provocado um grave aumento da população indígena carcerária no Estado do Mato Grosso do Sul, são expressões da conseqüência decorrente da desorganização social que a limitação do espaço territorial tem provocado, junto com outros fatores nefastos que atingem estas comunidades indígenas.

Por oportuno, convém relembrar que após o término da ditadura militar, período no qual muitas terras indígenas foram demarcadas com limites reduzidos, no Governo Sarney, por influência do Projeto Calha Norte, foi concebida a política de demarcação de terras indígenas, distinguindo-as em razão de improcedente e equivocado critério de “aculturação” dos índios, conforme previsto no Decreto nº. 94.946, de 1987. Os índios considerados “aculturados” teriam suas terras demarcadas como “colônias indígenas” e os índios “não-aculturados” teriam suas terras demarcadas como “áreas indígenas”. Esta concepção foi aplicada nas terras indígenas localizadas no alto rio negro e nas terras do povo Yanomami. No Rio Negro, as terras indígenas foram demarcadas como “colônias indígenas”, cercadas por florestas nacionais e as terras yanomami foram demarcadas como “áreas indígenas”, também cercadas por florestas nacionais.

Considerando que nas florestas nacionais era admitido o desenvolvimento de atividades econômicas, de acordo com planos de manejo, resulta que o propósito destas concepções políticas era o de demarcar as terras indígenas com limites reduzidos, liberando as áreas em volta para o desenvolvimento de atividades econômicas privadas, cujo resultado se destinaria, conforme expressamente previsto no “Projeto Calha Norte”, para a exportação, já que as áreas fronteiriças onde estas terras indígenas se localizam como também ocorre em relação à Terra Indígena Raposa Serra do Sol, eram concebidos como “corredores de exportação”.

Curioso observar novamente, que na mesma ocasião em que o Governo Sarney implementava sua política de demarcação de terras indígenas concebida por segmentos militares, na Constituinte, as forças conservadoras, organizadas no que se denominou como “centrão” desenvolviam intensa movimentação no sentido de defender que as terras indígenas fossem constitucionalmente previstas como sendo as terras “de posse imemorial onde os índios se achassem permanentemente localizados“.

Com a aprovação do texto do atual art. 231 da CF, a pretensão conservadora se viu derrotada, o que levou inclusive à revisão da demarcação das terras indígenas do Rio Negro e Yanomami, no Governo Collor de Mello.

Não obstante, estes seguimentos conservadores jamais abandonaram seu verdadeiro propósito no sentido de criar condições para aprovar normas ou regulamentos que impliquem na restrição da demarcação das terras indígenas. Na época foram intensas e agressivas as reações militares e de setores políticos conservadores e de direita contra a revisão da demarcação destas terras indígenas.

A pressão e as reações contra esta concepção política se desenvolveram tanto no Governo Collor, ocasionando a edição do Decreto nº. 22/91, como no Governo de Fernando Henrique Cardoso, no qual foi concebido pelo então Ministro da Justiça Nelson Jobim, os termos do atual Decreto nº. 1.775/96, que contempla uma fase procedimental para acomodar as reações contra a definição dos limites a serem demarcados. Trata-se da já mencionada fase do “contraditório”, justificada sob o amparo de garantia constitucional inscrita no inciso LIV e LV do art. 5º da CF.

É neste contexto que atualmente se situa o embate judicial que se trava em torno da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no qual a velha tese, já praticada com resultados desastrosos para os povos indígenas e para o país, de que as terras indígenas devem ser demarcadas com limites reduzidos, seja como colônias ou áreas indígenas, seja como “ilhas”, ou áreas descontínuas, busca novo fôlego.

5.1. Ofensa ao princípio do devido processo legal, em razão de vícios no procedimento administrativo de demarcação da Terra Indígena da Raposa/Serra do Sol”.

Ao contrário do que é sustentado pelo Autor e pelo Estado de Roraima, com base em Relatório Parcial de uma Comissão de Peritos constituída por Juiz Federal nos autos de Ação Popular já extinta e tendo presente a análise dos procedimentos administrativos destinados à demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol:

• No procedimento administrativo para a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol contou-se com a participação indígena, tendo sido garantida a possibilidade de todos participarem e acompanharem a tramitação do procedimento administrativo;

• A participação do Governo do Estado de Roraima não foi comprometida, em especial em razão do contido no Processo nº 1163/96, no qual foram deduzidas as contestações do Estado de Roraima ao Relatório de Identificação da terra indígena Raposa Serra do Sol;

• As contribuições de “membros da comunidade científica ou especialistas sobre o grupo indígena envolvido”, ao contrário que foi alegado pelo autor foi devidamente considerada nos limites da faculdade assegurada ao Grupo Técnico, conforme previsto no § 4º do art. 2º do Dec. 22/911 e no § 4º do art. 2º do Dec. 1775/96;

• Ao contrário do alegado e não provado pelo Autor, não foi incluído no Grupo Técnico de identificação e delimitação qualquer representante da Igreja Católica, mas profissionais com notórios conhecimentos jurídicos sobre a realidade objeto dos procedimentos administratios;

• Os Municípios à época envolvidos, Boa Vista e Normandia, tiveram assegurada a possibilidade de participação no procedimento administrativo, como ocorreu com o Município de Normandia, que apresentou contestações ao Relatório de Identificação, autuadas no Processo/Funai/Bsb nº 1439/96;

• Os produtores agropecuários, os comerciantes estabelecidos nas localidades, os garimpeiros, e os demais interessados na demarcação da terra indígena foram amplamente considerados, tanto que apresentaram suas contestações, todas autuadas e analisadas, nos Processos nºs 1185/96, 1258/96, 1259/96, 1264/96, 1265/96, 1266/96 e 0122/99, inclusive de forma específica no Despacho nº 80, de 1996, do então Ministro da Justiça Nelson Jobim, que as rejeitou integralmente;

• O Grupo Técnico constituído na vigência do Dec. 22/91, posteriormente funcionou sob as normas do Dec. 1775/96, aproveitados todos os atos administrativos até então realizados, tendo sido apresentados o Relatório circunstanciado de Identificação e Delimitação, nos termos previstos no § 6º do art. 2º do Dec. 22/91, que é reiterado no Dec. 1775/96, caracterizando a terra indígena a ser demarcada;

• Os estudos antropológicos juntados aos autos do procedimento administrativo pela antropóloga Maria Guiomar e Paulo Santilli aprovados pelo Presidente da Funai e pelo Ministro de Estado da Justiça Renan Calheiros e convalidados pelo Presidente da República, contém uma ampla coletânea de peças completamente interdependentes, formando um corpo lógico indicando a demarcação enfim efetivada e homologada;

• O Relatório de identificação e delimitação não deve analisar, por se tratar de matéria estranha ao objeto do procedimento administrativo de demarcação, qualquer aspecto ou indicar conclusões sobre tópicos, tais como:
• a . reflexos sobre os interesses da Segurança e da Defesa Nacionais;
• b. Reflexos sobre a importância da região para a economia do Estado de Roraima;

• A Portaria 534/2005 englobou na demarcação das terras indígenas Raposa Serra do Sol a área constante do Parque Nacional Monte de Roraima, criado pelo Decreto 97.887, de 28.07.89, por ser uma área tradicionalmente ocupada por índios, tendo sido prevista forma de administração ambiental e indigenista, decorrente da dupla afetação desta relevante região do país;

• A Portaria 534/2005 englobou a área tradicionalmente ocupada pelos Ingarikós, já demarcada por ser administrativamente mais adequado e constitucionalmente possível, já que todas são bens da União.

5.2. Riscos à integridade da soberania do Estado brasileiro em razão da TIRSS se localizar na Faixa de Fronteira

O Autor popular e o Estado de Roraima suscitam o debate de que a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, por estar localizada na Faixa de Fronteira, implicaria riscos à integridade quanto à soberania territorial do Estado brasileiro, na região, considerando, conforme alegação atribuída a um Oficial do Exército brasileiro, a noticiadas pretensões territoriais de país vizinho ao Brasil sobre área de outro Estado igualmente vizinho, além de observações quanto à supostos interesses da Organização das Nações Unidas em relação à redução ou constrangimento sobre o instituto da soberania nacional.

Importa destacar desde já, que o Autor alega estes óbices atribuídos a uma autoridade militar brasileira, mas não produz prova alguma em relação a tais aspectos então suscitados.

Além disso, não se pode olvidar que circunstâncias como as referidas relacionadas a supostos riscos à integridade territorial do Estado Brasileiro, no que se refere às terras indígenas encontram respostas no ordenamento constitucional em vigor.

Com efeito, o disposto no § 5º do art. 231 da CF estabelece que “...por interesse da soberania do País..” e “...após deliberação do Congresso Nacional” é assegurada a possibilidade de remoção de comunidades indígenas das terras que tradicionalmente ocupam, garantido o retorno delas a estas terras, tão logo cessem os riscos que ensejaram a remoção.

Trata-se, portanto de hipótese constitucional de remoção temporária de índios das terras que tradicionalmente ocupam, por interesse da soberania do País.

Esta regra responde, assim, duas questões relacionadas à ocupação de povos e comunidades indígenas em terras localizadas na Faixa de Fronteira, prevista no § 2º do art. 20 da CF:
1ª) não há óbice constitucional à demarcação de terras indígenas localizadas na faixa de fronteira;
2ª) sempre que existir efetivo risco ou ameaça à integridade territorial do Estado Brasileiro, por interesse da soberania do País, será possível, mediante prévia deliberação do Congresso Nacional a remoção temporária dos índios das terras que tradicionalmente ocupam.

Não teria sentido a previsão da exceção inscrita no § 5º do art. 231 da CF, relacionada ao interesse da soberania do País, não fosse a circunstância de que a presença indígena nas terras que tradicionalmente ocupam, seja onde estiverem localizadas não acarrete qualquer problema ao Estado brasileiro.

Trata-se de solução normativa que compatibiliza os interesses dos povos indígenas em relação às terras que tradicionalmente ocupam, com as necessidades do Estado, relacionadas à defesa e proteção de seu território, como expressão da soberania estatal.

Situa-se no mesmo nível de equacionamento normativo, a constatação, ao contrário do que alguns ainda sustentam, no sentido de não ser necessária para a demarcação e a homologação da demarcação de terras indígenas localizadas na faixa de fronteira, a prévia manifestação do Conselho de Defesa Nacional.

Trata-se de concepção equivocada no sentido de sustentar a tese da ilegitimidade do Presidente da República para homologar a demarcação de terras indígenas, pelo fato deste ato administrativo dever ser precedido de apreciação e manifestação do Conselho de Defesa Nacional, “na forma prescrita pelo art. 91, parágrafo 1°, inciso III, da CF”, quando uma terra indígena se situe “na faixa de 150 quilômetros de largura, paralela à linha divisória terrestre do território nacional”.

O Presidente da República não está obrigado a submeter a homologação de demarcação de terras tradicionalmente ocupadas por índios à prévia manifestação do Conselho de Defesa Nacional.

Nos precisos termos do caput do art. 91 da CF, o Conselho de Defesa Nacional é um “órgão de consulta do Presidente da República”.

O § 1º deste art. 91 da CF, ao fixar as matérias de competência do Conselho de Defesa Nacional não prevê a manifestação prévia sobre a homologação da demarcação de terras indígenas.

Nem a Lei n° 6634/79, que “dispõe sobre a Faixa de Fronteira” e nem a Lei n° 8183/91, que “dispõe sobre a organização e o funcionamento do Conselho de Defesa Nacional” prevêem qualquer manifestação, assentimento ou anuência prévia em relação à demarcação ou à homologação da demarcação de terras tradicionalmente ocupadas por índios.

Cogitar que o disposto no inciso III do § 1º do art. 91 da CF enseja a interpretação de que ao Conselho de Defesa Nacional compete opinar sobre a homologação de demarcação de terras indígenas, consiste em exercício insano de hermenêutica.

Este dispositivo constitucional prevê a competência do Conselho de Defesa Nacional para “propor os critérios e condições de utilização de áreas indispensáveis à segurança do território nacional e opinar sobre seu efetivo uso, especialmente na faixa de fronteira e nas relacionadas com a preservação e a exploração dos recursos naturais de qualquer tipo”.

As terras tradicionalmente ocupadas por índios destinam-se, nos termos do que estabelecem o § 2º do art. 231 da CF, à posse permanente pelos índios, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. De acordo com o disposto no § 4º do mesmo art. 231, as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. É ainda, vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo as hipóteses expressamente previstas no § 5º do art. 231 da CF.

Considere-se ainda serem “nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvando relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar...”.

Diante deste ordenamento constitucional em relação aos direitos territoriais indígenas, não resta dúvida que qualquer critério ou condição destinada à utilização de terras indígenas, considerando-as “indispensáveis à segurança do território nacional”, ou mesmo qualquer medida administrativa ou manifestação do Conselho de Defesa Nacional sobre o efetivo uso das terras, por se localizarem na Faixa de Fronteira, que implique qualquer limitação ou restrição à posse e ao usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes nas terras que tradicionalmente ocupam, serão considerados atos nulos, por força do que estabelece o § 6º do art. 231 da CF.

A única exceção a esta regra consiste na previsão de lei complementar dispondo sobre atos de relevante interesse da União em terras indígenas. Mas esta lei complementar não existe.

Este, por oportuno consiste no fundamento quanto à inconstitucionalidade parcial do Decreto nº 4.412, de 2002, no que se refere à possibilidade de instalação e construção em terras indígenas de instalações militares e da polícia federal. Estas obras, como a construção de bases militares e postos policiais em terras indígenas localizadas em faixa de fronteira, são, inegavelmente hipóteses de relevante interesse da União. Porém, em respeito à normatização concebida pelos constituintes originários, estes atos e obras que implicam ocupação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, terão validade na medida em que estejam previstos na referida lei complementar que venha a dispor sobre os atos de relevante interesse da União.

Além disso, não tem cabimento imaginar que o Chefe de Estado possa estar submetido, condicionado ou subordinado à prévias manifestações de um órgão, como o Conselho de Defesa Nacional, que se reúne somente quando é por ele convocado, conforme consta no art. 3° da Lei n° 8.183/91.

Convém destacar ainda, o seguinte trecho do Parecer GQ-81, da Advocacia Geral da União, de 25 de julho de 1995, elaborado pelo Consultor da União, Dr Miguel Pró de Oliveira Furtado, aprovado pelo Presidente da República em 6 de dezembro de 1995 , também transcrito na Informação n° AGU/RA – 16/2005, às fls. 1053/1054, destes autos:
“6. Reexaminada a questão com mais vagar, penso, hoje, não ser necessária a ouvida do Conselho de Defesa Nacional. Esse novo entendimento funda-se no fato de que ao ilustre Conselho compete propor critérios e condições de utilização de áreas indispensáveis à segurança do território nacional, opinando sobre o seu efetivo uso, especialmente na faixa de fronteira. Ora, quando se trata de áreas indígenas, os critérios e as condições de utilização delas pelos índios são precisamente os que estão fixados na Constituição federal, no capítulo VIII do Título VIII (arts. 231 e 232). Nenhuma margem, pois, sobra ao douto Conselho nesse campo.
7. De outro lado, na qualidade órgão de consulta do Presidente da República (C.f., art. 91), compete ao Conselho de Defesa pronunciar-se sempre que o Presidente queira ouvi-lo sobre qualquer das matérias especificadas no § 1º do art. 91 da Constituição federal e, especialmente, quando o Presidente haja de expedir ato normativo de natureza geral nas hipóteses do inciso III do mesmo parágrafo.”.

Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do Mandado de Segurança nº 25.483, que impugnava exatamente o Decreto de homologação da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, por unanimidade de votos, acompanhando o Voto do Relator, o Exmo Senhor Ministro Carlos Ayres Brito, concluiu, conforme precisamente consignado na Ementa do Acórdão, que:
“...
Cabe à União demarcar as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios (caput do artigo 231 da Constituição Federal). Donde competir ao Presidente da República homologar tal demarcação administrativa.
A manifestação do Conselho de Defesa Nacional não é requisito de validade da demarcação de terras indígenas, mesmo daquelas situadas em região de fronteira.
...”

Quanto à alegada “intenção da ONU de restringir a atuação das forças armadas em território indígena”, convém esclarecer tratar-se de preocupação quanto a referências contidas na “Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas/”, que por ocasião da propositura da ação popular estava em discussão, mas que em 13 de setembro de 2007 foi aprovada pela Assembléia Geral da ONU.

Em que pese a “Declaração” reconhecer aos Povos Indígenas no seu art. 3°, o “direito à livre determinação” é necessário ponderar que em todos os dispositivos da “Declaração da ONU”, na medida em que são assegurados os direitos aos Povos indígenas, são também remetidas indicações para que os Estados nacionais administrem formas próprias que proporcionem o respeito às especificidades étnicas e culturais dos Povos Indígenas, em todas as áreas de seus interesses.

Emerge desta nova referência normativa internacional em relação aos povos indígenas, o princípio que deve nortear as relações dos Estados nacionais com os Povos Indígenas, por intermédio da participação destes de forma previamente informada e consciente, para que se possibilitem eventuais consentimentos “livres, prévios e informados” pelos Povos Indígenas.

Neste contexto normativo, não só em razão da ressalva contida no art. 46 da “Declaração” , mas fundamentalmente em razão do conteúdo de todos os seus dispositivos, a “livre determinação” assegurada no art. 3º da “Declaração” pode ser interpretada no patamar do instituto da “autonomia”, que no âmbito da organização política e jurídica de cada Estado venha a ser previsto e assegurado.

Neste sentido, não se pode desconsiderar que o disposto no caput do art. 231 da Constituição Brasileira, ao reconhecer aos índios suas formas próprias de organização social, seus costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam e ao estabelecer competir à União promover o respeito aos bens indígenas, o constituinte originário projetou para o cenário jurídico nacional uma base institucional de relacionamento do Estado e da sociedade brasileira com os índios, segundo a qual está constitucionalmente assegurado o respeito à diversidade étnica e cultural como fonte normativa das relações jurídicas dos povos e comunidades indígenas, como expressão do instituto de autonomia que norteia as atuais condições de vida dos povos indígenas no âmbito da organização do Estado brasileiro, em perfeita sintonia com o instituto da soberania do Estado.

Trata-se, da projeção de um novo paradigma da compreensão do instituto da soberania dos estados nacionais, de forma a se respeitar as diversidades étnicas e culturais destes povos, como expressões sociais e políticas legítimas no âmbito dos territórios dos Estados nacionais, de maneira mais profunda.

Nesta mesma linha de compreensão, a referência contida no art. 30 da “Declaração da Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas”, segundo o qual “não se desenvolverão atividades militares nas terras ou territórios dos Povos Indígenas, a menos que o justifique uma razão de interesse público pertinente, ou que se tenha livremente acordado com os povos indígenas interessados, ou que estes o tenham solicitado”, busca balizar critério objetivo no sentido de equalizar relações entre os Povos Indígenas e os interesses militares dos Estados nacionais, de forma que possibilite a compatibilização destes dois aspectos relevantes, sem que um deles se sobreponha ao outro.

Em relação à preocupação quanto a esta sobreposição, convém situar o contido no referido art. 30 da “Declaração”, em realidades de muitos países nos quais grandes extensões de terras indígenas se vêem ocupadas por forças militares do Estado nacional, gerando a categorização de serem “territórios indígenas militarizados”.

Com o intuito de se evitar esta sobreposição de um interesse sobre o outro é que o art. 30 da Declaração da ONU indica o procedimento recomendado no seu parágrafo 2º, no sentido de que:
“os Estados celebrarão consultas eficazes com os povos indígenas interessados, por meio de procedimentos apropriados e em particular por meio de suas instituições representativas, antes de utilizar suas terras ou territórios para atividades militares”.

Do exposto, conclui-se pela inexistência de quaisquer riscos de comprometimento à integridade territorial e à soberania do Estado brasileiro com a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, como não ocorre com as quase 200 terras indígenas demarcadas na faixa de norte a sul da fronteira do Brasil, conforme informações disponibilizadas pelo Departamento de Assuntos Fundiários da Funai.

5.3. Marco temporal para definição da ocupação tradicional da terra pelos índios e Terras indígenas como terras devolutas do Estado

O Estado de Roraima invoca o enunciado da Súmula nº 650 do Supremo Tribunal Federal como fundamento de alegação improcedente, no sentido da existência de um “marco temporal” com base no qual se conforme a definição da ocupação tradicional da terra pelos índios.
O enunciado da Súmula 650 do STF decorre de pacífica jurisprudência do Tribunal, em recursos onde se discutiu o interesse da União e consequentemente a competência jurisdicional da Justiça Federal, em processos de usucapião em municípios do Estado de São Paulo.

A União sustentava que seu interesse nas demandas decorria do fato de que com a extinção dos aldeamentos indígenas, as terras reverteriam para o pleno domínio e posse da União.

Como a Justiça Federal de São Paulo e o Tribunal Regional Federal da 3ª Região rejeitaram tais pretensões, a União viabilizou o conhecimento pelo STF, de Recursos Extraordinários.

Adotando o julgamento do RE nº 219.983 como um de seus principais precedentes, o STF concluiu que a União não tinha interesse jurídico nas demandas, pelo fato de que as terras de aldeamentos indígenas extintos revertiam para os Estados Federados e não para a União, que somente a partir da vigência da Constituição de 1967 passou a ter o domínio efetivo destas terras.

A polêmica, porém em relação às terras de extintos aldeamentos indígenas surge com o disposto na alínea “h” do art. 1º do Decreto-Lei nº 9760, de 5 de setembro de 1946, ao relacionar “entre os bens imóveis da União”, “os terrenos dos extintos adeiamentos de índios e das colônias militares, que não tenham passado, legalmente, para o domínio dos Estados, Municípios ou particulares”.

No julgamento da Representação nº 1.100, Relator, o Ministro Néri da Silveira, demonstrou que:
“Dessa maneira, de referência aos aldeamentos indígenas extintos, pelo abandono de seus habitantes, antes de 1891, as terras eram do Estado, que, então, sobre elas podia dispor, conforme a tradição constitucional, desde a primeira Constituição Republicana, em legislação específica. Somente em 1946, o Decreto-Lei nº9.760 veio a incluir os terrenos de extintos aldeamentos de índios, entre os bens da União, desde que legalmente não tenham passado para o domínio dos Estados, Município ou particulares. Assim, até o Decreto-Lei nº 9.760/1946, os aldeamentos de índios que tenham sido abandonados, a partir da Constituição de 1891, continuaram terras devolutas dos Estados, salvo se localizados em áreas indispensáveis à defesa da fronteira, fortificações, construções militares ou em Territórios Federais, que o sistema constitucional considerava terras devolutas da União, conforme as normas acima referidas. De fato, até aí, nenhuma norma federal veio dispor diferentemente. Dessa maneira, porque terras devolutas estaduais, as ocupadas por indígenas, se abandonadas definitivamente, até o Decreto-Lei nº 9760/1946, sobre elas podiam os Estados dispor. A partir daí, os aldeamentos de índios, que vieram a se extinguir, já se tornaram terras pertencentes à União, em face do art. 1º, letra “h”, do Decreto-Lei 9760/1946, pela imediata incidência dessa norma legal”

No precedente que ensejou a adoção da Súmula 650, pelo STF, consagrou-se, porém o entendimento firmado pelo TRF da 3ª Região, no sentido de que:
“...
IV – O interesse manifestado pela União Federal sobre o imóvel usucapiendo, que se situaria no perímetro de aldeamento indígena extinto, não tem como ser acolhido, pois estriba-se no art. 1º, ‘h’, do D.L. 9.760/46, editado sob a égide da Carta de 1937, e que não foi recepcionado pela Constituição que lhe é superveniente, a de 1946, cujo art. 34 arrolava, de forma exaustiva, os bens pertencentes à União, não incluindo, dentre eles, os aldeamentos indígenas extintos....”

Mais recentemente, porém, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 255, relativo a dispositivo da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, o Relator, Min. Ilmar Galvão votou no sentido de que se considerem bens da União, os aldeamentos extintos antes da edição da Constituição de 1891 . Até o pedido de vista do Min. Cezar Peluso, com o entendimento adotado pelo Min. Ilmar Galvão já somavam os votos de cinco Ministros, formando maioria. Esta circunstância pode ensejar a conformação de efetivo “marco temporal”, a partir do qual as terras de extintos aldeamentos indígenas sejam considerados como terras devolutas dos Estados.

O fato, porém de repercussão para estes autos, consiste em que está provado no procedimento administrativo destinado à demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, que a ocupação da terra pelos índios é anterior ao início da vigência da Constituição de 1891 e jamais deixou se ocorrer.

Em seu Voto, condutor do entendimento pacificado pelo Supremo Tribunal Federal, o Ministro Marco Aurélio observa:
“A esta altura, cabe indagar: nas previsões das Cartas pretéritas e na da atual, no que alude a ‘...terras que tradicionalmente ocupam...’, é dado concluir estarem albergadas situações de há muito ultrapassadas, ou seja, as terras que foram, em tempos idos, ocupadas por indígenas? A resposta é, desenganadamente, negativa, considerado não só o princípio da razoabilidade, pressupondo-se o que normalmente ocorre, como também a própria letra dos preceitos constitucionais envolvidos. Os da sCartas anteriores, que versaram sobre a situação das terras dos silvícolas, diziam da ocupação, ou seja, de um estado atual em que revelada a própria posse das terras pelos indígenas. O legislador de 1988 foi pedagógico. Após mencionar, na cabeça do artigo 231, a ocupação, utilizando-se da expressão ‘...as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens’, veio, no § 1º desse mesmo artigo, a definir o que se entende como terras tradicionalmente ocupadas”.

Portanto, o enunciado da Súmula 650 não se aplica à hipótese dos autos. Conforme foi observado pelo Min. Marco Aurélio na conclusão de seu voto, ao considerar impertinente a invocação feita no parecer do Ministério Público Federal ao RE nº 183.188, “nele se fez presente controvérsia a envolver terras demarcadas e habitadas por indígenas”, como se dá na hipótese destes autos.

E na eventual ocorrência de interrupção da posse da terra por comunidades indígenas em razão de atos de violência, como as invasões de suas terras noticiadas e detalhadas no referido procedimento administrativo, tais atos agressivos não acarretam a conformação de aldeamento indígena extinto.

Esta condição, somente pode ser considerada juridicamente válida, se o abandono tiver sido voluntário e sem constrangimento de qualquer natureza.

Neste sentido, convém lembrar a observação feita pelo Min. Néri da Silveira, em seu voto na ACO 323/MG:
“...e se houve remoção, como ficou demonstrado nos autos, de forma violenta, isso não as descaracterizou como terras de índios”

Além disso, no que se refere especificamente à Terra Indígena Raposa Serra do Sol, relevante notar que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Agravo Regimental na Petição nº 3755/RR, por intermédio do qual o Estado de Roraima pleiteava que a Ação Civil Pública em questão não fosse extinta, por perda de objeto, tendo em vista que o réu havia recebido o pagamento de indenização de benfeitorias e saído da terra indígena, sob a alegação de que a demanda deveria prosseguir porque a área objeto do litígio era devoluta, o Tribunal, por unanimidade acompanhou o voto do Relator, Ministro Carlos Brito, fundamentando sua decisão neste particular ponto nodal do recurso, da seguinte forma sintetizada no Acórdão de seu julgamento:
“2. Ainda que se entenda aplicável tal dispositivo apenas aos casos de assistência simples, o fato é que a perícia constante dos autos atesta que a área em litígio não está compreendida ‘nas terras devolutas do Estado de Roraima’”

5.4. Relatório da Comissão de Peritos na Ação Popular que tramitou no Justiça Federal de Roraima e no STF

O Autor e o Estado de Roraima invocam os elementos de análise apresentados no Relatório da Comissão de Peritos nomeada na Ação Popular nº 1999.4200.000014-7, que tramitou contra a demarcação da TIRSS, na Justiça Federal de RR.

Ocorre que este documento não se presta como elemento de prova idôneo, ainda mais considerando os termos da manifestação do antropólogo Prof. Dr. Erwin Heinrick Frank, membro da mesma Comissão Interdisciplinar, juntado aos autos pelo próprio Estado de Roraima, às fls. 7711 a 7847.

No mesmo sentido, os elementos apresentados no referido Relatório da Comissão de Peritos são igualmente contestados, na linha dos argumentos bem desenvolvidos pelo Prof. Dr Erwin Frank, pelo “Parecer dos Assistentes Técnicos do Ministério Público Federal relativo à Perícia Interdisciplinar determinada pelo Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz Federal Substituto da 1ª Vara da Seção Judiciária de Roraima”, juntado aos autos pela Funai.

Outra prova relevante e que contesta integralmente os elementos apresentados pela referida Comissão de Peritos consiste no laudo pericial elaborado pelo Prof. Dr Paulo Santilli, no Processo nº 91.13363-9, igualmente juntado aos autos pela Funai, às fls. 1660.

Estes elementos de prova desfazem por completo as improcedentes afirmações e conclusões adotadas no mencionado Relatório e nos Relatórios das Comissões Externas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, como contestam também os termos das análises e conclusões de Comissão de Peritos nomeada pelo Estado de Roraima, juntado aos autos às fls. 6312, bem como do parecer do assistente técnico do Estado de Roraima, às fls. 6612 destes autos.

5.5. Desconstituição de Município e de títulos imobiliários por Decreto Presidencial e a questão dos centros populacionais

No que se refere à alegada impossibilidade de um Decreto do Presidente da República desconstituir Municípios e títulos imobiliários, importa observar que os atos que ensejaram a criação de Municípios integralmente incidentes em terras indígenas, como ocorre com o Município de Uiramutã, na TIRSS, bem como com os títulos imobiliários nela incidentes, sua desconstituição decorre de expressa disposição constitucional inscrita no § 6º do art. 231 da Constituição, por serem nulos de pleno direito.

Com efeito, o Decreto do Presidente da República que homologou a demarcação da TIRSS não desconstituiu coisa alguma. Os atos que visam e implicam na ocupação, a posse e o domínio de terras tradicionalmente ocupadas por índios é que são nulos, independemente de sua demarcação administrativa.

Da mesma forma, a existência de vilas, ou centros populacionais ocupados por não-índios, em terras tradicionalmente ocupadas por índios é impossível, por força do disposto no já citado § 6º do art. 231 da CF, tendo em vista que restringem e constrangem o direito constitucional dos índios à posse permanente e ao usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes no solo, nos rios e nos lagos das terras que tradicionalmente ocupam.

A propósito, convém esclarecer que as Vilas Socó, Mutum e Água Fria não mais existem. Seus ocupantes não-índios foram ou poderão vir a ser, caso aceitem, reassentados pelo INCRA em outras terras, em condições dignas para o desenvolvimento de suas atividades agrícolas e pecuárias.

5.6. Superposição de terras indígenas e Parque Nacional

Quanto à alegada impossibilidade de superposição de terras indígenas e Parque Nacional, como no caso do Parque do Monte Roraima, importa observar que não havendo restrições à posse permanente e ao usufruto exclusivo das riquezas naturais a que os índios têm direito constitucional, nada impede que o poder público afete parte de uma terra indígena como uma unidade de conservação.

No caso específico do Parque Nacional do Monte Roraima, a gestão que será feita da região deverá proporcionar a compatibilização da necessidade pública na preservação ambiental, com o respeito aos direitos constitucionais dos povos indígenas.

5.7. Quanto ao comprometimento do princípio federativo

O Autor alega que a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol acarretaria prejuízo ao Estado de Roraima, na medida em que a União estaria suprimindo desta unidade da federação terras que seriam suas. Dessa forma, por não estar assegurada a participação da unidade da federação no procedimento administrativo acarretam-se reflexos na economia do Estado, em razão de impactos “na produção agropecuária do Estado de Roraima”.

O Autor, além de suscitar fundamento eminentemente jurídico constitucional, invoca aspectos que carecem de comprovação nos autos, que o Autor, reitere-se não pretendeu implementar, na medida em que sequer se manifestou sobre a produção de provas, não obstante regularmente intimado por despacho do Relator.

Com efeito, o Autor não comprovou no processo que a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol acarretaria reflexos na economia do Estado, em razão de alegados impactos na produção agropecuária estadual.

Por outro lado, convém esclarecer que os alegados impactos na produção agropecuária do Estado ocorrerão com o aumento da atividade produtiva das 194 comunidades indígenas Macuxi, Wapixana, Taurepang, Ingarikó e Patamona, que atualmente detém 35.000 (trinta e cinco) mil cabeças de gado, produzem cerca de 50 (cinqüenta) toneladas de milho, 10 (dez) toneladas de arroz e 10 (dez) toneladas de feijão, além de intensa produção de farinha de mandioca, goma e beiju.

As comunidades indígenas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, além de viabilizarem o sustento de uma população constituída por cerca de 20.000 (vinte mil) pessoas, abastecem as cidades de Roraima, em especial a capital do Estado, Boa Vista.

Por outro lado, é necessário esclarecer que todos os ex-fazendeiros que invadiam a terra indígena e exploravam atividades pecuárias, desde 1999 não mais se encontram na terra indígena.

Os atuais não-índios, que ocupam a terra indígena Raposa Serra do Sol e que exploram a atividade de rizicultura, além de serem beneficiários de imoral lei estadual que os isenta do pagamento de tributos estaduais de 1998 a 2018, vendem toda sua produção para outras unidades da federação e para outros países, não proporcionando quaisquer benefícios para a população do Estado e muito menos para a economia estadual.

Além disso, estes empresários passaram a explorar estas atividades após a demarcação da terra indígena em questão, como ocorreu com Paulo César Quartiero, conforme consignado pelo Min. Carlos Brito, no seguinte trecho de despacho nos autos da Petição nº 3744, que consiste em ação possessória proposta por ele em agosto de 2004:
“...É bom relembrar que o requerente possui dois imóveis na região: a Fazenda Depósito e a Fazenda Providência (fls. 512/513). Entretanto, apenas a última é objeto deste feito, segundo a nicial.
8. Acontece que a Funai, pela respectiva comissão de sindicância, classificou como ‘derivadas de má-fé’ as benfeitorias implantadas nessa última fazenda. Portanto, sem direito a qualquer indenização. É o que consta da Resolução nº 195/2007(fls. 553).
9. É claro que tal classificação – ao lado de outras – não é definitiva, pois está sob o crivo do Judiciário. Todavia, para efeito de liminar, há de se leva-la em consideração se comparada com o depoimento do próprio autor, prestado na Justiça Federal de Roraima, no dia 14.09.2004.
10. Naquela data – prossigo o raciocínio -, o depoente afirmou que ‘é possuidor da Fazenda PROVIDÊNCIA há três anos’ (fls. 62). Portanto, desde o ano de 2001. O que significa três anos depois da demarcação levada a efeito pela portaria ora atacada, nº 820/98.
11. Em outras palavras, quando o postulante se apossou da Fazenda Providência ela já integrava a Reserva Indígena Raposa Serra do Sol.”

A propósito das invasões dos arrozeiros na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, considere-se ainda o texto “O Avanço de Monoculturas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol”, de autoria de Vicenzo Lauriola, Arnaldo Carneiro Filho e Jorge da Costa, Pesquisadores do Instituto de Pesquisas da Amazônia – INPA e Gercimar Morais Malheiro, de Técnico Agro-Ambiental Indígena, do povo Macuxi, Coordenador do Setor de Projetos do Conselho Indígena de Roraima – CIR, juntado aos autos pela Funai.

Quanto à alegação do Autor em relação à suposta violação ao princípio federativo, em razão da União se apropriar de terras do Estado, sem que a unidade da federação possa participar do procedimento administrativo, impõe-se situar a questão nos seus precisos e exatos termos constitucionais.

As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são bens da União, por expressa previsão contida no inciso XI do art. 20 da Constituição Federal.

Conseqüentemente, sempre que se constate a ocupação tradicional de índios em terras localizadas em qualquer parte do território nacional, estas serão bens da União.

Dessa forma, não há que se cogitar de que ao se demarcar uma terra indígena, a União estaria subtraindo ou privando alguma unidade da federação de terras que seriam suas. Não! Estas terras antes e independente de demarcação já eram, como são bens da União. A demarcação visa apenas e tão somente explicitar os limites da ocupação tradicional da terra pelos índios, para efeito de seu registro cartorário e anotações administrativas quanto ao inventário do patrimônio da União.

Quanto ao envolvimento do Estado ou de qualquer unidade da federação na demarcação das terras indígenas, há que se considerar as possibilidades previstas tanto no Dec. 22/91, no § 5º do seu art. 2º, como nos §§ 5º e 8º do art. 2º do Decreto nº 1775/96. E o Estado de Roraima, como a Prefeitura de Normandia exerceram estes direitos de participação, apresentando contestações ao Relatório de Identificação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, por intermédio, respectivamente do Proc./Funai/Bsb/nº 1163/96 e do Proc./Funai/Bsb/nº 1439/96.

Não procede, portanto a alegação de que a União atenta contra o princípio federativo, ao demarcar as terras indígenas, fundamentalmente porque as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são bens da União.

Somente após a União proceder à reunião dos elementos de prova da ocupação tradicional pelos índios, indicando os limites da terra a ser demarcada é que se pode facultar a quaisquer interessados a manifestação sobre os elementos de prova caracterizadores da ocupação tradicional da terra pelos índios.

E no caso em apreciação foi exatamente o que aconteceu, sem prejuízo para quem quer que seja, tanto que nove (9) processos administrativos questionando a identificação da área foram apresentados por diversos interessados, entre particulares e as duas unidades da federação acima mencionadas.

5.8.Quanto à ofensa ao princípio da razoabilidade

A homologação da demarcação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol em área contínua era, como é a única forma de assegurar a integridade das terras tradicionalmente ocupadas pelas atuais 194 comunidades indígenas, de forma a cumprir o disposto no § 1º do art. 231 da Constituição Federal.

Demarcar a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, como já se fez em relação às terras indígenas Yanomami e no Rio Negro, quando vigoraram os Decretos 94.945 e 94.946, ambos de 1986, representaria, como representaram estas nefastas experiências administrativas consumar situações que acarretam comprometimentos à integridade étnica e cultural dos povos indígenas.

Os Povos e as comunidades indígenas mantém intensas e ricas relações econômicas e culturais entre si e entre os diversos povos, como ocorre na Terra Indígena Raposa Serra do Sol e sempre de forma respeitosa e adequada aos ecossistemas em que as terras que tradicionalmente ocupam se encontram.

Vale dizer, como o Exmo Ministro Victor Nunes Leal já teve a oportunidade de pontificar em julgamento no Supremo Tribunal Federal, que as terras indígenas são, na realidade “habitats” de povos ou nações étnica e culturalmente distintas e diferenciadas entre si.

Portanto, ao contrário do que foi alegado pelo Autor, também sem qualquer prova idônea nos autos, que a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, nos termos efetivados pelo ato administrativo impugnado está perfeitamente adequado ao princípio constitucional da proporcionalidade ou da razoabilidade.

5.9. Quanto ao isolamento dos índios na TIRSS

A afirmação segundo a qual a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol beneficia índios “integrados”, por manterem atividades produtivas e relações de comércio com não-índios, além de equivocada é completamente falsa.

Os índios, em especial a partir da vigência do atual texto constitucional não são considerados ou classificados em razão de seu grau de integração à comunhão nacional.

Os constituintes originários eliminaram a perspectiva incorporativista prevista no ordenamento constitucional anterior, de 1967/1969 e com isso, não foram recepcionadas as normas infra-constitucionais, como as previstas na Lei nº 6.001, de 1973, que dispunham sobre a classificação dos índios em razão de seu grau de integração.

Como já afirmado anteriormente, vigora no país o princípio do respeito à diversidade étnica e cultural, de forma que não procede, por não existir mais quaisquer diferenças entre os índios, em razão de seu grau de integração.

Agora não são os índios que devem ser incorporados e integrados à “comunhão naciona/”, são todos os cidadãos brasileiros e as pessoas jurídicas de direito público e privado que devem RESPEITAR os valores culturais, os bens materiais e imateriais dos Povos Indígenas, cujos membros também são CIDADÃOS BRASILEIROS, sem qualquer limitação em suas capacidades civis.

No caso específico da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, importa assinalar que todas as comunidades indígenas produzem e se relacionam comercial e institucionalmente com a sociedade roraimense e com os poderes públicos municipais, estadual e federal, para a satisfação de todas as necessidades básicas na área educacional, no atendimento à saúde e no desenvolvimento de atividades produtivas, tudo de forma harmoniosa com o respeito aos seus valores culturais e suas formas próprias de organização social, não estando, como jamais estiveram “isolados”, ou em processo de “isolamento”.

Ao contrário, tem avançado na apropriação de novos conhecimentos técnicos e científicos, processando-os de forma adequada às suas necessidades sociais e culturais.

5.10. Quanto ao êxodo rural dos indígenas não conformados com demarcação da TIRSS, para a periferia de Boa Vista e a exacerbação dos conflitos intergrupos, já que a demarcação em área contínua abrange índios de etnias diferenciadas num mesmo solo

Estas previsões catastróficas e perniciosas, não obstante a tentativa de vários interesses externos aos povos indígenas não ocorreram, como não tem ocorrido.

As comunidades indígenas dos cinco (5) povos que ocupam a Terra Indígena Raposa Serra do Sol e suas diversas organizações , como expressões do processo próprio de articulação de seus interesses têm avançado e superado diferenças de compreensão sobre o processo de demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol e sobre as novas e alvissareiras possibilidades que a situação atual lhes proporciona.

Todos têm se beneficiado da possibilidade de melhor acomodação e crescimento de suas comunidades, com apoio de órgãos do poder público federal e até mesmo do Estado de Roraima, sem qualquer conflito ou divergências.

6. Subsídio sobre a organização dos povos e das comunidades indígenas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, com suas atividades produtivas, seu crescimento populacional e seus esforços no atendimento à saúde e na educação escolar

Neste contexto, é animador e um exemplo de cidadania para o país, constatar a existência atual na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, pujante afirmação da cidadania pelos povos e comunidades indígenas pacificamente organizadas, como se pode aferir pelas informações disponibilizadas no subsídio em meio magnético (power point), que segue em anexo.

7. Conclusão

Do exposto e pelo que consta nos autos a Comunidade Indígena Socó apresenta este MEMORIAL, acompanhado:
1. dos Pareceres do Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Doutor Dalmo de Abreu Dallari e do Professor Titular aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Doutor José Afonso da Silva que corroboram e acrescentam aos fundamentos expostos pela Comunidade Indígena Socó, pelas demais Comunidades Indígenas que igualmente requereram seu ingresso nos autos, pela Funai e pela União, relevantes e expressivos aportes doutrinários de suas abalizadas e experientes opiniões;

2. do CD-ROM, com arquivo em power point, com apresentação de informações estruturadas e elaboradas pelo Conselho Indígena de Roraima, pessoa jurídica de direito privado, à qual a Requerente é associada.

Confia e espera, por fim, que a presente ação popular seja julgada improcedente, seja porque o Autor não comprovou qualquer de suas alegações, seja porque as questões jurídicas suscitadas não procedem, diante do que estabelecem a Constituição Federal e a legislação infra-constitucional que regulamenta os direitos indígenas no Brasil.

Brasília, 21 de agosto de 2008
Paulo Machado Guimarães
OAB-DF nº 5.358
Cláudio Luiz dos Santos Beirão
OAB-AL nº 3.347