Venho comentar carta assinada por José Theodoro Menck, que contesta declarações da advogada Ana Valéria Ribeiro, publicadas na edição de 13.04.08. Em sua carta, o historiador alega equívoco da advogada em afirmar que "Roraima é brasileira por causa dos índios". Evocando a documentação reunida nas memórias brasileiras, organizadas por Joaquim Nabuco, para a arbitragem de fronteiras com a então Guiana Inglesa em 1904, o historiador afirma que Joaquim Nabuco, em nome do Brasil, alegou o domínio territorial. O historiador conclui que, se Roraima é brasileira, tal se deve "a centenas de desbravadores lusitanos que adentraram aqueles inóspitos rios ao longo dos séculos 17, 18 e 19".
Esclareçamos, à partida, que os "desbravadores lusitanos" – em português claro, traficantes de escravos índios – só chegam ao alto rio Negro e rio Branco no início do século XVIII e, de forma oficial, depois de 1730. A colonização civil de Roraima só se expande e consolida, de fato, a partir de 1870, com a chegada de migrantes nordestinos expulsos pela seca. Até então, os poucos "colonos" na área eram, em sua maioria, militares ou ex-militares que, permanecendo após serviço no forte São Joaquim, estabeleceram-se em terras das fazendas nacionais, que abrangiam todas as terras do nordeste de Roraima. É bom lembrar que a grilagem destas terras da União foi oficializada no início do período republicano, com a aberta conivência do governo do estado do Amazonas.
O ponto fundamental, entretanto, diz respeito às condições e estratégias de domínio territorial português para a Amazônia colonial. Por todo o vale amazônico, o domínio territorial português se fez valer por meio de aldeamentos indígenas; em especial, na colonização tardia do alto rio Negro e do rio Branco, tais aldeamentos foram estabelecidos já sob a política pombalina, que contava com a população indígena como base de uma sociedade colonial. Joaquim Nabuco argumentou, com muita agudeza, que, antes mesmo da consolidação pombalina, a Coroa portuguesa via na população indígena o nexo estratégico para seu domínio efetivo da Amazônia; para tanto, citava Parecer do Conselho Ultramarino de 20.12.1695, que afirmava que "os Gentios erão as Muralhas dos Certoens", expressão que Nabuco, muito acertadamente, considerou a suma da legislação indigenista portuguesa durante três séculos. Uma análise minuciosa de tal processo histórico encontra-se em meu livro, As Muralhas dos Sertões (1991, Paz & Terra/ANPOCS).
Não pretendo cansar o leitor com uma querela historiográfica, tanto mais porque ela esconde apenas o esforço patético da elite roraimense e de seus intelectuais orgânicos em comprovar sua antigüidade. No falso embate do "quem chegou primeiro", ordena o bom senso convir que, certamente, não foram os rizicultores de hoje. Se o leitor duvida, pergunte-se porque não constam eles, nominalmente, do levantamento fundiário realizado pela FUNAI em 1992, passo necessário para a delimitação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol? E porque não se manifestaram eles em 1996, quando o Executivo, em cumprimento ao Decreto 1775/96, expôs a demarcação da terra indígena à contestação pública? A resposta é simples: não estavam lá, esses que hoje afrontam a Constituição e, portanto, o Estado de Direito tão duramente conquistado por todos nós.
Nádia Farage
Depto de Antropologia, IFCH – UNICAMP
Agência Estado, 22/04/2008.