Em entrevista, Ana Paula Caldeira Souto Maior, advogada do Instituto Socioambiental (ISA), falou não só sobre as consequências do julgamento na terra indígena Raposa Serra do Sol, como também analisou quais podem ser os impactos da decisão sobre outros processos de demarcação de Tis, além de abordar as necessidades e direitos dos povos indígenas.
Qual a sua opinião sobre o julgamento do STF realizado na semana passada?
Foi um resultado bem positivo para a Raposa Serra do Sol, porque reconheceu que a demarcação foi feita com base em um procedimento administrativo legítimo, que não houve nenhum vício que maculasse esse processo. Reconheceu que é possível demarcar Terra indígena em faixa de fronteira, mostrou que a forma de demarcar TI, realizada pela Funai [Fundação Nacional do Índio], implica na demarcação ou no reconhecimento integral das terras ou do direito dos índios à terra e não um reconhecimento parcial como era postulado pelo Estado de Roraima. Todas essas questões foram discutidas no bojo do processo.
Outra questão suscitada foi com relação ao Estado que tenha uma parte significativa de seu território ocupado por terras indígenas - e essas terras pertencem à União - se essas terras não comprometeriam a existência do Estado, causando um conflito federativo. E foi estabelecido que não, que mesmo tendo parte significativa de seu território ocupado por populações indígenas - e neste caso o Estado de Roraima é um Estado excepcional, porque é o Estado que tem a maior parte de território físico ocupado por populações indígenas, cerca de 45% - a ocupação dos índios em seu território não compromete a existência do Estado, nem tampouco o seu desenvolvimento econômico.
Na verdade as populações indígenas têm que participar do desenvolvimento do Estado, que deve ser pensado a partir da sua realidade, no caso a existência dessas populações. Então esses fatos são muito importantes e eles valem não só para a demarcação da Raposa Serra do Sol, mas para todas as terras indígenas que foram demarcadas de acordo com o artigo 231, da Constituição Federal.
No julgamento foram colocadas 19 condicionantes. Qual é a sua opinião sobre elas?
Elas trazem inquietações. Algumas delas repetem o texto constitucional - e quanto a isso não há problema algum - mas aquelas que representam inovações, trazem algumas preocupações.
Uma delas é com relação à construção de obras, que em terras indígenas que forem consideradas de cunho estratégico pelas Forças Armadas não precisarão de consulta às comunidades indígenas, nem à Funai. Entendo que isso fere o direito das comunidades indígenas de serem ouvidas, de criar um diálogo com o poder público para realizar qualquer obra dentro do seu território. A convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho] sobre populações indígenas e tribais é bem clara ao dizer que os povos indígenas devem ser consultados sob quaisquer medidas administrativas ou legislativas que vão afetá-los. A gente entende que essa é uma questão que traz preocupações.
Outra é a vedação da ampliação de terras que já foram demarcadas. As terras indígenas que foram demarcadas antes da Constituição de 1988 foram demarcadas dentro da perspectiva de que os índios iriam ser assimilados à sociedade nacional, que eles deixariam de viver de acordo dos seus usos, costumes e tradição. A partir de 1988, a Constituição reconhece a forma própria de existir dos povos indígenas e eles têm o direito de manter a sua própria cultura, falar a sua própria língua, ter suas concepções de saúde, educação. E a demarcação das terras indígenas é feita com o que está descrito na Constituição do que são as terras indígenas.
São estabelecidos, então, quatro critérios: que as terras indígenas são os locais onde os índios moram e habitam, são as áreas que eles precisam para manter suas atividades produtivas, são as áreas onde haja condições físicas - rios, matas - que permitam eles se reproduzirem, como também áreas onde eles precisam ter para a reprodução física e cultural. Física no sentido de que as populações vão aumentar e eles precisam ter uma terra suficiente para isso e reprodução cultural são áreas onde têm um significado mítico, religioso, para cada população específica.
As terras que foram demarcadas a partir de 1988, como é a terra indígena Raposa Serra do Sol, como é a terra indígena Yanomami e outras, levaram em consideração esses aspectos constitucionais. As terras que foram demarcadas antes de 1988 não levaram em consideração esses aspectos, pelo contrário, levaram em consideração que os índios estavam ali no local e que eles não precisariam de nenhum outro espaço porque o seu futuro era ser assimilados, era passar a vivem sem a sua cultura.
Então vários pedidos, se não me engano 90 pedidos, estão encaminhados à Funai solicitando a ampliação dessas áreas indígenas. Essas populações que moram nessas áreas serão diretamente afetadas por essa orientação que foi estabelecida pelo STF. Esses 90 pedidos que estão em processos podem ser prejudicados.
A condicionante que diz respeito à participação mais efetiva dos entes federativos nos processos de demarcação ajudará no processo de demarcação?
Podem ter casos em que a participação efetiva dos municípios e Estados pode representar um retardo na demarcação. Agora, é difícil prever, pode ser que em alguns casos, conhecendo a realidade dos índios, os Estados e municípios se mobilizem em reconhecimento daquele direto. Normalmente os Estados e municípios estão mais movidos pelas suas questões econômicas locais e existe uma estabilidade muito menor para o reconhecimento do direito dos índios que habitam na área física.
O julgamento da Raposa Serra do Sol servirá de base para a demarcação de outras Tis. De que forma as terras indígenas que estão em processo de demarcação serão beneficiadas ou impactadas pelo julgamento?
As orientações que foram colocadas, com exceção desta que inclui a participação efetiva dos Estados e municípios no processo de demarcação da TI, as demais são voltadas à utilização dos recursos naturais que existem dentro das terras indígenas. A questão da vedação de ampliação é a que é mais danosa. Como isso vai influenciar nas próximas demarcações, tem ainda que se ver.
Durante a fundamentação dos votos dos ministros, eles discutiram sobre o fato indígena, que seria uma substituição ao direito originário indígena à terra. Por exemplo, o ministro Lewandovsky menciona que a Constituição de 1988 seria um marco para defender os direitos dos indígenas à terra. Então se os indígenas estivessem na sua terra na data da promulgação da constituição, eles têm direito à terra. Mas se eles não estivessem lá, esse direito não seria reconhecido.
Mas o ministro Ayres Britto, por exemplo, menciona em seu texto que se os índios não estavam em suas terras por vontade alheia, se eles foram expulsos, eles teriam ressalvado o direito a elas. No voto do ministro Ayres Britto, ele deixa a questão dos índios que não estavam em 1988 ocupando a terra indígena, ele fala que eles teriam esse direito.
A apresentação do Ayres Britto teria uma relevância maior?
Essas considerações estão nas fundamentações do voto. Um voto tem um relatório, tem uma fundamentação e tem a decisão. A decisão é a parte dispositiva e nela não tem nenhuma menção com relação a isso. Caberá à interpretação que será dada futuramente.
A maneira como o Estado vem tratando as demarcações é correta?
Acho que existe uma mudança na política indigenista, a partir de 1988 e antes de 1988. Depois de 1988, a política é essa de valorizar, de garantir os direitos indígenas. Houve um grande avanço no processo de demarcação
Falta um maior respeito ou uma maior implementação ao direito dos índios de decidirem com relação aos seus planos de desenvolvimento dentro das próprias terras indígenas e de participarem na definição de políticas para o seu território, de políticas para as regiões em que eles vivem. Isso ainda precisa ser mais bem trabalhado por parte do Estado.
Estamos vivendo agora uma crise na questão da saúde: A área do javari, os ianomâmis, que estão com problemas na prestação de saúde. Há outros aspectos também, não só o da terra, mas outros aspectos que precisam ser trabalhados de uma melhor forma.
Há ainda muitas terras a serem demarcadas? Qual outro caso que merece destaque?
Há 406 terras indígenas reconhecidas oficialmente, tem 198 reivindicações para reconhecimento oficial, que podem estar em algum processo, alguma fase do reconhecimento e tem mais 90 pedidos de ampliação.
Um caso dos mais graves a ser pensado é a questão dos guaranis, do Mato Grosso do Sul, que é a maior população indígena do país e que não tem base física, não tem território, não tem terra suficientemente reconhecida e que possa garantir a sobrevivência física e cultural deles. Essa falta de uma base territorial ocasiona uma série de problemas que são nacionalmente conhecidos, desde desnutrição de crianças a problemas de alcoolismo, problemas de desestruturação social, suicídio entre jovens e idosos.
Existe no Congresso um projeto de Lei - de autoria do deputado Aldo Rebelo - que submete as demarcações de terras indígenas à aprovação do Congresso Nacional. Qual a sua opinião sobre isso?
Primeiro, esse é mais um projeto de lei sobre isso. Existem outros projetos de lei que já foram apresentados e que tentam a mesma coisa: fazer com que o Congresso Nacional participe do processo de reconhecimento da terra indígena. Nenhum desses projetos tem alcançado sucesso porque a Constituição é muito clara ao estabelecer que a competência do Congresso, no artigo 49, relativo aos direitos indígenas, se dá com relação a autorizar o aproveitamento dos recursos hídricos e minerais dentro de terras indígenas.
Então cabe ao Congresso Nacional autorizar o aproveitamento de recursos hídricos e minerais dentro de terras indígenas, ouvidas as comunidades a serem afetadas. Essa é a competência, conferida pela Constituição, ao Congresso Nacional. Inclusive no voto do ministro Ayres Britto, tem todo um item que ele destina a isso: que é de competência do executivo e não do legislativo conceber a demarcação das terras indígenas.
Outra questão é que cabe ao Congresso fazer o controle dos atos normativos do Executivo. O ato de demarcação de uma terra indígena é um ato administrativo. Então, quando o Executivo regulamenta o processo de demarcação de uma terra indígena, isso é considerado pelo STF como um ato administrativo do poder Executivo e esse ato não estaria passível de ser controlado pelo Congresso Nacional, que só teria competência para controlar os atos considerados normativos.
Tanto esse PL que visa que o Congresso Nacional participe na demarcação de terras indígenas, quanto vários projetos de decretos legislativos que visam suspender a demarcação de terras indígenas e suspender o decreto do Executivo que regulamenta a demarcação de Tis não têm como prosperar. Eles vão de encontro à Constituição. Neste sentido, existem propostas de emendas à Constituição [PECs] buscando mudar a competência do Congresso Nacional, para que essas Pls tenham êxito. Nenhuma das PECs apresentadas, muitas delas há bastante tempo, foram aprovadas até agora. Justamente pelo entendimento que a demarcação das Terras Indígenas é de competência do Executivo e não do Legislativo.
O que é necessário fazer para que os índios tenham uma qualidade de vida e seus direitos respeitados?
Se você pegar Raposa Serra do Sol como exemplo, é uma terra indígena onde todos os professores são professores indígenas. A Universidade de Roraima tem um curso que é voltado para a formação de professores indígenas. Eles têm conseguido ter uma qualidade de vida boa. Agora isso com 30 anos de organização política, de luta. Mas mostra que é possível haver um respeito aos direito dos índios. Tem que ter participação dos índios.