Pelas áreas contínuas

Entrevistado: 
Carlos Ayres Britto, ministro do STF
Autor: 
Luiz Antonio Cintra
Data de publicação: 
17/12/2008
Fonte: 
Carta Capital

ENTREVISTA: Para o ministro Carlos Ayres Britto, o STF fez história no caso da Raposa

Qual a avaliação que o senhor faz do resultado do julgamento?

O núcleo da decisão foi o de que o procedimento demarcatório da Raposa-Serra do Sol foi todo ele jurídico, obedeceu rigorosamente aos parâmetros legais e constitucionais. Conforme, aliás, o meu voto proferido em agosto. Agora, essa decisão tem dois desdobramentos muito importantes. Em primeiro lugar, o de que o formato é mesmo o contínuo, e não o fragmentado, tipo "queijo suíço", em que os índios ficam com os buracos e os não-índios ficam com o queijo propriamente dito. O segundo desdobramento é que as terras constitutivas da reserva são totalmente indígenas, ali não há terras devolutas, que seriam do estado de Roraima, nem terras particulares, que seriam dos fazendeiros. Na verdade, o que decidimos foi isso. O ministro Carlos Alberto Direito propôs, porém, e foram aprovadas, condições para operacionalizar a decisão. Das dezoito condições propostas, umas quinze eram fundamentos do meu voto. Ele trouxe umas três novas, como a proibição de ampliar a área demarcada, que eu só aceito no caso da Raposa-Serra do Sol, mas não em toda demarcação, aí não vou concordar. Fala-se muito em demarcações anteriores em desconformidade com o modelo constitucional, em "ilhas", que, como sabemos, termina-se matando os índios de fome.

Quais condições serão de fato implementadas?

Elas terão de ser discutidas. O ministro Direito adotou uma técnica de decisão nova, ao transportar fundamentos para a parte dispositiva da decisão, aquela que considerou todo processo de demarcação legal, em área contínua, onde as terras são integralmente dos índios. Ele levou em conta a complexidade e a delicadeza da questão, com possibilidade inclusive de confronto físico. Agora, as dezoito condições comportam discussão, sobretudo a que proíbe revisão da área demarcada.

O senhor ficou contrariado com a decisão do presidente do Tribunal de acatar o segundo pedido de vista do ministro Marco Aurélio Mello?

Não posso deixar de dizer que estranhei o pedido de vista do ministro Marco Aurélio, eu não esperava. É uma questão já debatida, mas é um direito dele. Também não esperava que ele, além de pedir vista na ação popular, pedisse vista também na ação cautelar. Quando propus que, na ação cautelar, cassássemos a liminar (que permite a permanência dos nãoíndios na área indígena), quando se formou a maioria, fui surpreendido pelo segundo pedido de vista. Mas a minha estranheza não deslegitima o pedido de vista do ministro, que se aborreceu, dizendo que estava aprendendo comigo depois de 30 anos de exercício profissional. Ora, aprendemos todos os dias, uns com os outros, não tem essa de 30 anos. Se tivermos a mente e o sentimento abertos, aprendemos todos os dias e isso não é desdouro para ninguém.

Há quem considere as condições sugeridas pelo ministro Direito de competência do Congresso Nacional. O senhor concorda?

Concordei com o formato decisório proposto pelo ministro Direito, ao cercar de condições o núcleo da decisão. Quanto a cada uma dessas decisões, é outra história, e já explicitei o meu dissenso. Quero inclusive estudar melhor algumas condições que ficam em uma linha muito tênue entre a legislação e a jurisdição, então precisamos retomar essa discussão. A referência ao Instituto Chico Mendes é uma delas, outra sobre tributos. Não que eu seja, a priori, contra, mas precisamos discutir. A priori, sou contra a cláusula 17, a que impede as revisões. Se na sessão de julgamento assentamos que o modelo é o contínuo, como vamos proibir a revisão de processos demarcatórios no modelo descontínuo? Mas o fundamental é que não podemos confundir o núcleo da decisão com as condições de operacionalização. Também é preciso deixar claro que o voto do ministro Direito foi muito estudado, muito cuidadoso, próprio de um erudito.

O ministro Cezar Peluso disse que o Exército tem a função de levar adiante o processo de "aculturação dos indígenas". O que o senhor acha?

Para mim, o processo de aculturação é lento e não significa a assimilação de uma cultura pela outra, com a sobrevivência de apenas uma delas, no caso a dita civilizada, como se a aculturação fosse um dever do civilizado para absorver e mesmo aniquilar a cultura tida como primitiva. Aculturação é convivência reciprocamente benéfica, para que uma adense a outra. Em uma linguagem mais simples, os índios também têm o direito de nos catequizar um pouco, basta que sejamos inteligentes para aprender com eles. E a Constituição consagra um modelo de cultura que não é o do aniquilamento de nenhuma das duas. Quando se fala em reconhecer o modo de viver, de cultivar a terra, a Constituição fala em "segundo os seus usos, costumes e tradições", os dos indígenas, não os dos não-índios, dos brancos. De modo contemporâneo, não preconceituoso, a Constituição chancelou Paulo Freire, que dizia não haver saberes maiores ou menores, mas diferentes. Ou como diz o poeta Manoel de Barros, o saber dos índios tem força de fonte, é carregado de uma ancestralidade machucada por nós, os seus opressores, então temos de aprender com eles. E a Constituição consubstancia o mais sonoro "não" ao etnocídio, ou seja, à morte do espírito, à destruição dos elementos de uma cultura.

Qual o impacto do caso para o debate público dos direitos indígenas?

Espero que essa decisão tenha a força de suscitar na sociedade brasileira um repensar da causa indígena, para que a sociedade perceba que tem muito a aprender com os índios. E que se lembre de Einstein, quando ele disse que é mais fácil desintegrar um átomo do que desfazer um preconceito. Então, o momento é oportuníssimo, a discussão toda pode desembocar em um passo adiante na direção de uma sociedade verdadeiramente fraternal, porque pluralista e sem preconceitos. Os índios são brasileiros, não são estrangeiros residentes no País. Devemos tirar partido disso. Somos beneficiados pela habitação deles em áreas de fronteiras, eles reagiram às invasões. É bom que estejam nas fronteiras, não é ruim. As Forças Armadas deveriam tirar partido disso, porque os índios conhecem o interior e as bordas do nosso território, são os mais íntimos da nossa geografia.

Carta Capital, 17/12/2008, p.52-53.