O ofício de insultar

Autor: 
Jarbas Passarinho
Data de publicação: 
13/05/2008
Fonte: 
CB

Os acontecimentos que vêm ocorrendo na terra indígena Raposa Serra do Sol lembram o que aprendi na Escola Militar, na teoria e na prática sobre siderurgia. Fui testemunha da primeira corrida de ferro gusa da Siderúrgica Nacional, de Volta Redonda: no início surgem as borras, para então vir o ferro gusa puro. Penso que as discussões, que são justas quando se trata de opiniões divergentes, não podem enveredar pela borra do radicalismo e da intransigência emocional. Lastimo, por isso, as injustiças que se fazem ao calor da desinteligência.

Porque demarquei a terra indígena ianomâmi, atacou-me um mentecapto de traidor da pátria. Esse eu levarei à barra da Justiça, onde deve pagar pela injúria que comete. Não vou compará-lo com outros que compreenderam eu ter cumprido uma sentença judicial. Ministro de Justiça, exonerei o presidente da Funai por divergir de sua conduta pessoal. Ganhei inimigos, mas mantive meu dever. Tendo carta branca do presidente Collor, escolhi seu substituto após reunir e ouvir os sertanistas mais capacitados e, entre eles, escolhi Sidney Possuelo, de grandes méritos.

Foi, porém, com grande desprazer que dele li entrevista indesculpável, que comparava o general Heleno ao general Custer, que comandou os morticínios dos índios no oeste americano em desbravamento e veio a morrer em combate com eles. Não li qualquer protesto contra essa agressão à pessoa do general e ao seu pensamento sobre a política indigenista, que classificou de caótica. A agressão tem sido seguida de outras generalizadas ao Exército Brasileiro.

Ora, quem primeiro nesta nação identificou o índio como igual aos mestiços que somos, e não inimigos figadais, foi ninguém menos que o general Rondon, ele mesmo de ascendência indígena. O Exército, àquele tempo, fazia certas restrições, compatíveis com o tempo, para o ingresso na Escola de Formação de Oficiais. Se visse índio como inimigo fatal, Rondon não teria acesso à carreira das armas. No ciclo militar, professores civis e o Exército não teriam tido a idéia de batizar de Projeto Rondon usando o nome de descendente de índios. E mais: nunca serviriam de bom grado àquele que criou o lema hoje tão louvado de "morrer se preciso, matar jamais".

O Exército (e falo nele porque é a ele que se pretende injuriar) teria dado todo apoio ao grande general Rondon se dele discordasse por não gostar de índio? Em exemplo pessoal, perdi um colega de turma que foi servir, nos idos de 1940, no então Território Federal do Oiapoque. Foi seqüestrado pelos índios, próximo a Porto Velho, e desde então nunca mais dele se soube. Houve alguma expedição da sua unidade militar em represália? Nunca, porque entendíamos que os índios estavam defendendo sua terra e não tinham a mesma concepção nossa de costumes e tradições.

Onde se encontraram, da modernidade à contemporaneidade, razias de militares contra aldeias indígenas? O exemplo de Rondon fortificava-se. Quando tivemos militares, até recentemente prestando serviços à Funai, deles nunca se soube - mesmo porque não houve - a degradação que supera a dignidade humana de depravarem caciques, de usarem o poder para desfrutar de suas filhas e os recompensarem monetariamente. Nenhum representante do Exército está sendo julgado nas cortes de Justiça por vender madeira de lei de terras indígenas, ao mesmo tempo em que obtêm, por outros meios indecorosos, a aquiescência dos índios para tão miserável comportamento moral.

Sei, no entanto, de muitos civis que acham o Exército opressor dos índios - tidos e havidos como responsáveis quando negociam com tribos -, mas que se enriquecem e enriquecem caciques que, levados à condição de donos de aviões e automóveis caríssimos, mantêm os companheiros em malocas dominadas pela doença e pela corrupção.

Quem fala mal dos militares, apelidando-os de inimigos dos índios, não conhece a história do país em que infelizmente nasceram. A questão existe e não é devido ao Exército, mas à população como um todo. Ao Congresso, por exemplo, onde se encontra há décadas o Instituto do Índio. É nele que saberemos quem é inimigo dos índios e patriotas por mero oportunismo. O desamor ao Exército dá chance a um intrigante de aproveitar o que o general Heleno disse, sem cometer o menor equívoco, para envenenar as relações que, entre militares e índios, têm sido, se não exemplares no passado colonial, irrepreensíveis no momento em que, certo ou errado, competente general expressa sua apreensão pela demarcação de uma terra indígena em linha contínua.

E isso porque viu, do ponto vista estratégico, como é de sua responsabilidade, que tal demarcação pode abalar a segurança do Estado no local sob controvérsia. Do lado do Exército está a integridade da pátria, não as borras dos intrigantes, porque não sabem que mais de 20% do território brasileiro constam de reservas votadas sem a menor discrepância do Exército.

CB, 13/05/2008, Opinião, p. 21.