Em 1985 o Brasil retornou à democracia, com o fim de mais um ciclo militar de intervenção, o mais extenso (com duração de 21 anos) e o mais profundo (com o exercício direto do poder por seis sucessivos governos comandados por generais-presidente s). Mas a Amazônia permaneceu à margem do processo democrático nacional: com a instituição do Projeto Calha Norte, pelo presidente José Sarney, a doutrina de segurança nacional continuou a ser a fonte do direito e da visão estatal sobre a região, acima e à parte do ordenamento legal do país.
O estado latente dessa situação irrompeu ostensivamente e readquiriu autonomia a partir do último dia 10. Nesse dia, o comandante militar da Amazônia, general Augusto Heleno Ribeiro Teixeira, fez uma palestra a portas fechadas para empresários da Federação das Indústrias de São Paulo, que constituem um dos mais poderosos grupos de pressão do país. Um dos alvos principais do pronunciamento do militar, com grande prestígio na tropa, por ter participado de operações de combate, à frente da força internacional da ONU que interveio no Haiti, foi a demarcação da reserva indígena Raposa Terra do Sol, em Roraima.
O general disse que a destinação plena aos índios dessa área, representando 46% do território do Estado e parte considerável das fronteiras do Brasil com a Guiana e a Venezuela, comprometia a soberania nacional e ameaçava de internacionalizaçã o a Amazônia, objetivo almejado por vários países, inclusive pelos Estados Unidos. A iniciativa seria uma das medidas em curso para transformar essa reserva em território internacional, numa escalada que teve seu momento máximo em setembro do ano passado, quando a mesma ONU à qual o militar serviu, a chamado, aprovou a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, subscrita pelo próprio Brasil. Dispositivos dessa declaração poderiam levar à criação de novas nações dentro do que hoje é o território nacional.
Um dos efeitos dessa declaração seria permitir que os índios da reserva conquistem livre arbítrio (ou auto-determinaçã o), deixando de se submeter ao governo brasileiro. Um chefe indígena podia se declarar imperador e dispor sobre seu território conforme quisesse, inclusive requerendo proteção internacional, que lhe poderia ser concedida de pronto, como imaginou o general. Para isso é que Holanda, Inglaterra, França e Estados Unidos estariam estabelecendo bases físicas ao longo da fronteira e se adestrando para operações militares na selva amazônica.
No mesmo dia em que o general fazia sua palestra para a plutocracia paulista (a única a merecer esse título no Brasil), o Supremo Tribunal Federal determinava a suspensão da operação que a Polícia Federal montara para desalojar os últimos não-índios que se encontram no interior da enorme reserva, somando menos do que 10% da população de 18 mil índios, o maior adensamento indígena do país numa só área. O STF decidiu que qualquer ação só poderá ser realizada (ou definitivamente vetada) depois que o tribunal decidir sobre o mérito de uma ação proposta pelo governo de Roraima contra a demarcação, apontada como ilegal. Como essa manifestação ainda demorará bastante, a liminar restabeleceu o status quo ante: ao invés de provocar um choque aberto, de proporções imprevisíveis, a tensão continuará acarretando desgastes parciais e conflitos episódicos e localizados. E a ampliar sua configuração de crise política nacional.
Ela poderá evoluir para uma nova "questão militar" e transformar o general Augusto Heleno no seu grande líder, quem sabe, um novo nome a crescer, no vácuo de lideranças civis (e, sobretudo, militares), como candidato a presidente da república na eleição de 2010. Qualidades e atributos não faltam ao militar, nem - talvez - intenções. Depois do pronunciamento na Fiesp, ainda não assumidamente político, ele foi a um ambiente ainda mais propício à sua pregação: o Clube Militar, no Rio de Janeiro. Nele, falou abertamente, para um auditório lotado por 600 pessoas, um quarto delas oficiais superiores, especialmente da reserva, mas também da ativa, como o comandante militar do Leste (com jurisdição sobre a antiga capital federal), que sentou na primeira fila, aplaudiu o palestrante e lhe deu apoio público.
O general Heleno fez críticas diretas e duras não só à política indigenista, que classificou de desastrosa e caótica, mas também aos seus chefes imediatos, os ministros do Exército e da Defesa, responsáveis pelo desaparelhamento da tropa, sua desmotivação e desvalorização. Também atingiu o comandante supremo das forças armadas, o presidente Lula. É evidente que infringiu regulamentos internos da instituição militar - e o fez de caso pensado, a começar pelo comparecimento à palestra com uniforme de campanha camuflado, a indicar que está preparado para o que der e vier, seja a punição (que não veio) ou a consagração (que está a caminho).
O general sabe do que fala e onde pisa. Há um ambiente cada vez mais receptivo às suas palavras categóricas. Pelo tom e a ênfase, são autênticas palavras de ordem, conclamando tanto os militares quanto os civis a eles associados (ou que venham a se ligar). O governo Lula é débil, incompetente e irresponsável no trato com os militares, como a esmagadora maioria dos seus antecessores. Uma conquista reivindicada há gerações, o Ministério da Defesa, foi entregue a políticos sem expressão e sem comando sobre a área que lhes foi delegada, culminando com Nelson Jobim, uma desastrada vocação à megalomania (tratado nos quartéis por "genérico do Lula").
Sobretudo, o governo é contraditório no tratamento de questões polêmicas. Como punir o general que ignorou as regras da hierarquia e da disciplina depois de não punir o MST, que viola as leis com subvenção federal? Se a causa do MST é justa, na defesa da reforma agrária e no apoio aos desassistidos sem-terra, sua evolução, com generosos recursos públicos, usados sem prestação de contas (o movimento não tem personalidade jurídica), projetou-o para além da luta social: ao mesmo tempo em que o definiu como força revolucionária, abriu espaço para a incorporação de verdadeiros delinqüentes e incomprovados lavradores.
Se pode a revolução, pode também a contra-revoluçã o, é o raciocínio dos que não se acham no primeiro campo e não se identificam com o governo, ou não se sentem como seus clientes. Hoje, não há mais dúvida que os dois movimentos estão em curso. Como sucedeu em outros momentos semelhantes, o presidente da república confia na sua habilidade para manter o algodão entre os vidros que se atritam e num recurso ao qual ele tem acesso como nenhum outro: o populismo. É provável que Lula tenha mais qualificações nesse item do que Getúlio Vargas, Juscelino Kubitscheck ou João Goulart antes dele. Mas é duvidoso que tenha tão mais qualificação do que a exigida. Por negligência, pode estar cometendo erro parecido aos dos antecessores.
A dimensão nacional do episódio provocado pelo general Heleno pode acabar prevalecendo e absorvendo tudo, mas há, na origem do seu ato, a "questão amazônica", componente cada vez de maior peso na "questão nacional". É mais difícil contestar o comandante militar da Amazônia porque ele é homem de ação, conhece pessoalmente os problemas sobre os quais se manifesta, sugere sinceridade no que diz e é respeitado pelos que lhe estão próximos (e, agora, por um número crescente de pessoas, que passaram a acompanhá-lo à distância, e a admirá-lo). Mesmo punições ou respostas baseadas na autoridade formal de quem as dá, não serão suficientes para desautorizá-lo. Ele é agora personalidade nacional, com forte liderança.
Mas estará certo no que diz, tecnicamente falando? Usando fatos inquestionáveis, o general constrói teorias equivocadas. Quem conhece a história da região de fronteira e com ela teve contato direto mais estreito não se convencerá sobre a iminência - e mesmo a viabilidade - da internacionalizaçã o da Amazônia, ou sequer da área restrita da reserva Raposa Serra do Sol, ainda que haja todas as circunstâncias favoráveis apontadas pelo general, inclusive uma conspiração internacional com seus tentáculos fixados dentro do Brasil, através de ONGs (Organizações Não-Governamentais) .
No passado colonial, a região que constitui atualmente o Estado de Roraima (e que já foi o Grão Pará, o Rio Negro e o território de Boa Vista do Rio Branco) esteve muito ameaçada por espanhóis, ingleses e holandeses, que desejaram efetivamente anexar esse território às suas possessões coloniais ao norte e a leste do limite setentrional brasileiro. Militarmente, os estrangeiros foram derrotados pelos portugueses, quando o marquês de Pombal, o déspota esclarecido da segunda metade do século 18, enviou de Lisboa o personagem mais importante dessa fase, o capitão Philipp Sturm. Militar e engenheiro, Sturm construiu a fortaleza de São Joaquim num local chave (a confluência dos rios Urariquera e Tacutu, ao norte da futura capital, Boa Vista) para concentrar tropas e inibir qualquer ameaça militar.
No entanto, a segunda parte do seu plano, a de fixar população civil em núcleos coloniais próximos, não deu certo: em uma década todos os povoados surgidos à margem da fortaleza tinham sido destruídos pelos índios. Sobreviveram, entretanto, todas as povoações criadas pelos missionários religiosos, que se consolidaram, sob as bênçãos da Igreja, graças ao gado trazido pelo comandante militar. Durante os dois séculos seguintes a pecuária foi o principal agente da fixação na área, mais harmoniosa do que em outras partes da Amazônia graças aos extensos campos naturais de Roraima. Os colonos podiam desenvolver o criatório sem desmatar ou provocar conflitos de vizinhança, já que os índios mais próximos dos agrupamentos de colonos puderam conviver com eles (e os mais distantes permaneciam como marcos vivos da presença portuguesa).
O sucesso do empreendimento colonial lusitano não foi repetido pelo império brasileiro. Apesar de representado por um personagem tão bem qualificado quanto Joaquim Nabuco, que produziu durante o contencioso os estudos clássicos da bibliografia nacional sobre a fronteira roraimense, o Brasil perdeu a parte oriental de sua antiga possessão, reivindicada pelos ingleses. É uma região rica em minérios, cujo domínio pela Guiana (ex-inglesa) a Venezuela também contesta. Mas cujo resultado do arbitramento internacional (feito equivocadamente pelo rei Vítor Emanuel III, da Itália), o Brasil aceitou.
O país perdeu, mas também ganhou: o litígio atraiu o interesse nacional pela remota região, até então melhor conhecida por estrangeiros, dentre os quais se destacou Hamilton Rice, autor de outro estudo clássico sobre a região. Durante 10 anos, entre 1930 e 1940, uma comissão demarcadora de limites, comandada pelo capitão de mar-e-guerra Braz de Aguiar, fez um profundo reconhecimento da região de fronteira do Brasil com as Guianas, definindo pacificamente os limites.
Graças a essa orientação esclarecida da diplomacia nacional, que também atuou ao sul, na "questão acreana", sob o comando do Barão de Rio Branco, o Brasil consolidou seu domínio sobre quase dois terços da Amazônia continental sem atritar com seus vizinhos e fazendo convergir positivamente a ação dos três elementos constitutivos (nem sempre harmônicos) das paragens remotas da região: o soldado, o missionário e o nativo. A fronteira foi pacificada, apesar de todo o seu potencial de antagonismo.
Essa característica básica perdura até hoje, a despeito de todas as mudanças que ocorreram mais recentemente. Um processo desses, que já dura três séculos, não pode ser modificado tão súbita e drasticamente quanto quer essa geopolítica tecida à base do temor por resoluções internacionais, pelo assédio além-fronteira, pela ação nociva de ONGs e por tantos dos desvios e erros apontados pelo comandante militar da Amazônia. O país dispõe de tempo e de autoridade para enfrentar todos esses problemas, prevenindo-os ou resolvendo-os. A diplomacia da compreensão e do entendimento criou esse patrimônio, que se exibe com um dado material inquestionável: índios e colonizadores são brasileiros e querem continuar a sê-lo, independentemente de suas divergências e choques. Quem lhes propuser outra cidadania, mesmo que tente impô-la à força (hipótese hoje irreal), fracassará.
O tamanho da reserva e sua forma não impedem o general de cumprir a sua determinação: "Enquanto for comandante militar, minha tropa vai entrar onde for necessário", proclamou ele. Sua tropa pode entrar na reserva, mesmo que for considerada indesejada pelos índios, se ele receber a autorização dos seus chefes ou se convencer o Conselho de Defesa Nacional (sucessor do Conselho de Segurança Nacional do regime militar) de que tal medida é necessária ao exercício da soberania nacional, conforme estabelece o decreto 4.412. Isto porque, independentemente do tamanho da reserva e ser ela formada por uma sucessão de "ilhas" ou ser integral, a faixa de 150 quilômetros a partir das fronteiras é área de segurança nacional, sujeita à jurisdição do exército brasileiro, obedecidas as regras constitucionais e das demais leis que regulam a matéria. A serviço do Estado e não do governo, é claro, como lembrou o general, talvez não muito confiante na memória nacional a respeito.
A democracia é suficientemente ampla e desejada para que o contencioso suscitado pelo general Heleno seja enfrentado, debatido e resolvido sem que fantasmas gerados à luz do sol se tornem os personagens dessa história. Fantasmagoria nunca fez bem a ninguém.
Adital, 28/04/2008.