O confronto de opiniões que acompanha o confronto físico de índios e fazendeiros (com seus jagunços), na reserva indígena Raposa/Serra do Sol, suscita dois aspectos que demonstram quanto o Brasil ignora, por desprezo, a mais fascinante parte do seu território -e, por isso mesmo, motivo da mal disfarçada ambição de interferência pelas estratégias das forças internacionais. Sejam nações-potências ou organizações sob seu domínio.
As constatações feitas agora pelo Ibama, e que o levam a multar em estratosféricos R$ 30 milhões o fazendeiro Paulo Cesar Quartiero, expõem o tipo de "empreendedorismo" (como dizem os economistas da riqueza e seus jornalistas) predominante no "desenvolvimento sustentável" da Amazônia e regiões adjacentes. Devastação, pelo fazendeiro, de quase três vezes a área ambiental autorizada, incorporando a propriedade de uma exploração territorial equivalente a muitos dos municípios brasileiros. No caso, exploração com arrozais. Mas outras culturas e a criação de gado não estão isentas das mesmas vastidões de devastação ilegal. Tantos desses "empreendedores", se têm algum título de propriedade, movidos a incentivos fiscais e outros, além do apoio de infra-estrutura construída pelo Estado.
É a isso que a defesa da "exploração racional" da Amazônia, em grande parte, tem dado cobertura, em má ou em boa-fé. Barbaridades lá e impressões impróprias aqui por dois motivos principais: a impossibilidade de fiscalização adequada e o baixo nível de informação do brasileiro, nisso, sem diferença de classe.
A carência generalizada de fiscalizações é imposta pela desproporção entre as dimensões amazônicas e as entidades paupérrimas que deveriam fiscalizá-las e estudá-las. O problema do desconhecimento, por sua vez, decorre das deficiências informativas dos meios de comunicação, que, ao alcançarem a fartura de recursos para uma ação enfim extensiva, não o fizeram. Preferiram uma prioridade estreita: a temática específica do interesse político e factual do poder financeiro. Como está bem ilustrado pela quantidade, nos últimos muitos anos, de manchetes de primeira página e de tempo nos noticiários de TV e rádio, voltados para aquele público mínimo de leitores/ouvintes. A depender da ótica dos meios de comunicação, todos os brasileiros somos jogadores da Bolsa e devemos tornar-nos economistas. O restante do Brasil e do mundo preenche os espaços vagos, com ajuda da corrupção e outras imoralidades administrativas e empresariais-financeiras.
A discussão em torno da soberania territorial, se seria ferida ou não pelas reservas indígenas, foi suscitada por militares e adotada pelos interesses econômicos, uma identidade velha conhecida. A tese ignora, primeiro, que os territórios estaduais, municipais e particulares são delimitações para efeitos legais e administrativos, não são propriedades soberanas. São partes do território nacional. Com isso, não há impedimento de soberania à ação do Estado em nenhuma de tais áreas, respeitadas as condições explícitas na legislação. As quais, de resto, favorecem muito mais a propriedade privada, em relação a ações militares e policiais, do que as reservas concedidas a indígenas.
A reserva em faixa de fronteira, outra inaceitação de militares, não cria, ou aumenta, possíveis ameaças externas à soberania. Uma pergunta, a propósito: seria mais fácil a violação, com origem externa, do trecho de fronteira onde há indígenas que adotaram o idioma e inúmeros costumes brasileiros, ou na imensa extensão da fronteira amazônica que, além de não contar com um só soldado, não tem nenhuma outra presença humana?
Mas é verdade, também, que muitos dos problemas nos Estados amazõnicos têm sido solucionados. A bala. E com impunidade de todos os mandantes desses empreendimentos resolutos, o que é outra forma de incentivo que os governos lhes dão para o "desenvolvimento sustentável", porém à brasileira, na Amazônia.
FSP, 11/05/2008, Brasil, p. A9.