O conflito em torno da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol deveria ser um assunto superado desde que o presidente assinou a homologação em área contínua, conforme os estudos e procedimentos legais que normalizam as demarcações no Brasil. Mesmo assim, o STF acatou ação contestando o ato presidencial, o que desencadeou um debate nacional e internacional, mobilizando indígenas e todos aqueles que apóiam sua causa. Mobilizou também aqueles que desprezam a população indígena, aguçou o racismo e fez retornar o velho e desgastado ideário de que a presença indígena é estorvo ao desenvolvimento econômico. Acrescentou-se ao debate a ameaça à soberania porque a terra localiza-se em área de fronteira e, segundo os mais irados radicais, os indígenas poderiam formar uma nação independente, insurgente contra o Estado brasileiro.
Ora, se as terras indígenas pertencem legalmente à União, como pode o Estado ficar ameaçado? Como pode ser estorvo a produção familiar de alimentos, num mundo que carece disso? A produção das famílias indígenas, num estado como o de Roraima, representa movimentação comercial, abastecimento alimentar, além da subsistência de 20.000 pessoas que vivem na área. Como pode ser contestada a preservação ambiental conseqüente da demarcação contínua? A terra em questão é rica em biodiversidade, além de possuir as maiores jazidas de cassiterita e nióbio do Brasil, mais ouro, urânio, tântalo e até diamantes. Com a terra demarcada será muito mais exeqüível a proteção dessas riquezas.
Estorvo provocaram garimpeiros ilegais, madeireiros, criadores de gado e produtores agrícolas que molestaram os índios durante décadas, como fazem até hoje. A luta pela demarcação trouxe dignidade, organização social e política, prosperidade, orgulho e auto-estima aos indivíduos, famílias e povos.
O voto do ministro Carlos Ayres Britto levou em consideração todos os fatores envolvidos e foi considerado por alguns juristas como um dos mais brilhantes em toda história do STF. Antropólogos, juristas, indigenistas e cidadãos conscientes, ao lado dos povos indígenas que estão atentos ao julgamento de hoje, não têm dúvidas a respeito da demarcação contínua. Esperamos que a Constituição seja respeitada, que a sociedade compreenda que o melhor é existir a diversidade cultural e natural e que a pluralidade de necessidades concorra para a construção de uma ética no sentido de preservar a teia da vida. Vida natural e social que incluirá a todos e, em especial, os cidadãos indígenas, a quem devemos importantes aspectos de nossas raízes e com os quais possuímos uma dívida histórica, para cessar a violência de 500 anos. A demarcação contínua será o aceno de paz.
Lucia Helena Rangel, doutora em antropologia pela PUC-SP e assessora do Cimi
OESP, 10/12/2008, Nacional, p.A4.