De novo esse surrado espantalho e, agora, em benefício de seis poderosos arrozeiros de Roraima instalados de má-fé em terra indígena? Que compraram benfeitorias dos que saíam dessa terra quando ela estava sendo reconhecida? Que gozam de isenção fiscal de um Estado fronteiriço que se sustenta à custa de dinheiro federal? Que se insurgiram violentamente contra o Executivo e o Judiciário? Que são, com quem os sustenta politicamente, uma verdadeira ameaça à soberania nacional?
A diversidade dos povos indígenas é patrimônio do Brasil. Nosso país é megadiverso em mais de um sentido, em riqueza biológica e em riqueza cultural. Por isso a Constituição garante as terras necessárias aos índios para reprodução física e social. Isto é, os padrões culturais de sociabilidade e exploração de recursos têm de poder ser mantidos, e a continuidade da terra indígena é condição para tanto.
Terras indígenas são bens da União, inalienáveis e indisponíveis, e os índios têm a posse e o usufruto delas. Por isso o Estado pode ter sobre essas terras uma vigilância mais ampla do que a que pode exercer sobre terras privadas. Além disso, o Exército deve estar presente em todas as áreas de fronteiras, indígenas ou não.
O então ministro da Justiça Nelson Jobim, em 1995, despachou favoravelmente à declaração de uma extensa área fronteiriça como sendo de posse permanente indígena, deixando claro que terra indígena e presença do Exército não se excluem.
Historicamente, a posse indígena assegurou ao Brasil o desenho de algumas de suas fronteiras internacionais. Roraima, cujo território há cem anos foi disputado entre o Brasil e a Inglaterra, é um exemplo. Joaquim Nabuco, que defendeu a posição brasileira, argumentou justamente a presença indígena nas terras hoje conhecidas como Raposa/Serra do Sol para fundamentar o direito brasileiro.
Hoje, a vigilância e a atuação dos ashaninka do Acre contra a invasão de madeireiros do Peru têm sido essencial na defesa de nossas fronteiras.
Vem então outro surrado espantalho: ONGs internacionais ou com ligações internacionais. Somos inteiramente favoráveis a que se separe o joio do trigo. Se há indícios, que se investiguem, mas uma teoria conspiratória generalizada lembra o protocolo dos sábios de Sião: serve apenas para justificar o arrepio da ordem legal.
Pois a verdadeira questão é o (des)respeito ao Estado de Direito: Raposa/Serra do Sol foi identificada, demarcada e homologada a muito custo durante três décadas e sob procedimento inteiramente legal.
Os ocupantes da Raposa/Serra do Sol tiveram desde a demarcação em 1998 ocasião de contestá-la amplamente. Quando saiu, cumprindo a lei, uma primeira leva de ocupantes não-indígenas, os arrozeiros compraram algumas de suas benfeitorias. A Funai depositou em juízo o valor das indenizações para os últimos 53 ocupantes, que se recusaram a recebê-las -entre eles estão os arrozeiros.
Imagens de satélite demonstram que, em 1992, as plantações de arroz ocupavam cerca de 2.000 ha, passando para 15 mil em 2005, ano da homologação pelo presidente da República.
Os arrozeiros expandiram o cultivo mesmo sabendo que eram terras indígenas e desafiando o governo federal.
Alega-se que as terras indígenas em Roraima, que correspondem a 46% de sua extensão, ameaçam inviabilizar o Estado. Porém, os 54% restantes equivalem à soma da extensão de Rio de Janeiro, Espírito Santo e Alagoas, ocupados por menos de 400 mil habitantes, concentrados na capital, Boa Vista. Roraima depende até hoje da remessa de recursos federais para a sua manutenção, não tendo conseguido estabelecer uma base de arrecadação local que viabilize o Estado. No entanto, o governo do Estado, em 2003, concedeu aos rizicultores isenção fiscal até o ano de 2018. Sem projeto de desenvolvimento definido e instituições republicanas consolidadas, o Estado propicia o enriquecimento ilegal, sendo os custos sociais e ambientais arcados pelo país inteiro.
Quem ameaça a soberania nacional?
Manuela Carneiro da Cunha, 64, é professora titular de antropologia da Universidade de Chicago (EUA) e membro da Academia Brasileira de Ciências.
Ana Valéria Araújo, 44, é advogada, mestre em direito internacional pelo Washington College of Law (EUA) e coordenadora-executiva do Fundo Brasil de Direitos Humanos.
FSP, 26/04/2008, Tendências/Debates, p. A3.