Alarme falso e soberania ameaçada

Autor: 
Marco Paulo Fróes Schettino e Henyo Trindade Barretto Filho
Data de publicação: 
30/06/2008
Fonte: 
Desafios

Cinco arrozeiros, políticos e militares atacam os direitos indígenas previstos na Constituição, alegam riscos à soberania nacional. Supõem que terras da União, de usufruto indígena, seriam declaradas pelos índios como Estados independentes, separadas do Brasil e entregues ao "estrangeiro". Seria cômico se não fossem trágicas as conseqüências dessa campanha ideológica.

Tal campanha é retórica, sem qualquer compromisso com a realidade. As terras indígenas são de domínio da União e

requerem a presença fiscalizadora do Estado. Aos índios cabe somente a posse. As Forças Armadas e a Polícia Federal podem nelas atuar. Reconhecer e regularizar terras indígenas é, portanto, um ato soberano do Estado brasileiro.

Os povos indígenas no Brasil são sociedades sem Estado, como há muito demonstrou o antropólogo Pierre Clastres. Não há nenhuma documentação oriunda de qualquer uma das 185 terras indígenas na faixa de fronteira que reivindique transformá-las em Estado-nação, ao contrário de movimentos não-indígenas publicamente separatistas (ver O Sul é Meu País, em www.meupais.hpg.ig.com.br).

Conforme argumentou Joaquim Nabuco, no conflito fronteiriço, os índios do nordeste de Roraima eram - e permanecem sendo - presença brasileira na região. São índios e seus descendentes a maior parte das tropas do Exército na Amazônia, as quais são requeridas pelos índios face a ameaças - tal como a dos madeireiros peruanos sobre os Ashaninka (no Acre) e a das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) sobre os Tukano (no Amazonas).

Terras privadas não requerem a presença do Estado. Segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), 55% das terras privadas na Amazônia são de empresas com capital estrangeiro. Narcotraficantes podem comprar, por meio de "laranjas", fazendas na faixa de fronteira para lavar dinheiro e utilizá-las em apoio ao tráfico.

O que ameaça a soberania da Amazônia é a ausência do Estado de Direito na região, transformando-a em verdadeira "terra-sem-lei". Que as Forças Armadas se façam presentes e fiscalizem terras indígenas - observando regras básicas de respeito às populações indígenas -, unidades de conservação, reservas extrativistas, etc.

Quando se trata da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, vemos serem banalizadas tantas ilegalidades e violações de direitos humanos cometidas pelos seus opositores: assassinatos, grilagem, crimes ambientais,lesões corporais,porte ilegal de armas e explosivos, destruição de bens públicos, incitamento ao racismo e ao conflito étnico, tudo registrado em inquéritos da Polícia Federal.

A referida campanha de (de)formação da opinião pública está promovendo a destruição ambiental - os arrozeiros foram multados em milhões de reais pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) - e criminalizando as reivindicações indígenas pelos seus direitos. Força a radicalização do movimento indígena, empurrando-o para um confronto criado pela negação desses direitos, minados na campanha.

Por paradoxal que pareça,essa campanha vulnerabiliza a soberania nacional. O meio adotado pela maior potência militar do planeta para pôr em xeque a soberania de outras nações é a guerra ao terrorismo e ao narcotráfico. Documentos do Conselho Nacional de Informação dos Estados Unidos, analisados pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos, apontam os movimentos indígenas na América Latina como potenciais atores para imputar-lhes a pecha de "terroristas", legitimando, assim, intervenções com vistas a seu combate.

A agressividade da atual campanha contra os direitos indígenas no Brasil está perto de criar o cenário ideal para que sejam assim caracterizados. Caso se declarem os movimentos indígenas "terroristas", sujeita-se legitimar discursos e ações de caráter realmente intervencionista - o que parece ser o sonho dos que acalentam essa campanha.

Marco Paulo Fróes Schettino (foto) é perito antropólogo do Ministério Público Federal e
Henyo Trindade Barretto Filho é diretor acadêmico do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB)

Desafios, v. 5, n. 44, jun. 2008, p. 15