Os indígenas e o STF

Autor: 
Jarbas Passarinho
Data de publicação: 
02/09/2008
Fonte: 
CB

O senador Garibaldi Alves Filho vem tendo admirável desempenho na Presidência do Senado Federal. Iterativa e comedidamente se queixa de que o Legislativo estaria sendo esvaziado de suas atribuições, ora pelo derrame de medidas provisórias, ora pelo Supremo. Isso decorre, em parte, do erro indesculpável dos constituintes de 1987 que, num texto presidencialista, embutiram a adoção, pelo presidente da República, em caso de relevância e urgência, de medidas provisórias.

Vigentes imediatamente, podem ser aprovadas, rejeitadas ou emendadas pelo Legislativo. Como esse não rejeita, nem emenda nem aprova em curto prazo, elas se acumulam, à espera da votação. Um exemplo, que fala por si só, se deu com a medida provisória que instituiu o real. Levou anos para ser, afinal, aprovada. Além do caso das medidas provisórias, há a considerar a tradicional tardança com que o Legislativo legisla, prejudicando a sábia lição de Montesquieu, sobre a divisão dos Poderes. Alguns casos escandalizaram. A antiga Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que teve Carlos Lacerda como relator, levou 10 anos. O Plano de Valorização Econômica da Amazônia, depois de uma dezena de tramitação, foi arquivado. O Instituto Internacional da Hiléia Amazônica consumiu 37 anos inutilmente, para acabar arquivado.

O presidente Castello Branco, em face da lentidão do Legislativo, criou o decurso de prazo. Cada uma das duas casas do Legislativo disporia de 45 dias para apreciar e votar matéria de sua responsabilidade. Se não o fizesse, seria aprovada a mensagem do presidente por decurso do prazo. Poupavam-se os parlamentares, governistas, dos outdoors intrigantes do PT, disseminados nas praças públicas. Acabado o artifício do decurso de prazo, voltou a lentidão.

Enfatizo, por oportuno, o Estatuto do Índio, há muitos anos parado no Congresso. Se já fosse lei interpretativa do artigo 231 da Constituição, não caberia mais discutir se deve ou não ser observada a linha contínua na demarcação das terras indígenas tradicionalmente ocupadas. Reza o § 1º do artigo 231: "As terras são utilizadas para suas atividades produtivas, imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições". À antropologia cultural cabe interpretar o artigo e definir como demarcar uma terra indígena para cumprir essa norma.

No caso da terra indígena ianomami, demarcada no governo Fernando Collor, antropólogos da Funai e estrangeiros definiram que só a ocupação em linha contínua satisfazia os termos do artigo 231 da Constituição. Assim procedeu o governo João Batista Figueiredo. Dele discordando, o presidente José Sarney, ao fim de seu mandato de cinco anos, editou 19 decretos revogando a linha contínua, substituída por 19 "ilhas" e reduzindo as dimensões da terra mandada demarcar. O Ministério Público, por sua vez, discrepou da decisão revogatória e entrou com medida cautelar, junto ao juiz da 7ª Vara Federal de Brasília, para manter o status quo anterior, ou seja, nas mesmas dimensões e em linha contínua.

O magistrado concedeu liminar e ouviu o governo Sarney, que alegou ser assunto privativo do Executivo. O magistrado não se convenceu e deu provimento à segurança impetrada pelo Ministério Público. Ficaram mantidas a extensão da terra indígena e a linha contínua. O governo Sarney não recorreu e ao presidente Collor coube cumprir a demarcação no prazo constitucional, o que foi feito.

Vejo, agora, renovar-se o assunto em face da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol. O Supremo está dividido, a julgar pelas declarações de ministros, dadas em reserva, após o voto fundamentado do eminente relator, ministro Carlos Ayres de Britto. Uma das declarações defende "deixar livres para as Forças Armadas as faixas de fronteira com a Venezuela e a Guiana". Ideal, mas choca-se com o disposto no § 5º do mesmo artigo 231: "É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco". Isso só "é cabível", teria dito outro ministro, se ficar evidenciado que determinadas faixas não eram ocupadas pelos índios.

Os mapas geográficos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) darão a resposta, como deram em 1991, no caso ianomami. A linha contínua alcançando a fronteira atinge não a soberania mas a segurança nacional se nela não se instalar tropa militar - como o Calha Norte -, ou seja, se houver o vazio militar da fronteira, um convite à invasão. Quanto à soberania nacional, o que a está pondo em risco é a total, abusiva e incompreensível ação das ONGs (ou quem quer que seja), que obriga "o Exército a fazer convênio com índios para que tenham entrada nas terras", segundo afirma outro eminente ministro. Inconcebível, pois as terras indígenas são bens da União (art. 20 da Constituição) e não cabe submeter sua soberania a ninguém. Mais grave ainda é a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, aprovada recentemente pela ONU, com o voto favorável do Brasil. Os índios terão autodeterminação e nas tribos serão proibidas as atividades militares. Como defender o Brasil se as ONGs não forem contidas e a Declaração não for rejeitada no Congresso?

Jarbas Passarinho, foi ministro de Estado, governador e senador

CB, 02/09/2008, Opinião, 21.