Terra Indígena em Roraima é a campeã da soberania

Autor: 
Ciro Campos
Data de publicação: 
22/05/2008
Fonte: 
Folha de Boa Vista

O que está em disputa na Raposa Serra do Sol não é a fronteira nacional, mas a última fronteira do agronegócio no Brasil. O suposto risco à soberania só faz sentido como estratégia de desinformação, pois o conflito acontece na terra indígena mais bem resguardada de toda a fronteira amazônica. Neste caso, o que está sendo alvo de cobiça é a região dos campos naturais de Roraima, bola da vez para a cana, arroz, soja e celulose, bem à porta do mercado consumidor venezuelano e sem as restrições impostas ao plantio na floresta. Antes de mais nada, é preciso lembrar que na época do “integrar para não entregar”, na década de 70, a preocupação com a soberania abriu caminho para um modelo de ocupação e desenvolvimento que fez o Brasil perder quinze por cento da Amazônia para o desmatamento. Agora, estamos prestes a fazer algo parecido, fragmentando terras indígenas para abrigar o desenvolvimento. Isto significa repetir os erros do passado, usando a defesa da soberania para legitimar estratégias que, na verdade, acabam por comprometê-la.

Em comparação com outras terras indígenas da fronteira, a Raposa Serra do Sol tem características que favorecem, e muito, a soberania nacional. Tem, por exemplo, a maior densidade demográfica, maior inclusive que a de alguns municípios do estado. Tem também a maior malha viária, com estradas em todas as direções, facilitando a fiscalização e a movimentação de tropas. O Exército tem quatro batalhões na região, dois dentro da terra indígena e dois nos municípios vizinhos. A Raposa Serra do Sol é a terra indígena que fica mais perto de uma capital, e sua fronteira com Guiana e Venezuela é mais segura que as fronteiras com Bolívia, Peru e Colômbia, levando em conta guerrilha, narcotráfico e crime organizado. O poder público está lá, mais do que em outros lugares, com os serviços de educação, saúde, segurança, energia, infra-estrutura e assistência técnica, mesmo que ainda de modo insuficiente. Além disso, as ongs que atuam na região estão sob forte vigilância dos produtores e da sociedade, assim como os pesquisadores, que precisam do aval dos militares no Conselho de Defesa para entrar na terra indígena. Ano passado, por exemplo, o conselho barrou o projeto de uma universidade americana que, em parceria com pesquisadores brasileiros, pretendia estudar o manejo de caça nesta terra indígena. Ou seja, a idéia de que a região está escancarada aos interesses estrangeiros não é verdadeira.

Além de mais protegida e menos isolada, a Raposa Serra do Sol é apenas a décima terceira maior terra indígena da Amazônia. Ora, não é preciso ser um jurista pra saber que se o argumento da soberania for usado para voltar atrás na demarcação desta terra indígena, estará criado o precedente legal para reduzir ou fragmentar muitas outras. Isto sim colocaria em risco a soberania, pela capacidade de gerar um conflito social de conseqüências imprevisíveis e exportar a degradação ambiental para regiões ainda bem conservadas do território.

As terras indígenas defendem a soberania, pois soberania na Amazônia não é apenas integridade territorial, mas também soberania sobre as riquezas naturais. Não estamos falando de minério, mas das commodities do futuro, os famosos serviços ambientais: água, biodiversidade e estoque de carbono. A regulamentação para o pagamento pelos serviços ambientais já está sendo negociada, e em breve, nossas riquezas naturais vão se converter no tipo de riqueza que se contabiliza no PIB, em beneficio de todo o país. E basta olhar as imagens de satélite pra ver o quanto as terras indígenas ajudam a conter o desmatamento e conservar os mananciais. É bom não esquecer que a destruição da natureza é o principal argumento de quem tenta discutir a internacionalização da Amazônia. Desta forma, os índios garantem a soberania não apenas impondo a presença nacional em zonas remotas do território, mas também garantindo a conservação de recursos estratégicos para o Brasil.

Em resposta às denúncias, IBAMA e Agência Nacional de Águas estão investigando o descumprimento de leis ambientais básicas, como o desmatamento em Áreas de Preservação Permanente e o uso indevido das águas no processo de irrigação. Em sua defesa o líder dos produtores acusa IBAMA, ANA e governo federal de conspiração.

Mais que elevar o tom do discurso, alguns produtores estão indo às vias de fato, promovendo a resistência com explosivos, coquetéis molotov, sabotagens e táticas de guerrilha, promovendo incêndios, destruindo pontes e estradas, afrontando a Polícia Federal e a Força Nacional de Segurança, tudo com a conivência das autoridades locais. Um carro bomba foi desarmado em frente à sede da PF, e o acusado, preso em flagrante quando tentava detonar os artefatos, disse que ia praticar o ato em troca de emprego numa fazenda de arroz. Outro homem, preso sabotando uma ponte, é empregado dos arrozeiros. Até homem bomba apareceu na TV, com máscara de guerra e cinturão de explosivos. Recentemente dez índios foram atacados por empregados de um arrozeiro, com armas de fogo e bombas de fabricação caseira. Imediatamente, o governador Anchieta Júnior acusou os índios feridos de terrorismo e tentou interceder pelo produtor que foi preso pela PF, enquanto o senador Mozarildo responsabilizava o governo federal pelo atentado.

Isso mostra que é na guerra de informação que os produtores e seus aliados estão realmente investindo pesado. A propaganda é tão eficiente que sua causa desenvolvimentista foi transformada em questão de segurança nacional e seus atos terroristas são vistos como heroísmo patriótico. Em vinte e cinco anos de Roraima já ouvi muitas teorias conspiratórias, principalmente durante a homologação da terra Yanomami, em 92, mas nada se compara ao que está acontecendo agora. Desta vez, com a ajuda do general Augusto Heleno, o medo da internacionalização foi disseminado com tanta força no país inteiro, que ninguém mais pergunta, nem explica, por que a Raposa Serra do Sol, especificamente ela, representaria uma ameaça à soberania.

Um bom exemplo de desinformação é a notícia de que o estado de Roraima vai ficar inviabilizado para o desenvolvimento por ter metade do seu território em Áreas Protegidas, sem mencionar que essa é uma situação comum aos outros estados da Amazônia. Embora seja o campeão em terras indígenas, com 46%, o estado é um dos últimos colocados em Unidades de Conservação, com apenas 6%, ficando em situação semelhante aos estados do Pará, Amazonas, Acre e Rondônia, que tem quase metade de seus territórios em Áreas Protegidas, sem falar no Amapá, com cerca de 70%. Ainda cabe ao estado de Roraima administrar onze milhões de hectares para 300 mil pessoas, situação fundiária que permanece perfeitamente compatível com o desenvolvimento.

Pensando na Raposa Serra do Sol, o impacto dos produtores de arroz não pode ser negligenciado. Mesmo ocupando menos de 2 por cento da área, o impacto dos seis produtores de arroz sobre os recursos aquáticos acaba sendo exportado pra uma área bem maior, e os índios há muito reclamam que a aplicação de veneno por aviões prejudica a pesca, reduz a caça e causa a morte de pássaros.

Se os índios e os ambientalistas não atrapalharem, Roraima pode ter em dez anos o mesmo nível de produção agrícola e degradação ambiental do cerrado de Mato Grosso, onde o que restou das nascentes do Xingu está dentro das terras indígenas. Cabe à sociedade decidir se é bom negócio fazer o mesmo nas savanas de Roraima, uma região que ainda se encontra em bom estado de conservação, abrigando áreas prioritárias para a conservação da biodiversidade e uma extensa rede de rios e lagos.

A permanência dos militares nas terras indígenas é indispensável e já está garantida, seja qual for a decisão do STF. Quando o Brasil assinou a Carta dos Povos Indígenas, o fez com declaração de voto, deixando claro que não apóia os itens em desacordo com a nossa constituição, como a restrição à presença militar nas terras indígenas. Ou seja, o lema “braço forte, mão amiga” vai continuar valendo. Entretanto, para cumprir o seu papel constitucional, os militares poderiam exigir o aumento da presença do Estado e o fortalecimento das forças armadas nas terras indígenas da fronteira, para o braço ficar mais forte, e a mão, ainda mais amiga. A preocupação do general Heleno nos remete à mensagem fixada na entrada dos quartéis, lembrando que árdua foi a missão de nossos antepassados para conquistar e manter a Amazônia. Mas é bom lembrar que essa missão foi cumprida com a participação dos povos indígenas. Por isso mesmo, em defesa do interesse nacional, os militares precisam rever sua estratégia. Militares e indígenas estiveram juntos na árdua missão de conquistar a Amazônia, e agora, mais do que nunca, precisam continuar juntos na difícil missão de protegê-la.

Ciro Campos é Mestre em Ecologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA

Folha de Boa Vista, 22-23/05/2008, Opinião.