Excluídas as ações de puro racismo, preconceitos, políticas de extermínio, declarações de guerra e outras atitudes xenófobas que se desmerecem por si mesmo e nem necessitam contra-argumentos, duas são as políticas indigenistas possíveis: a integração ou a convivência.
A integração foi a política da América Latina desde a chegada dos portugueses e espanhóis. Embora estes quinhentos anos tenham sido marcados por guerras de extermínio, oficialmente a política foi de integração.
Integração significa oferecer às populações indígenas as facilidades e conforto da modernidade. D. João, em carta régia de 1808, garantia aos índios que se submetessem às leis reais e se aldeassem “gozarem dos bens permanentes de uma sociedade pacífica e doce, debaixo das justas e humanas leis que regem os meus povos”. A idéia da integração, portanto, sempre esteve ligada à necessidade de submissão ao poder estatal, mas ainda mais que isso: à integração econômica e cultural. Portanto, o esforço de integração sempre se fez com oferta de cristianização e transformação dos indivíduos em trabalhadores livres. É tão forte esta segunda idéia que no século 19 há guerras contra grupos indígenas para transformá-los em trabalhadores e, enquanto aprendiam a trabalhar, não precisavam ser remunerados.
Esta política integracionista não necessitava oferecer ou reconhecer terras para a reprodução econômica e cultural dos índios, bastava ter lugares onde se concentrassem até que se integrassem, indivíduo por indivíduo. Daí que estes lugares se chamassem “reservas”. Eram terras provisórias, não necessariamente no local de uso tradicional das populações, mas escolhidas pelo poder público até que os índios pudessem trabalhar e receber salário.
Esta política explica, por exemplo, o fato de os direitos indígenas estarem ligados, no século 20, aos direitos dos trabalhadores. Em 1909 foi criado o Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais. O organismo internacional que sempre se dedicou à proteção dos direitos indígenas até o século 21 foi, sintomaticamente, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) com duas Convenções – a de n.° 107 (1957) e a de n.° 169 (1989).
Os índios resistiram mantendo suas comunidades – língua, organização social e costumes. Aos que se integraram foi oferecido o escalão mais baixo e pobre da sociedade. A política de integração fracassou em toda América Latina.
A partir do final do século 20, e por força de muita luta e reivindicação dos povos indígenas das Américas, uma nova política começou a ser posta em prática – a da convivência. A essência desta política é o reconhecimento de que os povos indígenas têm direito à opção de continuarem como índios e, portanto, com direito a escolher o próprio futuro. Esta política foi acolhida pela Constituição brasileira de 1988.
A conseqüência jurídica é o reconhecimento do chamado direito originário dos indígenas às terras que ocupam tradicionalmente, além dos direitos à sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, tudo regulamentado na própria Constituição (artigos 231 e seus parágrafos e artigo 232, entre outros). A mudança de política se fez na Constituição.
Com base e fundamento na Constituição e na política de convivência, portanto, em 1998 foi demarcada a terra chamada Raposa Terra do Sol, em Roraima, que vem sendo noticiada nos meios de comunicação. Embora o seu reconhecimento seja muito anterior, Joaquim Nabuco argumentou a presença de índios brasileiros para justificar a soberania do Brasil sobre estas terras, contra a pretensão da Inglaterra, e Cândido Rondon cravou marcos de identificação no início do século 20, somente com a tardia homologação da demarcação, em 2005, se iniciou um confronto organizado por produtores de arroz, argumentando que a terra indígena não é produtiva e que a saída dos arrozeiros que se instalaram em 2002 traria prejuízo ao Estado. Se tivesse havido respeito à Constituição desde 1998, não ocorreria a crise atual, e a terra seria exclusiva para os índios, o que significa que a política de convivência é correta, embora às vezes mal aplicada.
A política indígena brasileira, então, não pode depender da vontade política do governo, porque está na Constituição e seu respeito é fundamento do Estado Democrático de Direito. Fora disso o que há é preconceito, racismo, interesses econômicos particulares e localizados, tudo muito longe da proposta de convivência pacífica dos povos da América.
Carlos Marés, autor do livro O renascer dos povos indígenas para o Direito, é professor de direito socioambiental da PUCPR e procurador geral do estado do Paraná. Foi presidente da Funai.
Gazeta do Povo, 06/05/2008, Opinião.