Em seu discurso de posse como Presidente do Supremo Tribunal Federal – STF, o ministro Gilmar Mendes afirmou que às demandas da sociedade “a Corte tem respondido, demonstrando profundo compromisso com a realização dos direitos fundamentais”. No caso da histórica demanda dos povos da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol (RR), o discurso do ministro soou descompassado com a realidade.
Desde os anos 1970, quando o estado era Território Federal e habitado quase apenas por indígenas, o avanço de pecuaristas e, depois, de garimpeiros expulsos da Terra Yanomami, levaram ao início da campanha pela contenção das invasões à “Raposa”, e por sua demarcação.
No processo, 21 líderes indígenas foram impunemente assassinados. Em 2005 a demarcação foi homologada e desde então os cerca de 19 mil índios, de 5 povos (Makuxi, Wapixana, Taurepang, Patamona e Ingarikó), distribuídos em 194 comunidades (“malocas”) e articulados no Conselho Indígena de Roraima – CIR, aguardam a remoção dos invasores remanescentes: 06 plantadores de arroz.
Às vésperas da operação da Polícia Federal (“Upatakon 3”) destinada a remover tais invasores, o CIR e entidades indigenistas passaram a denunciar uma nova série de atos de vandalismo, agressões e ameaças de morte às lideranças indígenas. Assassinos pagos eram contratados em Manaus (AM) e na Venezuela e, em troca de promessas de emprego e dinheiro, pessoas pobres eram treinadas a detonar explosivos contra os índios e policiais federais.
Mas a opinião pública foi bombardeada pela insinuação de que o aparato criminoso montado pelos “arrozeiros” seria legítimo porque a “criação” da “reserva”, além de “dar muita terra para” os índios, poria em risco a segurança nacional.
Concomitante à chantagem dos invasores, o Governo de Roraima impetrou no STF uma ação cautelar para suspender todos os atos de desocupação da área, até o julgamento do mérito de uma das várias ações já propostas contra a sua demarcação.
Em 09 de abril, em meio às ameaças dos “arrozeiros”, o Supremo concedeu a medida liminar suspendendo a remoção por tempo indeterminado. O Relator, ministro Ayres Britto, considerou a situação de aparente “conflagração”, os alegados riscos para “a segurança e a ordem pública”, a questão relativa à “defesa da soberania nacional” (dado tratar-se de faixa de fronteira), e o alegado risco de comprometimento da economia local. Desde então fala-se na tendência da Corte em rever a demarcação como “área contínua”, para determinar a sua divisão em “ilhas”.
Nos cinco séculos do processo que levou à construção do Estado Brasileiro, assistiu-se ao genocídio de 5 milhões de indígenas, com os quais desapareceram cerca de 1.477 grupos étnicos diferentes. Essa trajetória de intolerância e morte, que sempre pautou as ações de governos e sociedade em relação aos povos indígenas, só foi rompida formalmente com o histórico salto dado no processo constituinte de 1987/1988.
Ali os 241 povos indígenas sobreviventes obtiveram o reconhecimento do direito fundamental às suas identidades próprias (como Makuxi, Ingarikó, etc.). Foram repudiadas as perspectivas incorporativistas ou assimilacionistas, prenhes dos germes do genocídio. Ao mesmo tempo, estes povos lograram o reconhecimento do caráter
Rosane Lacerda é advogada indigenista, Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB, membro dos grupos de pesquisa “Sociedade, Tempo e Direito” e “O Direito Achado na Rua”, e professora universitária.
Blog do PPG Direito Unisinos, 02/06/2008.