Relator do processo sobre a reserva Raposa Serra do Sol, ministro diz ter enfrentado o próprio preconceito
O julgamento sobre a demarcação da Raposa Serra do Sol foi bastante polêmico. O senhor já tinha um posicionamento antes de ser relator?
Não, vou contar a pura verdade. Quando eu comecei com meu voto, a minha cabeça era "de branco". Então, já fui dizendo aquilo mesmo: "Como é que se reserva tanta terra para índio?"; ou então: "Os índios fazem parte de uma cultura primitiva e os não índios de uma cultura evoluída". Comecei assim, me pegando preconceituoso. Às vezes a gente pensa que não tem preconceito, mas tem. Está lá no fundo da gente. A minha cultura me impunha esse condicionamento, de ver os índios como seres inferiores, à espera de tutela, como se fossem incapazes. Mas à medida que eu ia lendo a Constituição, palavra por palavra, termo por termo, expressão por expressão, eu, que tinha a obrigação de ser um militante da Constituição, fui percebendo que o capítulo versante sobre os índios foi feito por antropólogos e indigenistas de grande conhecimento. A Constituição é um sonoro não a essa cultura do branco. O que ela diz é que há duas civilizações. A do branco e a do índio. Há duas dignidades.
No seu voto, o senhor falou que os índios têm o direito de nos catequizar. O senhor foi catequizado por eles?
Sim, exatamente isso. A aculturação é uma estrada de mão dupla. Não é só o índio nos conhecer para aprender conosco. É a gente conviver com os índios para aprender com eles. Para a Constituição, a aculturação é uma soma, um ganho, uma justaposição. O índio aculturado ganha a cultura do branco sem perder sua cultura. O branco que convive com os índios aprende com eles. Eu fui aprendendo aos pouquinhos. Refletindo, estudando, indo atrás das coisas. Eu comecei Buffalo Bill e terminei Touro Sentado. Foi assim que o meu voto começou e terminou. Terminou por um modo diametralmente oposto de como começou. Para os índios, a terra não é um bem. Para eles, a terra não é uma coisa, é um ser, é um espírito protetor. A Constituição diz: "Os índios não podem ser removidos de suas terras, a não ser diante de uma grave calamidade". Na cabeça do índio é o seguinte: "Não adianta me pagar pela terra". Ele não quer ser indenizado nem reassentado. No imaginário do índio, ele pensa: "Eu vou sair daqui, mas meus ancestrais vão ficar". Então é uma violência para eles.
Com a aprovação da condicionante do ministro Menezes Direito, que impede a revisão de demarcações já feitas, como ficam os outros processos já impetrados no STF?
Na realidade, as 19 cláusulas foram uma inovação de forma, e não conteudística. Já estavam no meu voto e na Constituição. O Menezes Direito me disse várias vezes: "Britto, estudei, estudei, estudei, e nossos votos são rigorosamente convergentes. Em tudo. Apenas, eu vou inovar na técnica". E eu aplaudi. Ele é um ministro muito culto, muito preparado. E ele foi muito elegante quando sugeri a ele uma nova redação àquelas cláusulas. Ele acatou com uma elegância, tudo ele acatou. No conteúdo, nossos votos convergiram. Mas essa número 17 foi novidade. Ele disse o seguinte: que demarcação indígena, uma vez feita, está ungida e sacramentada, e nunca mais pode ser revista judicialmente. Eu discordei, mas fui voto vencido. Tentei ainda estabelecer um limite temporal. Demarcação feita depois da Constituição não se mexe, mas as de antes? É preciso se mexer, para assegurar aos índios a reprodução física e cultural. Mas fui voto vencido.
E o que ocorre com outros processos que já estão no Supremo, como o dos Pataxó Hã-hã-hãe?
Aí é que está. Ao levar ao pé da letra essa decisão, essa cláusula, não se reabre a discussão. Tenho esperança ainda de reverter. A Raposa Serra do Sol exaltou muitos ânimos, mas numa outra oportunidade acho que os ministros que apoiaram Menezes podem rediscutir isso, diante de um caso concreto de vistosa contração territorial em desfavor dos índios.
CB, 06/04/2009, Brasil, p.6