Voto do ministro relator pela demarcação contínua da TI Raposa Serra do Sol

Autor: 
Carlos Ayres Britto
Data de publicação: 
27/08/2008
Fonte: 
STF

RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO -(Relator):

Trata-se de ação popular contra a União, ajuizada em 20 de maio de 2005. Ação da autoria do senador da República Augusto Affonso Botelho Neto, portador do título eleitoral de nº 5019026-58. Assistido ele, autor popular, pelo também senador Francisco Mozarildo de Melo Cavalcanti, identificado pelo título de eleitor de nº 1892226-74 (fls. 287/290).

2. De pronto, esclareço que o processo contém 51 (cinqüenta e um) volumes, sendo que a inicial impugna o modelo contínuo de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, situada no Estado de Roraima. Daí o pedido de suspensão liminar dos efeitos da Portaria nº 534/2005, do Ministro de Estado da Justiça, bem como do Decreto homologatório de 15.04.2005, este do Presidente da República. No mérito, o que se pede é a declaração de nulidade da mesma portaria.

3. Para atingir seu objetivo, o autor popular junta cópia de um laudo pericial já constante de uma outra ação popular, ajuizada perante a Justiça Federal de Roraima. Refiro-me ao Processo nº 1999.42.00.000014-7, extinto sem apreciação do mérito, por efeito do julgamento da Reclamação 2.833. Como faz a juntada, por aditamento à petição inicial, de cópia do “Relatório parcial da Comissão Temporária Externa do Senado Federal sobre demarcações de terras indígenas”. Relatório elaborado em 2004.

4. É assim baseado nesses documentos que o requerente sustenta que a portaria em tela mantém os vícios daquela que a antecedeu (a de nº 820/98). Vícios que remontam ao processo administrativo de demarcação, que não teria respeitado as normas dos Decretos nos 22/91 e 1.775/96. Alega, nesse ponto, que não foram ouvidas todas as pessoas e entidades afetadas pela controvérsia, e que o laudo antropológico sobre a área em questão foi assinado por apenas um profissional (Dra. Maria Guiomar Melo), o que seria prova de uma presumida parcialidade. Tese que é robustecida com a alegação de fraudes e insuficiências múltiplas nos trabalhos que redundaram na demarcação em causa.

5. A título de novo reforço argumentativo, foi argüido que a reserva em área contínua traria conseqüências desastrosas para o Estado roraimense, sob os aspectos comercial, econômico e social. Quanto aos interesses do País, haveria comprometimento da segurança e da soberania nacionais. Tudo a prejudicar legítimos interesses dos “não-índios”, pessoas que habitam a região há muitos anos, tornando-a produtiva no curso de muitas gerações.

6. Por último, argumenta o autor que haveria desequilíbrio no concerto federativo, visto que a área demarcada, ao passar para o domínio da União, mutilaria parte significativa do território do Estado. Sobremais, ofenderia o princípio da razoabilidade, ao privilegiar a tutela do índio em detrimento, por exemplo, da livre iniciativa.

7.Prossigo nesse reavivar dos fatos para dizer que a ação foi proposta neste Supremo Tribunal Federal por motivo do julgamento proferido na Reclamação nº 2.833. Ocasião em que ficou decidido competir “a esta Casa de Justiça apreciar todos os feitos processuais intimamente relacionados com a demarcação da referida reserva indígena” (Raposa Serra do Sol).

8.Dito isso, averbo que indeferi a liminar. Decisão que foi confirmada no julgamento do subseqüente agravo regimental.

9.Na seqüência, a União apresentou sua defesa (fls. 309/328, Volume 2), rebatendo − um a um − os fundamentos articulados na inicial. Antes, porém, a ré fez um levantamento histórico da ocupação indígena em toda a região, paralelamente à evolução legislativa sobre o assunto, desde o Brasil-colônia.

10.Para além de tudo isso, a contestante, dizendo-se respaldada pelo art. 231 e parágrafos da Carta Magna, arrematou o seu raciocínio com o juízo de que “não é o procedimento demarcatório que cria uma posse imemorial, um habitat indígena, mas somente delimita a área indígena de ocupação tradicional, por inafastáveis mandamentos constitucionais e legais”. Donde o seguinte acréscimo de idéias: a) não há lesão ao patrimônio público; b) o autor não comprovou a ocorrência dos vícios apontados na inicial; c) a diferença de 68.664 hectares, detectada entre a área da Portaria nº 820/98 e a da Portaria nº 534/2005, “é perfeitamente comum e previsível nas demarcações”.

11.Anoto, agora, que as partes não requereram outras provas (fls. 361/362) e somente a União ofereceu razões finais de fls. 368/387.

12.Ato contínuo, o processo foi remetido à Procuradoria-Geral da República, de cuja análise retornou em 28.04.2008 e com parecer pela improcedência da ação (fls. 390/406). Parecer cujos fundamentos estão sintetizados na seguinte ementa:

“Petição. Ação Popular. Ato de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e respectiva homologação. Delineamento do modelo constitucional atual em relação aos índios. Necessidade de demarcação das áreas tradicionalmente ocupadas pelas comunidades indígenas, como a de que tratam os autos, para a preservação de sua tradição e cultura. Distinção entre o conceito de posse indígena e aquela do Direito Civil. Legitimidade do procedimento administrativo de que decorreram os autos questionados, regido por decreto específico. Estudo antropológico realizado por profissional habilitado para tanto. Respeito ao contraditório e à ampla defesa. Risco à soberania nacional que, se existente não possui imediata implicação com o modelo de respeito ao direito de posse dos indígenas, no que diz com o elemento geográfico, havendo de ser avaliado e, se for o caso, eliminado por mecanismos outros de proteção. Abalo à autonomia do Estado de Roraima elidida pelo caráter originário e anterior do direito dos indígenas. Processo natural em território que sempre contou com a presença de numerosos grupos indígenas. Parecer pela improcedência do pleito.”

13. Acresce que, somente em 05.05.2008, quando já encerrada a instrução do processo, compareceu a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) para requerer “seu ingresso no feito na qualidade de juridicamente interessada” (petição nº 62.154). Para o que anexou, por meio da petição nº 66.162, cópias de numerosos documentos (processos administrativos, fotografias, mapas e relatórios), pugnando, em nada menos que 35 (trinta e cinco) laudas, pela improcedência do pedido inicial. Oportunidade em que perfilhou o entendimento da União, revitalizando-lhe os fundamentos. No conjunto, os documentos apresentados pela FUNAI compuseram os volumes de nos 2 a 19, fls. 412/4.939 e 4.942/5.136.

14. Dois dias depois (07.05.2008), foi a vez de o Estado de Roraima fazer idêntico movimento, na outra ponta do processo (petição nº 64.182). Pelo que, ao cabo de 120 (cento e vinte) laudas de minuciosa exposição e escorado em abundantes cópias de documentos, aquela unidade federativa também requereu “seu ingresso no feito, na condição de autor, ante a existência de litisconsórcio necessário..., possibilitando, assim, a defesa de seu patrimônio” (fls. 5.138/9.063, Volumes 20/36). Defesa que animou o peticionário a fazer um retrospecto de todos os atos e episódios que confluíram para a demarcação, de forma contínua, da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Tudo a compor um processo administrativo que estaria crivado de nulidades formais e materiais, já apontadas na inicial.

15. Não é só. O Estado roraimense houve por bem agregar novos fundamentos à causa do autor popular e seu assistente, assim resumidos: a) inconstitucionalidade do Decreto nº 22/91; b) nulidade da ampliação da área indígena, cuja demarcação demandaria feitura de lei; c) impossibilidade de superposição de terras indígenas e parques nacionais; d) ofensa ao princípio da proporcionalidade; e) necessidade de audiência do Conselho de Defesa Nacional; f) impossibilidade de desconstituição de Municípios e títulos de propriedade, por meio de simples decreto presidencial.

16.Nessa mesma toada de intermináveis dissensos é que foram assestados novos pedidos, aplicáveis a “qualquer demarcação de terras indígenas”,a saber: a) adoção da forma descontínua, ou “em ilhas”; b) exclusão das sedes dos Municípios de Uiramutã, Normandia e Pacaraima; c) exclusão da área de 150Km, referente à faixa de fronteira; d) exclusão de imóveis com posse ou propriedade anteriores a 1934 e de terras tituladas pelo INCRA antes de 1988; e) exclusão de rodovias estaduais e federais, bem como de plantações de arroz, de áreas de construção e inundação da Hidrelétrica de Cotingo e do Parque Nacional de Monte Roraima. Imprescindível anotar que tais postulações fazem parte das causas de pedir do autor, a exigir uma única solução jurídica: a nulidade da portaria do Ministério da Justiça.

17.Por último, o Estado requereu a expedição de ordem à União para que ela se abstivesse “de demarcar qualquer outra área no território do Estado de Roraima, a qualquer título, ou seja, indígena, ambiental etc.”

18. Passo a averbar que, nos dias 13, 14 e 16 do mês de maio do fluente ano, também acorreram ao processo Lawrence Manly Harte e outros (petição nº 67.733), a Comunidade Indígena Barro e outras (petição nº 68.192) e, bem assim, a Comunidade Indígena Socó (petição nº 70.151). Os primeiros, com a finalidade de integrar o pólo ativo da ação (fls. 9.607/9.730, volumes 38/39). Já as comunidades indígenas, o que elas pretendem é se colocar no pólo passivo da demanda (fls. 9.066/9.604, volumes 36/38 e fls. 9.732/9.769, volume 39). Todos eles, requerentes, louvados em fundamentos que, de uma forma ou de outra, já constavam dos autos.

19. Seja como for, o certo é que, no tocante a esses novos pedidos de ingresso no feito, determinei abertura de vista às partes originárias do processo, sobrevindo o pronunciamento apenas da União (fls. 9.783/9.971, volume 39). Pronunciamento no sentido de admitir o ingresso da FUNAI e das comunidades indígenas há pouco referidas, nada dizendo, contudo, sobre o pedido de Lawrence Manly Harte e outros.

20. Já no que toca ao requerimento do Estado de Roraima, a União entende que ele é de ser desentranhado dos autos, juntamente com os respectivos documentos, por veicular pedidos e causas de pedir não oportunamente submetidos ao contraditório, o que significa descabida inovação da lide. Haveria, portanto, a “impossibilidade do ingresso do Estado ao processo como litisconsorte ativo necessário”. Mesmo porque, se isso acontecesse, o feito teria de voltar à “estaca zero”, com a abertura de novo prazo para defesa.

21.Quando muito − já num segundo momento −, a União assente com a admissão do Estado de Roraima, contanto que “na condição de assistente litisconsorcial, recebendo o processo na fase em que se encontra, não mais podendo formular novos pedidos ou juntar documentos, tudo em respeito ao princípio da eventualidade e sob pena, repita-se, de nulidade do processo.”

22.Como ponto de arremate, a União repisa os fundamentos que aportou em sua contestação e razões finais.

23. Registro, agora, que, nos termos do art. 232 da Constituição Federal, abri vista ao Ministério Público Federal de todos os pedidos de ingresso na lide. Do que resultou a manifestação de fls. 9.975/9.977 (Volume 39), no sentido de acatar os fundamentos dos requerentes e, conseqüentemente, reconhecer seu interesse jurídico no desfecho da causa.

24. Muito bem. Sob esse dilargado histórico dos autos, o que se tem como derradeira constatação é o surgimento de múltiplas questões processuais quando já encerrada a instrução do feito. Refiro-me aos pedidos de ingresso na lide, formalizados a partir de 05.05.2008. Data em que já se encontrava suficientemente maduro o processo para julgamento por este Plenário, o que me levou a considerar como temerária a atuação solitária do relator para decidir sobre tantos e tão subitâneos pedidos. Decisão solitária que, seguramente, ensejaria a interposição de recurso pelas partes que se sentissem prejudicadas, de modo a retardar, ainda mais, uma definitiva prestação jurisdicional em causa de grande envergadura constitucional e sabidamente urgente. Por isso que, antes mesmo da apreciação do mérito da ação, encaminho ao Plenário, em questão de ordem, o exame de todo esse entrecruzar de pedidos de ingresso no feito.

Exame que servirá, além do mais, para a definição daqueles atores que poderão fazer sustentação oral.

É o relatório.

VOTO
QUESTÃO DE ORDEM

O BRITTO -(Relator): SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES

(...)

VOTO

O BRITTO -(Relator): SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES

36.Resolvida a questão de ordem, imperioso é confirmar a incomum relevância político-social desta causa, toda ela a suscitar investigações teóricas e apreciações empíricas da mais forte compleição constitucional. Por isso que principio por remarcar o seguinte: a competência originária desta Suprema Corte para o caso vertente foi reconhecida quando do julgamento da Reclamação 2.833. Ocasião em que ficou assentada a natureza federativa do conflito entre partes, de modo a deflagrar a incidência da alínea f do inciso I do art. 102 da Constituição Federal.

37.Isto remarcado, o que se me impõe é ajuizar que a demarcação de qualquer terra indígena se faz no bojo de um processo administrativo que tem suas fases disciplinadas a partir da Constituição e passando tanto pela Lei nº 6.001/73 (Estatuto do Índio) quanto pelo Decreto nº 1.775/96, que alterou o Decreto nº 22/91. Fases processuais que assim se desdobram: a) identificação e delimitação antropológica da área; b) declaração da posse permanente, por meio de portaria do Ministro de Estado da Justiça; c) demarcação propriamente dita; ou seja, assentamento físico dos limites, com a utilização dos pertinentes marcos geodésicos e placas sinalizadoras; d) homologação mediante decreto do Presidente da República; e) registro, a ser realizado no Cartório de Imóveis da comarca de situação das terras indígenas e na Secretaria do Patrimônio da União.

38.Feita essa tomada de cena procedimental, afunilo o retrospecto da causa para a Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Isto para anotar que o primeiro documento merecedor de observação é a Portaria nº 820, de 11.12.98, do Ministro de Estado da Justiça. Deram-lhe suporte o Despacho nº 009/93, do Presidente da FUNAI, bem como o Despacho nº 50/98, do mesmo órgão ministerial, que julgou improcedentes todas as contestações opostas à identificação e à delimitação da área sob comento, então com superfície aproximada de 1.678.800 hectares.

39. Sete anos depois, foi publicada a Portaria nº 534/2005, que ratificou, com ressalvas, a de nº 820/98. Agora com a superfície fixada em 1.743.089 hectares,a abranger os municípios de Normandia, Pacaraima e Uiramutã. Tal declaração de posse permanente favorece as etnias indígenas Ingarikó, Makuxi, Patamona, Taurepang e Wapixana, e alcança, ao norte, o marco “localizado sobre o Monte Roraima, na trijunção das fronteiras Brasil/Venezuela/Guiana”. Portaria que, dado seu conteúdo, corretamente afasta o conhecimento da ação quanto a questões que já não antagonizam as causas de pedir dos acionantes e os termos do ato editado pelo Ministro da Justiça. Refiro-me à pretensão autoral de excluir da área demarcada o 6º Pelotão Especial de Fronteira (6º PEF), o núcleo urbano da sede do Município de Uiramutã (a sede do município de Normandia já estava do lado de fora da demarcação desde a portaria nº 820/98), os equipamentos e instalações públicos federais e estaduais atualmente existentes, mais as linhas de transmissão de energia elétrica e os leitos das rodovias públicas federais e estaduais que também existem nos dias presentes. Como tais pretensões já se encontram atendidas, não conheço do pedido, no ponto. É como dizer: sinto-me desobrigado de entrar na discussão sobre a possibilidade de um decreto federal extinguir Municípios, pois o fato é que nenhum deles foi extinto por ato do Presidente da República. Sem falar que o ato em si de demarcação de terras indígenas não significa varrer do mapa qualquer unidade municipal, já que não se pode confundir (veremos isso) titularidade de bens com senhorio de um território político. Ademais, é de todo natural que o município de Uiramutã seja ocupado por índios em quase sua totalidade, porquanto, ali, mesmo no censo anterior à reclamada extrusão, os índios somavam 90% da população local. E quanto à sede do município de Pacaraima, cuida-se de território encravado na “Terra Indígena São Marcos”, nada tendo a ver, portanto, com a presente demanda.

40. Avanço ainda um tanto na elucidação do feito para assentar que, pelo art. 3º da Portaria nº 534/2005, a terra indígena, “situada na faixa de fronteira, submete-se ao disposto no art. 20, § 2º, da Constituição”.

Ela se estende por uma área “considerada fundamental para defesa do território nacional, e sua ocupação e utilização serão reguladas em lei”. Peculiaridade cujo exame retomarei mais à frente, já em condições de me aprofundar pelos domínios do Direito Constitucional, no tema.

41. Por ora, o que me parece de todo recomendável é passar em revista os precedentes deste nosso STF em matéria de demarcação de terra indígena. Sendo certo que, neste ponto, minha lente de observação também se movimenta do geral para o particular. Quero dizer: após resgatar alguns julgados sobre casos similares, farei remissão à ADI 1.512 e ao MS 25.483, que, em certa medida, trataram especificamente da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Após o que, afastados os questionamentos periféricos, terei o ensejo de submeter as matérias de fundo àquilo que se me afigurar como coordenadas genuinamente constitucionais de irrecusável aplicabilidade.

42. Esta a razão pela qual inicio com a invocação do RE 183.188, da relatoria do ministro Celso de Mello, que dizia respeito à Comunidade Indígena de Jaguapiré, do Mato Grosso do Sul. Já nesse precedente,

de 10.12.96, ficou assentado que “a disputa pela posse permanente e pela riqueza das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios constitui o núcleo fundamental da questão indígena no Brasil.” Reconheceu-se, ainda, que a demarcação administrativa homologada pelo Presidente da República é “ato estatal que se reveste da presunção juris tantum de legitimidade e de veracidade”.

Bem mais tarde, mais exatamente em 28.04.2005, ao julgar o MS 24.045, da relatoria do ministro Joaquim Barbosa, o Plenário do Supremo Tribunal Federal consignou que, “ao estabelecer procedimento diferenciado para a contestação de processos demarcatórios que se iniciaram antes de sua vigência, o Decreto 1.775/1996 não fere o direito ao contraditório e à ampla defesa”. Tal mandado de segurança referia-se às terras indígenas da Tribo Xucuru, em Pernambuco.

Fechando ainda mais o ângulo visual da pesquisa sobre os nossos julgados internos, deparo-me com o caso mais emblemático de todos, porque inaugural da discussão sobre a Reserva Indígena Raposa Serra do Sol e antecipador das controvérsias que adviriam da respectiva demarcação. Refiro-me à Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.512, da relatoria do ministro Maurício Corrêa, por meio da qual o Procurador-Geral da República impugnou as leis nºs 96 e 98, do Estado de Roraima, ambas de 1995, que instituíram os Municípios de Pacaraima e Uiramutã. A impugnação ficou adstrita à parte em que se determinou que as sedes dos Municípios então criados seriam instaladas nas vilas com os mesmos nomes. Vilas localizadas, respectivamente, na terra indígena São Marcos e na Raposa Serra do Sol.

45. Certo que a mencionada ADI não foi conhecida pelo Tribunal, em função da impropriedade do processo objetivo para a solução da lide, que exigia “a apuração de um estado de fato concreto e contraditório.” Entretanto, esse julgamento teve a grande virtude de levantar os antecedentes antropológicos que bem ilustram a história da região, evidenciando o trabalho desenvolvido por Joaquim Nabuco, nos idos de 1903 a 1904, e pelo Marechal Cândido Rondon, no ano de 1927, na defesa das fronteiras brasileiras e no estudo dos povos indígenas.

46. Registre-se, agora, que o eminente relator, no seu minucioso voto, retrocedeu aos idos de 1768 para retratar os fatos relacionados com a ocupação das áreas do atual Estado de Roraima, concluindo que é muito antigo o debate em torno da forma de demarcação da citada reserva: se contínua, ou insular. No ponto, entendo que a preocupação do Ministro Maurício Corrêa com a inevitabilidade de um “grande contencioso” para deslindar o caso guarda conformidade com os receios que vocalizei ao relatar o MS 25.483, afinal denegado, na parte em que foi conhecido.

47. Pronto! Aplainado o terreno para o enfrentamento das questões propriamente jurídicas da causa, passo ao núcleo do meu voto. O que faço pela nominação de tópicos ou segmentos temáticos, para um mais facilitado acompanhamento da incursão que passo a empreender pelos domínios cognitivos da Constituição Federal. Viagem em demanda de um conhecimento que para se desprender limpidamente do Magno Texto Federal reclama do intérprete/aplicador o descarte de formas mentais aprioristicamente concebidas. Uma decidida postura de auto-imposição de carga ao mar com tudo que signifique pré-compreensão intelectual de um tema – esse da área indígena Raposa Serra do Sol – sobre o qual profundamente divergem cientistas políticos, antropólogos, sociólogos, juristas, indigenistas, oficiais das Forças Armadas, ministros de Estado, pessoas federadas, ONG’s e igrejas. Razão de sobra para que busquemos na própria Constituição, e com o máximo de objetividade que nos for possível, as próprias coordenadas da demarcação de toda e qualquer terra indígena em nosso País.

Os índios como tema de matriz constitucional

Pois bem, com este declarado propósito investigativo, devo ajuizar que os índios brasileiros têm na Constituição Federal de 1988 uma copiosa referência. Referência tão copiosa quanto qualificada, ajunte-se, a ponto de se traduzir na abertura de todo um capítulo constitucional exclusivamente para eles, sob o mais decidido intuito de favorecê-los. Cuida-se do “Capítulo VIII” do título também de nº VIII, dedicado este à “Ordem Social”.

O capítulo em causa é denominado, por direta enunciação vernacular, “Dos Índios”. Vai do art. 231 ao 232, o primeiro deles a se decompor em sete (7) parágrafos. Logo, estamos a lidar com um bloco normativoconstitucional que abarca nada menos que nove (9) dispositivos ou preceitos. Confira-se:

“Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º -São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º -As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

§ 3º -O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

§ 4º -As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

§ 5º -É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

§ 6º -São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.

§ 7º -Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.

Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”1 .

50. De parelha com esses 9 (nove) centrados dispositivos, a Constituição aporta outros 9 (nove) comandos esparsos sobre o mesmo tema dos índios brasileiros, como teremos o ensejo de identificar e sobre todos eles discorrer ao longo do presente voto. Comandos esparsos que ora excepcionam, ora complementam o focado capítulo de nº VIII, como também demonstraremos no curso desta nossa empreitada de interpretação/aplicação de Direito Constitucional. Tudo a exigir, portanto, compreensão rigorosamente sistêmica ou contextual da nossa Lei Republicana sobre o tema de que nos ocupamos.

O significado do substantivo “índios”

51.Diga-se em continuidade que o substantivo plural “índios” foi recolhido pela Constituição com o mesmo sentido que a palavra tem em nossa linguagem coloquial. Logo, o termo traduz o coletivo de índio, assim entendido o “Indígena da América” (Enciclopédia e Dicionário Koogan e Houaiss da língua portuguesa, Edições Delta, 1994). Saltando à evidência que indígena da América não pode ser senão o “nativo”, o “aborígine”, o “autóctone”, na acepção de primitivo habitante desse ou daquele País americano. Isso por diferenciação com os principais contingentes humanos advindos de outros países ou continentes, ora para atuar como agentes colonizadores, ora para servir de mão-de-obra escrava, como, no caso do Brasil, os portugueses e os africanos, respectivamente.

52.Acrescente-se que, versado assim por modo invariavelmente plural, o substantivo “índios” é usado para exprimir a diferenciação dos nossos aborígines por numerosas etnias. Compreendendo-se por etnia todo “Grupamento humano homogêneo quanto aos caracteres lingüísticos, somáticos e culturais” (conforme Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, Ministério da Educação e Cultura, Rio de Janeiro, ano de 1983). No caso brasileiro, etnias aborígines que se estruturam, geograficamente, sob a forma de aldeias e, mais abrangentemente, vilarejos. Aldeias e vilarejos em cujo interior se constroem suas habitações (por vezes chamadas de “ocas”) e se relacionam tribos, comunidades, populações. Não sendo por outra razão que o art. 231 fala de “línguas” indígenas” (esse primeiro traço de identidade de cada etnia) e o art. 232 saca de expressões como “os índios e suas comunidades e organizações”. Isso de parelha com o fraseado “ouvidas as comunidades afetadas”, constante do § 3º do art. 231, revelador do propósito constitucional de retratar uma diversidade aborígine que antes de ser interétnica é, sobretudo, intraétnica.

Os índios como parte essencial da realidade política e cultural brasileira

53. É cada qual dessas etnias indígenas e suas particularizadas formas de organização social que se põem como alvo dos citados arts. 231 a 232, sem prejuízo da idéia central de que todas elas reunidas compõem um segmento ainda maior; um verdadeiro macro-conjunto populacional-aborígine que se vem somar àqueles constitutivos dos afro-descendentes e dos egressos de outros países ou continentes (a Europa portuguesa à frente). Dando-se que todos esses grandes conjuntos ou grupos humanos maiores são formadores de uma só realidade política e cultural: a realidade da nação brasileira. Entendida por nação brasileira essa espécie de linha imaginária que ata o presente, o passado e o futuro do nosso povo. É dizer, povo brasileiro como um só continente humano de hoje, de ontem e de amanhã, a abarcar principalmente os três elementares grupos étnicos dos indígenas, do colonizador branco e da população negra. É o que se infere dos seguintes dizeres constitucionais:

I –“O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional” (§ 1º do art. Do art. 215);

II – “A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes grupos étnicos nacionais” (§ 2º do art. 215);

III –“Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (...)” (art. 216, cabeça);

IV – “O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro” (§ 1º do art. 242).

54. Esses e outros dispositivos constitucionais, adiante indicados, são as âncoras normativas de que nos valemos para adjetivar de brasileiros os índios a que se reportam os arts. 231 e 232 da Constituição. Não índios estrangeiros, “residentes no País”, porque para todo e qualquer estrangeiro residente no Brasil já existe a genérica proteção da cabeça do art. 5º da nossa Lei Maior (“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (...)”. Assumindo tal qualificação de pessoas naturais brasileiras, ressalte-se, decisivas conseqüências hermenêuticas para a compreensão do tema da demarcação das terras indígenas, pois as “organizações”, “comunidades” e “populações” a que se refere o inciso V do art. 129 da Magna Carta Federal são constituídas de coletividades humanas genuinamente nacionais, todas alocadas em solo pátrio.

As terras indígenas como parte essencial do território brasileiro

55. Deveras, todas “as terras indígenas” versadas pela nossa Constituição fazem parte de um território estatalbrasileiro sobre o qual incide, com exclusividade, o Direito nacional. Não o Direito emanado de um outro Estado soberano, tampouco o de qualquer organismo internacional, a não ser mediante convenção ou tratado que tenha por fundamento de validade a Constituição brasileira de 1988.

[sic.] 58. Mais claramente falando, cada terra indígena de que trata a Constituição brasileira está necessariamente encravada no território nacional. Todas elas são um bem ou propriedade física da União, conforme os seguintes dizeres constitucionais: “Art. 20. São bens da União: (...) XI – as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”. E como tudo o mais que faz parte do domínio de qualquer das pessoas federadas brasileiras, submetem-se unicamente ao primeiro dos princípios regentes das nossas relações internacionais: a soberania ou “independência nacional” (inciso I do art. 1º da CF). Sendo que, entre nós, a figura jurídica da soberania nacional se manifesta:

I – no plano territorial interno, pelo esquema federativo da divisão do poder de governar e de criar primariamente o Direito entre as ordens jurídicas da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios (caput do art. 1º, combinadamente com a cabeça do art. 18 da Constituição, a saber: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal (...)”; “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios (...)”;

II – no plano territorial externo, pela exclusiva representação jurídica da União, de acordo com a seguinte dicção constitucional: “Art. 21. Compete à União: I – manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais”. Dando-se que tal representação é de se formalizar por atos que tenham por suporte de validade a própria Constituição brasileira, a partir das seguintes e categóricas normações: “Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: I – resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”; “Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (...) VIII – celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional”.

59. Assente, pois, que terras indígenas se inscrevem entre os bens da União, e, nessa medida, são constitutivas de um patrimônio cuja titularidade não é partilhada com nenhum outro sujeito jurídico, seja de direito público interno, seja de direito público externo, nem por isso os índios nelas permanentemente situados deixam de manter vínculos jurídicos com os Estados e Municípios que as envolvam. Como sucede, aliás, com toda população radicada no território brasileiro, a entretecer com a União e os nossos Estados e Municípios (além do Distrito Federal, conforme o caso) relações jurídicas tanto de proteção como de controle, notadamente nos setores da saúde, educação, meio ambiente e segurança pública, aqui embutidas as atividades de defesa civil.

60. Afirme-se, porém, que nenhuma terra indígena se eleva ao patamar de pessoa político-geográfica. Isto a partir da singela, mas robusta proposição de que o regramento constitucional-topográfico de todas elas se deu no título versante sobre a “Ordem Social” (título de nº III). Não no título devotado à “Organização do Estado”, que é, precisamente, o título constitucional de nº III. Tampouco no título constitucional de nº IV, alusivo à “Organização dos Poderes” de cada qual das pessoas estatais federadas. Numa frase, terra indígena é categoria jurídicoconstitucional, sim, mas não instituição ou ente federado. O necessário controle da União sobre os Estados e Municípios, sempre que estes atuarem no próprio interior das terras já demarcadas como de afetação indígena

61.Também é de se afirmar, com todo vigor, que a atuação complementar de Estados e Municípios em terras já demarcadas como indígenas há de se fazer em regime de concerto com a União e sob a liderança desta. É que subjaz à normação dos artigos 231 e 232 da Constituição Federal o fato histórico de que Estados e Municípios costumam ver as áreas indígenas como desvantajosa mutilação de seus territórios, subtração do seu patrimônio e sério obstáculo à expansão do setor primário, extrativista vegetal e minerário de sua economia. Donde a expedição, por eles (Estados e Municípios), dos títulos de legitimação fundiária a que se referiu o ministro Maurício Correia no bojo da ADIN 1.512, favorecedores de não-índios. Tanto quanto a práxis das alianças políticas de tais unidades federadas com agropecuaristas de porte, isolada ou conjugadamente com madeireiras e empresas de mineração, sempre que se põe em debate a causa do indigenato. Pelo que, entregues a si mesmos, Estados e Municípios, tanto pela sua classe dirigente quanto pelos seus estratos econômicos, tendem a discriminar bem mais do que proteger as populações indígenas. Populações cada vez mais empurradas para zonas ermas ou regiões inóspitas do País, num processo de espremedura topográfica somente rediscutido com a devida seriedade jurídica a partir, justamente, da Assembléia Constituinte de 1987/1988.

62. É nesse panorama histórico-normativo que toma vulto a competência constitucional da União para demarcar, proteger e fazer respeitar todos os bens situados nas terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas (cabeça do art. 231), pois se trata de competência a ser exercitada também contra os Estados e Municípios, se necessário. Não só contra os não-índios. Donde as seguintes afirmações de Vincenzo Lauriola, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), a respeito, precisamente, da área indígena Raposa Serra do Sol: “O Estado enquanto instituição está personificado por grupos de poder oligárquicos anti-indígenas”. “Para entender o ponto de vista dos índios, é preciso aceitar que eles não se relacionam com as instituições, mas com as pessoas. Com o governo local, eles estão há 30 anos em luta” (vide Boletim Informativo do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, n. 12, pp. 21/29).

63. Seja como for, é do meu pensar que a vontade objetiva da Constituição obriga a efetiva presença de todas as pessoas federadas em terras indígenas, desde que em sintonia com o modelo de ocupação por ela concebido. Modelo de ocupação que tanto preserva a identidade de cada etnia quanto sua abertura para um relacionamento de mútuo proveito com outras etnias indígenas e grupamentos de não-índios. Mas sempre sob a firme liderança institucional da União, a se viabilizar por diretrizes e determinações de quem permanentemente vela por interesses e valores a um só tempo “inalienáveis”, “indisponíveis” e “imprescritíveis” (§ 4º do artigo constitucional de n º 231). Inalienabilidade e indisponibilidade, como forma de proteção das terras indígenas. Imprescritibilidade, como forma de proteção dos direitos dos índios sobre elas. Ainda que o eventual opositor desses direitos seja um Estado Federado, ou, então, Município brasileiro, conforme um pouco mais à frente melhor demonstraremos. Sendo que o papel de centralidade institucional que é desempenhado pela União não pode deixar de ser imediatamente coadjuvado pelos próprios índios, suas comunidades e organizações, além da protagonização de tutela e fiscalização do Ministério Público, a teor dos seguintes dispositivos constitucionais:

“Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”.

“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I – (...)

V – defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas”

As terras indígenas como categoria jurídica distinta de territórios indígenas. O desabono constitucional aos vocábulos “povo”, “país”, “território”, “pátria” ou “nação” indígena

64. Esta revelação do querer objetivo da nossa Lei Maior em prol da causa indígena conhece, porém, um contraponto que é preciso expor com toda clareza: ela, Constituição, teve o cuidado de não falar em territórios indígenas, mas, tão-só, em “terras indígenas”. É que todo território se define como parte elementar de cada qual das nossas pessoas jurídicas federadas. Todas elas definidas, num primeiro e lógico momento, como o conjunto de povo, território e governo (só num segundo instante lógico é que toda pessoa federada se define como o conjunto dos seus órgãos de poder: Legislativo, Executivo e Judiciário, com a ressalva de que este último não faz parte da estruturação do Município). Governo soberano, tratando-se da República Federativa do Brasil; governo autônomo, cuidando-se de qualquer das pessoas políticas de direito público interno. E já ficou demonstrado que terra indígena e ente federativo são categorias jurídicas de natureza inconfundível. Tal como água e óleo, não se misturam.

65.Sem dúvida que se trata de uma diferenciação fundamental − essa entre terras indígenas e território −, pois somente o território é que se põe como o preciso âmbito espacial de incidência de uma dada Ordem Jurídica soberana, ou, então, autônoma (Kelsen, sempre ele). O lócus por excelência das primárias relações entre governantes e governados, que são relações de natureza política. E cujas linhas demarcatórias são fixadas por modo irrestritamente contínuo, pois no seu interior: a) circulam com todo desembaraço (essa é a regra) pessoas naturais e todo e qualquer dos grupos étnicos formadores do povo brasileiro; b) são instalados equipamentos e construídas vias de comunicação que propiciam aquele mais desembaraçado trânsito de pessoas e de bens.

66.Já o substantivo “terras”, 11 vezes referido ao conjunto das etnias indígenas, é termo que assume compostura nitidamente sócio-cultural. Não política. Tanto assim que os índios fazem parte de um título constitucional fora daquele rotulado como “Da Organização do Estado” (Título III) e também descolocado do título versante sobre a “Organização dos Poderes” (Título IV). A traduzir que os “grupos”, “organizações”, “populações” ou “comunidades” indígenas não constituem pessoa federada, insista-se na proposição. Como não constituem a figura que o art. 33 da Constituição designa por Território Federal, pois o certo é que tais grupamentos não formam circunscrição ou instância espacial que se orne de dimensão política. Menos ainda da autonomia político-administrativa que é própria de cada qual das quatro pessoas jurídicas de direito público a que se reportam os art. 1º e 18 da Constituição Federal: União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Por isso mesmo que também se privam de qualquer dos três elementares Poderes Públicos: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

67.Com efeito, uma coisa é ajuizar que as terras indígenas e os direitos que sobre elas incidem são, no limite, oponíveis a Estados e Municípios; outra, porém, é querer, à revelia da Constituição: a) conferir a essas terras o status de um território federado, em paralelo à base física de qualquer outra das nossas pessoas genuinamente governamentais (União, Distrito Federal, Estados e Municípios); b) reconhecer a qualquer das organizações sociais indígenas, ao conjunto delas, ou à sua base peculiarmente antropológica a dimensão de instância transnacional, ainda que virtualmente.

68.Daqui se deduz que, não se elevando à categoria política de território, as terras indígenas não comportam mesmo a livre circulação de pessoas de qualquer grupamento étnico. Assim como não se disponibilizam integralmente para a instalação de equipamentos públicos e obras de infra-estrutura econômica e social, senão sob o comentado regime de prévio acerto com a União e constante monitoramento por esta. Sempre coadjuvada, assentamos, pelos índios e suas comunidades, mais o Ministério Público, preservado o constitucional leit motiv da demarcação de toda terra indígena: sua afetação aos direitos e interesses de uma dada etnia aborígine.

69. Em boa verdade, nem território político nem propriedade privada cabem na definição do regime de apossamento e utilização das terras indígenas. Tudo nelas é juridicamente peculiar, especialíssimo até, segundo vimos demonstrando e prosseguiremos a fazê-lo com lastro em enunciados de escalão exclusivamente constitucional. Dentre eles, os que cimentam a nossa convicção de que nenhuma das comunidades indígenas brasileiras detém estatura normativa para comparecer perante a Ordem Jurídica Internacional como Nação, “País”, “Pátria”, “território nacional”, ou “povo” independente. Sendo de fácil percepção que todas as vezes em que a Constituição de 1988 tratou de “nacionalidade” e dos demais vocábulos aspeados (País, Pátria, território nacional e povo) foi para se referir ao Brasil por inteiro. Sem divisão ou separatismos, como se lê da alínea c do inciso I do art. 12, combinadamente com o arts. 219, 142 (cabeça), § 2º do art. 20 e § 1º do art. 242. Donde a conclusão de que, em tema de índios, não há espaço constitucional para se falar de pólis, território, poder político, personalidade geográfica; quer a personalidade de direito público interno, quer, com muito mais razão, a de direito público externo. O que de pronto nos leva a, pessoalmente, estranhar o fato de agentes públicos brasileiros aderirem, formalmente, aos termos da recente “Declaração das Nações Unidas Sobre os Direitos dos Povos Indígenas” (documento datado de 13 de setembro de 2007), porquanto são termos afirmativos de um suposto direito à autodeterminação política, a ser “exercido em conformidade com o direito internacional”. Declaração, essa, de que os índios brasileiros nem sequer precisam para ver a sua dignidade individual e coletiva juridicamente positivada, pois o nosso Magno Texto Federal os protege por um modo tão próprio quanto na medida certa. Bastando que ele, Magno Texto Brasileiro, saia do papel e passe a se incorporar ao nosso cotidiano existencial, num itinerário que vai da melhor normatividade para a melhor experiência. É a nossa Constituição que os índios brasileiros devem reverenciar como sua carta de alforria no plano sócio-econômico e histórico-cultural, e não essa ou aquela declaração internacional de direitos, por bem intencionada que seja.

O instituto da demarcação das terras indígenas e suas coordenadas constitucionais. A demarcação como competência do Poder Executivo da União

70. Como a centrada matéria que nos interessa é a demarcação das terras indígenas, anotamos que, tal como regrada pelo art. 231 do nosso Texto Magno, ela não cai sob o poder discricionário de quem quer que seja. Há precisas coordenadas constitucionais para a identificação das terras a demarcar, sendo que tais coordenadas já antecipam o conteúdo positivo de cada ato demarcatório em si. Vale dizer, coordenadas que significam a indicação do que seja terra indígena para fins especificamente demarcatórios. Com o que, em grande parte do tema, a nossa Constituição se revela como norma de eficácia plena ou de pronta aplicação, no sentido de que prescindente da intercalação da lei infraconstitucional para cumprir os desígnios a que se preordena.

71. Veremos cada qual desses conteúdos, não sem antes ajuizar que somente à União compete instaurar, seqüenciar e concluir formalmente o processo demarcatório das terras indígenas, tanto quanto efetivá-lo materialmente. Mas instaurar, seqüenciar, concluir e efetivar esse processo por atos situados na esfera de atuação do Poder Executivo Federal, pois as competências deferidas ao Congresso Nacional, com efeito concreto ou sem densidade normativa, se esgotam nos seguintes fazeres: a) “autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais” (inciso XVI do art. 49); b) pronunciarse, decisoriamente, sobre o ato de “remoção de grupos indígenas de suas terras” (§ 5º do art. 231, assim redigido: “É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponham em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse esse risco”). Com o que se mostra plenamente válido o precitado artigo 19 da Lei Federal nº 6.001/73 (Estatuto do Índio), também validamente regulamentado pelo Decreto de nº 1.775/96, que torno a transcrever:

“Art. 19. As terras indígenas, por iniciativa e sob a orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo”.
“§ 1º A demarcação promovida nos termos deste artigo, homologada pelo Presidente da República, será registrada em livro próprio do Serviço de Patrimônio da União (SPU) e do registro imobiliário da comarca da situação das terras”.

72. Tinha que ser assim, pois o fato é que demarcar é assinalar os limites. Colocar os marcos físicos ou fincar as placas sinalizadoras de cada terra indígena, na perspectiva dos quatro pontos cardeais do norte/sul/leste/oeste. Sem o que não se tem uma precisa orientação cartográfico-geodésica. Marcos de terras indígenas, repise-se, e não de terras devolutas. Tarefa tão empírica ou concreta quanto os próprios deveres estatais de permanentemente “proteger e fazer respeitar” (parte final do art. 231, cabeça, da CF) todos os bens situados nas terras afinal demarcadas. Que são cometimentos próprios, específicos, naturais do Poder Executivo da União, atuando esta por seus órgãos de Administração Direta ou centralizada, ou, então, pelas suas entidades de Administração Indireta ou descentralizada. Nada impedindo que o Presidente da República venha a consultar, querendo, o Conselho de Defesa Nacional (inciso III do § 1º do art. 91 da Constituição), especialmente se as terras indígenas a demarcar coincidirem com faixa de fronteira.

A demarcação de terras indígenas como capítulo avançado do constitucionalismo fraternal

73.Mais ainda é preciso dizer do ato em si da demarcação em tela para exalçar a sua compostura jurídica de mecanismo concretizador de interesses e valores que fazem dos índios brasileiros protagonistas centrais da nossa História e motivo do mais vívido orgulho nacional. Por isso que a parte final da cabeça do art. 231 da Constituição impõe à mesma União o dever de, mais que demarcar as terras indígenas, “proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (materiais e imateriais, naturalmente). Tudo com o fim de exprimir a essencialidade e a urgência do processo demarcatório, tão bem retratadas no art. 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, assim vernacularmente posto: “A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”.

74.Também aqui é preciso antecipar que ambos os arts. 231 e 232 da Constituição Federal são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias que só têm experimentado, historicamente e por ignominioso preconceito − quando não pelo mais reprovável impulso coletivo de crueldade −, desvantagens comparativas com outros segmentos sociais. Por isso que se trata de uma era constitucional compensatória de tais desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas (afirmativas da encarecida igualdade civil-moral). Era constitucional que vai além do próprio valor da inclusão social para alcançar, agora sim, o superior estádio da integração comunitária de todo o povo brasileiro. Essa integração comunitária de que fala a Constituição a partir do seu preâmbulo, mediante o uso da expressão “sociedade fraterna”, e que se põe como o terceiro dos objetivos fundamentais que se lê nesse emblemático dispositivo que é o inciso I do art. 3º: “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (sem destaque no original).

75.Nesse mesmo fluir do pensamento é que os arts. constitucionais de nºs. 231 e 232 têm que ser interpretados como densificadores da seguinte idéia-força: o avançado estádio de integração comunitária é de se dar pelo modo mais altivo e respeitoso de protagonização dos segmentos minoritários. No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, lingüística e cultural, razão de ser de sua incomparável originalidade. Depois disso, e tão persuasiva quanto progressivamente, experimentarem com a sociedade dita civilizada um tipo de interação que tanto signifique uma troca de atenções e afetos quanto um receber e transmitir os mais valiosos conhecimentos e posturas de vida. Como num aparelho auto-reverse, pois também eles, os índios, têm o direito de nos catequizar um pouco (falemos assim).

76.Justamente para dar conta do advento de um constitucionalismo fraternal foi que eu mesmo escrevi o último capítulo do meu livro “Teoria da Constituição”, publicado no início de 2003 pela Editora Forense. E sobre o tema da fraternidade como princípio jurídico foi que o filósofo político italiano Antonio Maria Baggio coordenou a feitura de uma preciosa coletânea que traz, já na sua orelha, o seguinte comentário:
“O pensamento moderno desenvolveu a liberdade e a igualdade como categorias políticas, mas não fez o mesmo com a fraternidade – embora esta seja o alicerce das outras duas –, seja por fraqueza, por medo das suas implicações, seja pela eclosão do conflito entre religião e modernidade, que tornou particularmente cheio de obstáculos o terreno da fraternidade. No entanto, a fraternidade é o princípio regulador dos outros dois princípios: se vivida fraternalmente, a liberdade não se torna arbítrio do mais forte, e a igualdade não degenera em igualitarismo opressor. A fraternidade poderia ajudar na realização do projeto da modernidade. Esta última, de fato, não deve ser negada; ao contrário, seu projeto deve ser retomado, adequando-o, porém, à plenitude de conteúdo dos valores que ele proclama” (em “O Princípio Esquecido”, editora Cidade Nova, São Paulo, ano de 2008).

O falso antagonismo entre a questão indígena e o desenvolvimento

77. O que estamos a descrever não é senão a própria base filosófica da mais firme opção constitucional em favor dos índios, traduzida no macro-entendimento de que é direito fundamental de cada um deles e de cada etnia autóctone:

I -perseverar no domínio de sua identidade, sem perder o status de brasileiros. Identidade que deriva de um fato complexo ou geminado, que é o orgulho de se ver como índio e etnia aborígene, é verdade, mas índio e etnia genuinamente brasileiros. Não uma coisa ou outra, alternativamente, mas uma coisa e outra, conjugadamente. O vínculo de territorialidade com o Brasil a comparecer como elemento identitário individual e étnico;

II – poder inteirar-se do modus vivendi ou do estilo de vida dos brasileiros não-índios, para, então, a esse estilo se adaptar por vontade livre e consciente. É o que se chama de aculturação, compreendida como um longo processo de adaptação social de um indivíduo ou de um grupo, mas sem a necessária perda da identidade pessoal e étnica. Equivale a dizer: assim como os não-índios conservam a sua identidade pessoal e étnica no convívio com os índios, os índios também conservam a sua identidade étnica e pessoal no convívio com os não-índios, pois a aculturação não é um necessário processo de substituição de mundividências (a originária a ser absorvida pela adquirida), mas a possibilidade de experimento de mais de uma delas. É um somatório, e não uma permuta, menos ainda uma subtração;

III -ter a chance de demonstrar que o seu tradicional habitat ora selvático ora em lavrados ou campos gerais é formador de um patrimônio imaterial que lhes dá uma consciência nativa de mundo e de vida que é de ser aproveitada como um componente da mais atualizada idéia de desenvolvimento, que é o desenvolvimento como um crescer humanizado. Se se prefere, o desenvolvimento não só enquanto categoria econômica ou material, servida pelos mais avançados padrões de ciência, tecnologia e organização racional do trabalho e da produção, como também permeado de valores que são a resultante de uma estrutura de personalidade ou modo pessoalindígena de ser mais obsequioso: a) da idéia de propriedade como um bem mais coletivo que individual; b) do não-enriquecimento pessoal à custa do empobrecimento alheio (inestimável componente ético de que a vida social brasileira tanto carece); c) de uma vida pessoal e familiar com simplicidade ou sem ostentação material e completamente avessa ao desvario consumista dos grandes centros urbanos; d) de um tipo não-predatoriamente competitivo de ocupação de espaços de trabalho, de sorte a desaguar na convergência de ações do mais coletivizado proveito e de uma vida social sem narsísicos desequilíbrios; e) da maximização de potencialidades sensórias que passam a responder pelo conhecimento direto das coisas presentes e pela premonição daquelas que a natureza ainda mantém em estado de germinação; f) de uma postura como que religiosa de respeito, agradecimento e louvor ao meio ambiente de que se retira o próprio sustento material e demais condições de sobrevivência telúrica, a significar a mais fina sintonia com a nossa monumental biodiversidade e mantença de um tipo de equilíbrio ecológico que hoje a Constituição brasileira rotula como “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida” (art. 225, caput), além de condição para todo desenvolvimento que mereça o qualificativo de sustentado.

78. Fácil entender, assim, que, por um lado, a Magna Carta brasileira busca integrar os nossos índios para agregar valor à subjetividade deles (fenômeno da aculturação, conforme explicado). Para que eles sejam ainda mais do que originariamente eram, beneficiando-se de um estilo civilizado de vida que é tido como de superior qualidade em saúde, educação, lazer, ciência, tecnologia, profissionalização e direitos políticos de votar e de ser votado, marcadamente. Já o outro lado da normação constitucional, este reside na proposição de que as populações ditas civilizadas também têm a ganhar com sua aproximação com os índios. Populações civilizadas de quem se exige: a) solidariedade, no plano do reconhecimento de que os aborígines precisam do convívio com os não-índios; b) humildade, para reconhecer que esse convívio é uma verdadeira estrada de mão dupla, porquanto reciprocamente benfazejo. Esse tipo de humildade, justamente, que refreia e dissipa de vez todo ímpeto discriminatório ou preconceituoso contra os indígenas, como se eles não fossem os primeiros habitantes de uma Terra Brasilis cuja integridade física tão bem souberam defender no curso da nossa história de emancipação política, de parelha com uma libertária visão de mundo que talvez seja o mais forte componente do nosso visceral repúdio a toda forma de autocracia, ao lado da nossa conhecida insubmissão a fórmulas ortodoxas de pensar, fazer e criar. Essa libertária visão de mundo que se inicia com a própria noção de deslimite geográfico deste nosso País-continente e que tanto plasma a santa rebeldia cívica de um Tiradentes quanto o mais refinado engenho tecnológico de um Santos Dumont, em par com a mais desconcertante ousadia estética de um Tom Jobim, um Garrincha, um Manoel de Barros, um Oscar Niemayer, uma Daiane dos Santos. Donde o padre Antônio Vieira falar que “seria mais fácil evangelizar um chinês ou um indiano do que o selvagem brasileiro. Os primeiros seriam como estátuas de mármore, que dão trabalho para fazer, mas a forma não muda. O índio brasileiro, em compensação, seria como estátua de murta. Quando você pensa que ela está pronta, lá vem um galho novo revirando a forma”. É o depoimento que se colhe em Viveiros de Castro, professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em entrevista concedida a Flávio Pinheiro e Laura Greenhalgh, jornal O Estado de São Paulo, 20 de abril de 2008. Mesmo texto em que o famoso antropólogo brasileiro fala da contribuição dos índios para a defesa da integridade territorial do nosso País, a partir dos Estados situados na Região Norte, verbis: “Há outras reservas em terras contínuas, em fronteiras. É o caso da Cabeça de Cachorro, no município de São Gabriel da Cachoeira, no Estado do Amazonas. E o Exército está lá, como deveria estar. A área indígena não teria como impedir a presença dos militares. O que a área indígena não permite é a exploração das terras por produtores não índios. Dizer que o Exército não pode atuar é um sofisma alimentado por políticos e fazendeiros que agem de comum acordo, numa coalizão de interesses típica da região. Roraima é um Estado que não se mantém sozinho, ou melhor, que depende do repasse de recursos federais. Um lugar onde 90% dos políticos nem sequer são nativos. Onde o maior arrozeiro, que está à frente do movimento contra a reserva, arvora-se em defensor da região, mas veio de fora. É um gaúcho que desembarcou por lá em 1978, e não há nada de mal nisso, mas combate os índios que justamente serve de ‘muralha dos sertões’, desde os tempos da colônia. Os índios foram decisivos para que o Brasil ganhasse da Inglaterra. Dizer que viraram ameaça significa, no mínimo, cometer uma injustiça histórica. Até o mito do Macunaíma, que foi recolhido por um alemão, Koch-Grünberg, e transformado por um Paulista, Mário de Andrade, foi contado por índios daquela área, os Macuxi, os Wapichana. Eles são co-autores da ideologia nacional”. Com outras palavras, é o que também se lê na Enciclopédia Eletrônica “WIKIPÉDIA”, a saber: em Niterói, onde se situa a estátua do índio Araribóia. Índio tupi que expulsou os franceses e que, por seus atos de bravura, recebeu da coroa portuguesa a sesmaria de Niterói.

79. Daqui se infere o despropósito da afirmação de que “índio só atrapalha o desenvolvimento”, pois o desenvolvimento como categoria humanista e em bases tão ecologicamente equilibradas quanto sustentadas bem pode ter na cosmovisão dos indígenas um dos seus elementos de propulsão. Por isso que ao Poder Público de todas as dimensões federativas o que incumbe não é hostilizar e menos ainda escorraçar comunidades indígenas brasileiras, mas tirar proveito delas para diversificar o potencial econômico dos seus territórios (territórios dos entes federativos, entenda-se) e a partir da culturalidade intraétnica fazer um desafio da mais criativa reinvenção da sua própria história sócio-cultural. Até porque esse é o único proceder oficial que se coaduna com o discurso normativo da Constituição, no tema. Um discurso jurídico-positivo que já não antagoniza colonização e indigenato, mas, ao contrário, intenta conciliá-los operacionalmente e assim é que nos coloca na vanguarda mundial do mais humanizado trato jurídico da questão indígena. Mais que isso, cuida-se de fórmula constitucional que nos redime, perante nós mesmos, de uma visão maniqueísta que nos arrastou para um tipo de insensatez histórica somente comparada à ignomínia da escravidão dos nossos irmãos de pele negra. “Legiões de homens negros como a noite (Castro Alves, “O Navio Negreiro), seqüestrados dos seus países, arrancados de seus lares e aqui torturados, condenados a trabalhos forçados, vendidos e separados dos seus filhos, mulheres, esposos, todos sistematicamente domesticados a açoites, correntes e coleiras de ferro, como recorda o senador Cristóvão Buarque em artigo publicado no “Jornal de Brasília” de 25 de julho do fluente ano. Por isso que falamos, precedentemente, da desnecessidade de amparo estrangeiro às causas indígenas, hoje, pois nenhum documento jurídico alienígena supera a nossa Constituição em modernidade e humanismo, quando se trata de reconhecer às causas indígenas a sua valiosidade intrínseca. Mas uma modernidade e humanismo que por nenhum modo significa emancipá-los de um País que também é deles e com eles quer viver para todo o sempre.

O conteúdo positivo do ato de demarcação das terras indígenas

80. Passemos, então, e conforme anunciado, a extrair do próprio corpo normativo da nossa Lei Maior o conteúdo positivo de cada processo demarcatório em concreto. Fazemo-lo, sob os seguintes marcos regulatórios:

I– o marco temporal da ocupação. Aqui, é preciso ver que a nossa Lei Maior trabalhou com data certa: a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) como insubstituível referencial para o reconhecimento, aos índios, “dos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Terras que tradicionalmente ocupam, atente-se, e não aquelas que venham a ocupar. Tampouco as terras já ocupadas em outras épocas, mas sem continuidade suficiente para alcançar o marco objetivo do dia 5 de outubro de 1988. Marco objetivo que reflete o decidido propósito constitucional de colocar uma pá de cal nas intermináveis discussões sobre qualquer outra referência temporal de ocupação de área indígena. Mesmo que essa referência estivesse grafada em Constituição anterior. É exprimir: a data de verificação do fato em si da ocupação fundiária é o dia 5 de outubro de 1988, e nenhum outro. Com o que se evita, a um só tempo: a) a fraude da subitânea proliferação de aldeias, inclusive mediante o recrutamento de índios de outras regiões do Brasil, quando não de outros países vizinhos, sob o único propósito de artificializar a expansão dos lindes da demarcação; b) a violência da expulsão de índios para descaracterizar a tradicionalidade da posse das suas terras, à data da vigente Constituição. Numa palavra, o entrar em vigor da nova Lei Fundamental Brasileira éa chapa radiográfica da questão indígena nesse delicado tema da ocupação das terras a demarcar pela União para a posse permanente e usufruto exclusivo dessa ou daquela etnia aborígine. Exclusivo uso e fruição (usufruto é isso, conforme Pontes de Miranda) quanto às “riquezas do solo, dos rios e dos lagos” existentes na área objeto de precisa demarcação (§ 2º do art. art. 231), devido a que “os recursos minerais, inclusive os do subsolo”, já fazem parte de uma outra categoria de “bens da União” (inciso IX do art. 20 da CF);
II – o marco da tradicionalidade da ocupação. Não basta, porém, constatar uma ocupação fundiária coincidente com o dia e ano da promulgação do nosso Texto Magno. É preciso ainda que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário se revista do caráter da perdurabilidade. Mas um tipo qualificadamente tradicional de perdurabilidade da ocupação indígena, no sentido entre anímico e psíquico de que viver em determinadas terras é tanto pertencer a elas quanto elas pertencerem a eles, os índios (“Anna Pata, Anna Yan”: “Nossa Terra, Nossa Mãe”). Espécie de cosmogonia ou pacto de sangue que o suceder das gerações mantém incólume, não entre os índios enquanto sujeitos e as suas terras enquanto objeto, mas entre dois sujeitos de uma só realidade telúrica: os índios e as terras por ele ocupadas. As terras, então, a assumir o status de algo mais que útil para ser um ente. A encarnação de um espírito protetor. Um bem sentidamente congênito, porque expressivo da mais natural e sagrada continuidade etnográfica, marcada pelo fato de cada geração aborígine transmitir a outra, informalmente ou sem a menor precisão de registro oficial, todo o espaço físico de que se valeu para produzir economicamente, procriar e construir as bases da sua comunicação lingüística e social genérica. Nada que sinalize, portanto, documentação dominial ou formação de uma cadeia sucessória. E tudo a expressar, na perspectiva da formação histórica do povo brasileiro, a mais originária mundividência ou cosmovisão. Noutros termos, tudo a configurar um padrão de cultura nacional precedente à do colonizador branco e mais ainda a do negro importado do continente africano. A mais antiga expressão da cultura brasileira, destarte, sendo essa uma das principais razões de a nossa Lei Maior falar do reconhecimento dos “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. O termo “originários” a traduzir uma situação jurídicosubjetiva mais antiga do que qualquer outra, de maneira a preponderar sobre eventuais escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Termo sinônimo de primevo, em rigor, porque revelador de uma cultura préeuropéia ou ainda não civilizada. A primeira de todas as formas de cultura e civilização genuinamente brasileiras, merecedora de uma qualificação jurídica tão superlativa a ponto de a Constituição dizer que “os direitos originários” sobre as terras indígenas não eram propriamente outorgados ou concedidos, porém, mais que isso, “reconhecidos” (parte inicial do art. 231, caput); isto é, direitos que os mais antigos usos e costumes brasileiros já consagravam por um modo tão legitimador que à Assembléia Nacional Constituinte de 1987/1988 não restava senão atender ao dever de consciência de um explícito reconhecimento. Daí a regra de que “São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto a benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé”. Pelo que o direito por continuidade histórica prevalece, conforme dito, até mesmo sobre o direito adquirido por título cartorário ou concessão estatal. Também assim o prefalado absurdo jurídico de se afirmar que “índio atrapalha o desenvolvimento”, pois o desenvolvimento que se fizer sem os índios, ou, pior ainda, contra os índios, ali onde eles se encontrarem instalados por modo tradicional, à data da Constituição de 1988, será o mais rotundo desrespeito ao objetivo fundamental que se lê no inciso II do art. 3º da nossa Constituição, assecuratório de um de um tipo de “desenvolvimento nacional” francamente incorporador da realidade indígena. Como deixará de cumprir o objetivo igualmente fundamental de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (inciso III do mesmo art. 3º da CF). Em suma, a carga de proteção constitucional que se extrai do reconhecimento de “direitos originários” é logicamente maior do que a defluente da simples outorga de direitos que não gozam de tal qualificação. É a diferença que existe entre norma especial e norma geral, esta a sucumbir perante aquela. Quanto mais que, em matéria de tutela dos “direitos e interesses indígenas”, as normas constitucionais se categorizam como de natureza especialíssima, carregadas que são de uma finalmente clara consciência histórica de compensação e de uma cósmica percepção de que nos índios brasileiros é que vamos encontrar os primeiros elos de uma identidade nacional que urge, mais que tudo, preservar. Essa identidade que nos torna sobremodo criativos e que o cronista Eduardo Gonçalves de Andrade (o “Tostão” da memorável Copa do Mundo de 1970) assim magistralmente sintetiza: “O futebol e a vida continuam prazerosos e bonitos, porque, mesmo em situações previsíveis, comuns e repetitivas, haverá sempre o acaso e um artista, um craque, para transgredir e reinventar a história” (artigo publicado no Jornal “Folha de São Paulo, edição de 18 de maio de 2008, Caderno D, p. 3);

III – o marco da concreta abrangência fundiária e da finalidade prática da ocupação tradicional.
Quanto ao recheio topográfico ou efetiva abrangência fundiária do advérbio “tradicionalmente”, grafado no caput do art. 231 da Constituição, ele coincide com a própria finalidade prática da demarcação; quer dizer, áreas indígenas são demarcadas para servir, concretamente, de habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas (deles, indígenas de uma certa etnia), mais as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições (§ 1º do art. 231). Do que decorre, inicialmente, o sobredireito ao desfrute das terras que se fizerem necessárias à preservação de todos os recursos naturais de que dependam, especificamente, o bem-estar e a reprodução físico-cultural dos índios. Sobredireito que reforça o entendimento de que, em prol da causa indígena, o próprio meio ambiente é normatizado como elemento indutor ou via de concreção (o meio ambiente a serviço do indigenato, e não o contrário, na lógica suposição de que os índios mantêm com o meio ambiente uma relação natural de unha e carne). Depois disso, o juízo de que a Constituição mesma é que orienta a fixação do perímetro de cada terra indígena. Perímetro que deve resultar da consideração “dos usos, costumes e tradições” como elementos definidores dos seguintes dados a preservar em proveito de uma determinada etnia indígena: a) habitação em caráter permanente ou não-eventual; b) as terras utilizadas “para suas atividades produtivas”, mais “as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar” e ainda aquelas que se revelarem “necessárias à reprodução física e cultural” de cada qual das comunidades étnico-indígenas. São os quatro círculos concêntricos a que se refere Nelson Jobim na decisão administrativa que proferiu, a propósito da demarcação da reserva indígena “Raposa-Serra do Sol”, quando ainda ministro de Estado da Justiça (decisão de 20 de dezembro de 1996). Mas quatro círculos concêntricos que explicitam o propósito constitucional de fazer dessa qualificada ocupação (porque tradicional) de terras indígenas o próprio título de constitutividade do direito a uma posse permanente e ao desfrute exclusivo das riquezas nelas existentes. Com o que, no ponto, o ato de demarcação passa a se revestir de caráter meramente declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Situação que a nossa Lei Fundamental retratou como formadora de um indissociável laço entre cada etnia indígena e suas terras congenitamente possuídas; ou seja, possuídas como parte elementar da personalidade mesma do grupo e de cada um dos seus humanos componentes. O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse fundiária um heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil. Visto que terra indígena, no imaginário coletivo aborígine, deixa de ser um mero objeto de direito para ganhar a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia. É o que Boaventura de Sousa Santos chama de “hermenêutica diatópica”, para dar conta do modo caracterizadamente cultural de interpretação dos direitos fundamentais2. Metodologia interpretativa que, no caso dos indígenas, sedimentada na própria Constituição, nos orienta para fazer dos referidos “usos, costumes e tradições” o engate lógico para a definição da semântica da posse indígena, da semântica da permanência, da semântica da habitação, da semântica da produção, e assim avante;

IV -o marco do conceito fundiariamente extensivo do chamado “princípio da proporcionalidade”.
Esse novo marco regulatório-constitucional é também uma projeção da metodologia diatópica de que há pouco falamos. Por ela, o próprio conceito do chamado princípio da proporcionalidade, quando aplicado ao tema da demarcação das terras indígenas, ganha um conteúdo irrecusavelmente extensivo. Quero dizer: se, para os padrões culturais dos não-índios, o imprescindível ou o necessário adquire conotação estrita, no sentido de que “somente é dos índios o que lhes for não mais que o suficiente ou contidamente imprescindível à sua sobrevivência física”, já sob o visual da cosmogonia indígena a equação é diametralmente oposta: “dêemse aos índios tudo que for necessário ou imprescindível para assegurar, contínua e cumulativamente: a) a dignidade das condições de vida material das suas gerações presentes e futuras; b) a reprodução de toda a sua estrutura social primeva. Equação que bem se desata da locução constitucional “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, pela cristalina razão de que esse reconhecimento opera como declaração de algo preexistente. Preexistente, por exemplo, à própria Constituição. Como também preexistente, enfatize-se, à transformação de um Território Federal em Estado-membro. Pois o que se tem, nesse tipo de transformação de Território em Estado-membro é apenas a concessão ou o deferimento de um status de ente federado a quem não o detinha. Daí o § 1º do art. 14 do ADCT bem assinalar que a instalação dos Estados do Amapá e de Roraima ocorreria (somente ocorreria, entenda-se) “com a posse dos governadores eleitos em 1990”. Por conseqüência, o novo Estado já nasce com seu território jungido a esse regime constitucional da preexistência de direitos à ocupação de terras que, por serem indígenas, pertencem à União. É a diferença entre o “doravante”, favorecedor dos novos Estados, e o “desde sempre”, superiormente favorecedor dos indígenas. Não cabendo falar, então, frente a “direitos originários”, de coisas como redução do patrimônio ou subtração do território estadual a cada ato de demarcação de terras indígenas. Assim o quis a Lei Republicana e contra esse querer normativo só podemos render vassalagem. Como rendemos vassalagem a ela, Constituição, na parte em que obsequiou os Estados-membros com a titularidade dominial das terras devolutas “não compreendidas entre as da União” (inciso IV do art. 26). Até porque pensar diferente, para desproteger as populações aborígines, seria a continuidade de uma soma perversa que a nossa Lei Maior quis apagar do mapa do Brasil: a soma de um passado histórico de perseguição aos índios com uma hermenêutica jurídica da espécie restritiva. Esta, uma segunda subtração, constitutiva do que se tem chamado de “arma limpa”, por implicar um processo de dizimação sem derramamento de sangue. Sem que esse especialíssimo regime constitucional de proteção indígena, contudo, venha a significar recusa a cada qual dos entes federados brasileiros da adoção de políticas públicas de integração dos nossos índios a padrões mais atualizados de convivência com o todo nacional. Políticas públicas de mais facilitado acesso à educação, lazer, saúde, ciência, tecnologia e profissionalização, de permeio com assistência na área da segurança pública e desfrute dos direitos políticos de votar e até de ser votado. Tudo na linha do pensamento integracionista que marcou a militância indigenista do Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon (ele mesmo um descendente de índios) e conforme dispositivos constitucionais de que o § 2º do art. 210 chega a ser emblemático: “O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”. O advérbio “também” a patentear que as línguas maternas dos aborígines hão de conviver com o domínio do português, para que eles, os índios, melhor se comuniquem com os seus irmãos brasileiros nãoíndios e vice-versa. Isto porque a fraternidade como signo constitucional de última geração axiológica é de preservar características étnicas, renove-se a proposição quantas vezes for necessário, mas sem o viés separatista dos que pretendem fazer de cada área de concentração indígena um apartado e cômodo laboratório de enfatuadas teses acadêmicas, à moda de ajardinamento antropológico (talvez por isso que a nossa Constituição preferisse, como de fato preferiu, não usar da expressão “reserva indígena”, mas “terras indígenas”).

O modelo peculiarmente contínuo de demarcação das terras indígenas

81.Agora é de se perguntar, naturalmente: o modelo geográfico de demarcação das terras indígenas é orientado pela idéia de continuidade, no sentido de evitar, ao máximo, interrupção física entre o seu ponto de partida e o de chegada? Como se dá, funcionalmente, com o território de cada pessoa estatal federada, apenas interrompido pelos marcos do território federativamente alheio? Demarcação por fronteiras vivas ou abertas em seu interior, para que, no âmbito delas, tanto se viabilize o exercício de um poder administrativo (não político) quanto se forme um perfil coletivo e ainda se afirme a auto-suficiência econômica de toda uma comunidade usufrutuária? Modelo bem mais serviente da idéia cultural e econômica de abertura de horizontes do que de fechamento? Por conseguinte, modelo contraposto ao tracejamento por “ilhas”, blocos ou porções geográficas de identificação prática entre demarcação e asfixia espacial ou confinamento sem grades?

82.A resposta é afirmativa, desde que observado o peculiaríssimo regime constitucional das terras indígenas. Terras que não são uma propriedade privada nem um território federado, mas um espaço fundiário que tem suas riquezas afetadas ao exclusivo desfrute de uma dada etnia autóctone. Etnia que, no seu espaço físico de tradicional ocupação e auto-suficiência econômica, detém autoridade para ditar o conteúdo e o ritmo de sua identidade cultural, partilhando com a União competências de índole administrativa. À diferença, porém, de uma propriedade privada, o título de domínio é de um terceiro (a União) que somente o possui para servir a eles, índios de uma determinada etnia. E também diferentemente do território de uma pessoa estatalfederada, cuida-se de terras que somente se vocacionam para uma livre circulação dos seus usufrutuários (índios de uma destacada etnia).

A conciliação entre terras indígenas e a visita de nãoíndios, tanto quanto com a abertura de vias de comunicação e a montagem de bases físicas para a prestação de serviços públicos ou de relevância pública.

83.Não se pense, contudo, que a exclusividade de usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos das terras indígenas seja inconciliável com a eventual presença dos não-índios, bem assim com a instalação de equipamentos tecnológicos, a abertura de estradas e outras vias de comunicação, a montagem ou construção de bases físicas para a prestação de serviços públicos ou de relevância pública. A conciliação das coisas é possível, reafirme-se, desde que tudo se processe debaixo da liderança institucional da União, controle do Ministério Público e atuação coadjuvante de entidades tanto da Administração Federal quanto representativas dos próprios indígenas.

84.Em tais situações, o que é preciso assegurar de logo avulta: de uma parte, que as visitas de não-índios em nada signifique desproteção dos indígenas; de outra, que as empreitadas estatais nunca deixem de contribuir para a elevação dos padrões de bem-estar das próprias comunidades autóctones, embora também possam irradiar seus benéficos efeitos para a economia e as políticas de saúde, educação, transporte e segurança pública desse ou daquele Estado. O que já impede que os indígenas e suas comunidades façam justiça por conta própria contra quem que seja, como, por exemplo, interditar ou bloquear estradas, cobrar pedágio pelo uso delas, invadir estabelecimentos públicos. É que, se as terras permanecem indígenas, a despeito dos empreendimentos públicos nela incrustados, nem por isso a União decai do seu poder-dever de comandar ou coordenar o uso comum de tais empreendimentos.

85.Tudo isso dito com outras palavras, o formato de toda e qualquer demarcação de terras indígenas é o contínuo, porque somente ele viabiliza os imperativos constitucionais que o ministro Nelson Jobim resumiu nos quatro mencionados círculos concêntricos. Imperativos que respondem pela vertente fundiariamente generosa da Constituição, inclusive para o efeito de incorporar todos os recursos ambientais servientes da reprodução física e cultural de uma dada etnia. Sem prejuízo, porém, do regime constitucional-integracionista dos índios, propiciador da monitorada interação com outras etnias indígenas e com não-índios. E também sem impossibilitar a construção de vias de comunicação e outros empreendimentos públicos, pois o que se reserva para o usufruto exclusivo das populações nativas são as riquezas do solo, dos rios e dos lagos em terras indígenas (§2º do art. 231 da CF). Observado, claro, o seguinte dispositivo da nossa Constituição:
“Art. 231. (...) §3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes asseguradas participação nos resultados da lavra, na forma da lei”.

A relação de pertinência entre terras indígenas e meio ambiente

86.O momento é propício para remarcar a perfeita compatibilidade entre meio ambiente e terras indígenas, ainda que estas envolvam áreas de “conservação” e “preservação” ambiental, pois o fato é que a Constituição dá por suposto o que dissemos um pouco mais atrás: índios e meio ambiente mantêm entre si uma natural relação de unha e carne. Não são como óleo e água, que não se misturam. Com o que de pronto ressai a seguinte compreensão das coisas: mais que uma simples relação de compatibilidade, o vínculo entre meio ambiente e demarcação de terras indígenas é de ortodoxa pertinência. Razão pela qual o decreto homologatório das Terras Indígenas Raposa-Serra do Sol (antecipo o juízo) é inclusivo do Parque Nacional do Monte Roraima, conferindo-lhe, redundantemente, aliás, uma dupla afetação: a ecológica e a propriamene indígena.

87.No particular, nada mais confortador do que trazer de volta o abalizado testemunho intelectual de Viveiros de Castro, a nos dar inteirar de que, no Estado do Mato Grosso, “o único ponto verde que se vê ao sobrevoá-lo é o Parque Nacional do Xingu, reserva indígena. O resto é deserto vegetal. Uma vez por ano, o deserto verdeja, hora de colher a soja. Depois, dá-se-lhe desfolhante, agrotóxico... E a soja devasta a natureza duplamente. Cada quilo produzido consome 15 litros de água” (continuação da mesma entrevista concedida ao Jornal Estado de São Paulo). Depoimento que reforça, já por um ângulo pragmático, a generosa vontade constitucional objetiva para com o modelo peculiarmente contínuo da demarcação das terras indígenas. Afinal, os índios são os brasileiros de vista mais alongada e pernas mais solicitadas, porque virginalmente afeitos à imensidão territorial deste Paíscontinente. O que já se reflete nas técnicas de um manejo temporalmente mais curto de suas terras agricultáveis e também de suas pastagens. Numa frase, os índios brasileiros são visceralmente avessos a qualquer idéia de guetos, nichos, cercas, muros, grades, viveiros, que são práticas apropriadas para uma demarcação parcimoniosamente insular ou do tipo queijo suíço. Sendo que o formato contínuo, ora sustentado, fica restrito a cada etnia aborígine. Com o que também se peculiariza o regime de visitas dos não-índios e se baliza a implantação de empreendimentos públicos em qualquer das áreas demarcadas. Respeitando-se, ademais, a identidade cultural que a nossa Constituição igualmente assegura às etnias aborígines lindeiras.

88.Que o final deste núcleo temático coincida com duas novas proposições, que tenho como de sólido assento constitucional: a primeira é a de que não descontinuam as terras demarcáveis como indígenas os comentados empreendimentos públicos (estradas, instalações tecnológicas, prédios, etc.); a segunda está em que eventual e significativo agravo à natureza, pelos próprios índios, tem na Constituição Federal possibilidade de pronto reparo, pois “É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (...) proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas” (art. 23, VI). Reação estatal, no entanto, que é de ser coordenada pela União, e somente por ela, por se tratar da pessoa federada em cujos bens se incluem as terras indígenas e de cujas competências faz parte a mais centrada proteção aos índios de toda e qualquer etnia aborígine.

A demarcação necessariamente endógena ou intraétnica

89.Por esse modo de ver as coisas, o que afinal se homenageia é a própria realidade plural-endógena dos índios. Cada etnia autóctone a ter para si, com exclusividade, uma porção de terra compatível com sua peculiar forma de organização social, seus usos e costumes, tradições, artes, culinária, terapias, meios e técnicas de subsistência econômica e de reprodução física. Trato de terra ou de terras ocupadas por modo tão permanente quanto tradicional, por isso que referidas à memória e à psicologia de cada tribo em especial, cada população aborígine em seu ontologicamente distinto modo de falar, produzir, invocar seus deuses, conceber e praticar a vida, enfim.

90.Esse modelo peculiar ou restritamente contínuo de demarcação é monoétnico portanto (não pluriétnico). Formato que deve atentar para a vontade fundiariamente generosa da Constituição, é lógico, mas ainda assim balizado pela realidade de cada etnia. Logo, interditado fica todo impulso, tentação ou veleidade antropológica de conectar, mais que os tradicionais espaços de ocupação fundiária por uma destacada etnia, aqueles que também englobam diferenciados grupos étnicos no interior de um só Estado-membro, inclusive os espaços que por acaso sejam de outra ou de outras etnias igualmente aborígines. Sem o que resulta inconstitucionalmente desconsiderada a própria interculturalidade étnico-nativa, com a circunstância agravante de acarretar movimentos de incorporações e fusões que são próprias de Municípios (§ 4º do art. 18 da CF), mas não de etnias indígenas.

91.Convém insistir na advertência: é de se excluir da demarcação das terras indígenas os intervalados espaços fundiários entre uma etnia e outra, até para não aproximar demasiadamente tribos eventualmente inimigas e de línguas diferentes, nem criar gigantescos vazios demográficos. Vazios demográficos que poderão dificultar a efetiva presença de Estado, com o risco de vir a configurar a chamada “ameaça não-armada” à soberania nacional: a solerte, maliciosa, esperta divulgação estrangeira de que o Brasil não tem competência para cuidar desse pulmão do mundo − mais que isto, desse melhor quinhão do mundo que é a Amazônia (região brasileira de maior concentração indígena, como amplamente sabido).

92.Conforme dissemos a partir do tópico de nº 51 deste voto, a Constituição não falou de “índio”, assim no singular. E não falou de índio, assim no singular, por não ser ele uma categoria humana puramente abstrata ou fora de qualquer realidade geográfica e social concreta. Corresponde a dizer: a Constituição não mencionou o vocábulo índio como categoria individual-platônica ou tãosó imaginária, supostamente apetrechado com o divino dom da ubiqüidade para merecer prerrogativado amparo jurídico em qualquer lugar do País ou situação existencial em que se encontrasse. Ela não fez de cada índio isolado um favorecido centro subjetivado de direitos pelo exclusivo fato de ser ele o primitivo habitante do Brasil e se dotar de caracteres físicos, lingüísticos e culturais salientemente distintos do colonizador europeu e do africano para aqui forçosamente importado. Não foi somente por isso.A Constituição falou de “índios”, na forma plural, também para dar conta de mais de uma centena de etnias autóctones já conhecidas no território brasileiro por ocasião dos trabalhos constituintes de 1987/1988 (227 etnias e 180 línguas ou dialetos, segundo dados oficiais da Fundação Nacional do Índio -FUNAI). Sendo assim, não há como refugar o juízo de que os índios foram normatizados numa dada situação social-endógena (intra ou monoétnica, destarte) e num concreto ambiente fundiário, porquanto coletivamente considerados de permeio com as terras por eles tão originária quanto permanentemente possuídas e tradicionalmente ocupadas. Exatamente porque dessa espécie de perdurável relação orgânica entre cada etnia indígena e o seu ainda rústico habitat é que se pode falar de direitos originários. Como também se pode falar de uma cultura tão diferenciada quando geradora de todo um perfil coletivo. Tudo a ser documentado em criteriosos laudos antropológicos, pois a sociedade “pluralista” de que trata o preâmbulo da nossa Constituição é do tipo social genérico, e, por isso mesmo, copiosa o bastante para alcançar as próprias diferenças entre os índios de uma etnia e de outra.

A permanência do modelo peculiarmente contínuo ou intraétnico, mesmo nos casos de etnias lindeiras

93.Esse desabono constitucional a demarcações de cambulhada ou interétnicas se mantém até mesmo na situação em que duas ou mais etnias indígenas se caracterizem pela contigüidade geográfica. Etnias lindeiras ou vizinhas de porta, então, o que propicia um mais freqüente visitar de tribos distintas. Mas ainda assim os marcos geodésicos e as placas sinalizadoras devem separar os espaços interétnicos; ou seja, cada etnia indígena deve saber onde começa e onde termina o espaço de trabalho e de vida que por direito originário lhe cabe com exclusividade (monoetnicamente, reitere-se). Essa é a regra geral a observar, de matriz diretamente constitucional, embora perfeitamente previsível que prolongadas relações amistosas entre etnias aborígines possa gerar, com o passar dos anos, uma condivisão empírica de espaços que em muito dificulta uma precisa fixação de fronteiras interétnicas.

94.Desponta claro, portanto, que o referido conceito fundiariamente extensivo do princípio da proporcionalidade aumenta a possibilidade de aproximação física entre as diferenciadas etnias autóctones. Se tal ocorrer no plano dos fatos, não há como falar de espaços intervalados para legítima ocupação por não-índios, caracterização de terras estaduais devolutas, ou implantação de Municípios. Todavia, entre as próprias etnias nativas a demarcação permanece com seu constitucional formato intraétnico. Uma etnia somente circulando com toda liberdade pelos espaços da outra, na medida em que haja o consentimento daquela cujas terras se façam objeto de visitas.

95. Em síntese, tudo consiste em saber, primeiro, se os índios se isolaram dos não-índios por sua espontânea vontade, criando intervalados espaços que não passam, só por isso, à condição de terras estaduais devolutas, nem se disponibilizam para uma apropriação da espécie privada. Segundo, se os intervalos fundiários apenas separam uma etnia aborígine de outra, situação em que as terras por inteiro são de natureza indígena. Apenas com sua demarcação vincada ao formato intraétnico de que vimos falando.

96.Em palavras outras, se uma terra indígena deixa de confinar com outra, o espaço intermediário que então se forma não é um indiferente jurídico: ele cai sob o regime comum da propriedade privada, ou é automaticamente incorporado aos bens de um certo Estado-membro como terra devoluta, ou se disponibiliza para a criação e instalação de um novo Município. Na primeira hipótese, todo o espaço que separa uma etnia indígena da outra é, em princípio, vocacionado para apropriação a título privado. Daí os seguintes dizeres da Constituição: a) “é garantido o direito de propriedade” (inciso XXII do art. 5º); b) “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: II – propriedade privada”. Já na segunda hipótese, o artigo constitucional a reger as coisas é o de n º 26, com o seu inciso de nº IV, que manda incluir “entre os bens do Estado” “as terras devolutas não compreendidas entre as da União”. E quanto à terceira prefiguração, enfim, aí o dispositivo a aplicar é o § 4º do art. 18 da Constituição, assim escrito: “A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios far-se-ão por lei estadual, dentro do período determinado por lei complementar federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei”.

97.Pois bem, exclusivamente nessa hipótese de não-contigüidade de terras indígenas é que se pode falar de prevalência tanto do princípio federativo quanto da livre iniciativa. Afinal, se, à época do seu descobrimento, o Brasil foi por inteiro das populações indígenas, o fato é que o processo de colonização se deu também pela miscigenação racial e retração de tais populações aborígines. Retração que deve ser contemporaneamente espontânea, pois ali onde a reocupação das terras indígenas, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, somente não ocorreu por efeito do renitente esbulho por parte dos não-índios, é claro que o caso já não será de perda da tradicionalidade da posse nativa. Será de violação aos direitos originários que assistem aos índios, reparável tanto pela via administrativa quanto jurisdicional. Para isso é que servem as regras constitucionais da inalienabilidade e da indisponibilidade das terras indígenas, bem assim a imprescritibilidade dos direitos sobre elas. Regras que se voltam para a proteção de uma posse indígena pretérita, visto que a Constituição mesma é que desqualifica a alegação de direito adquirido e em seu lugar impõe o dever estatal de indenizar os não-índios como instransponível óbice à tentação hermenêutica de se prestigiar o dogma da segurança jurídica em prejuízo dos índios (indenização, todavia, que somente ocorre “quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé”, nos precisos termos do comando final do § 6º do art. 231 da Constituição).

98. Avanço no raciocínio para asseverar que, nessa hipotetização de terras indígenas efetivamente lindeiras, já não vale o argumento do risco de uma demarcação contínua que termine por acarretar vazios democráticos ou a não-presença de Estado. E não vale o argumento, porque a não-presença de Estado é de ser imputada a ele mesmo, Estado brasileiro. Não aos índios, que não podem pagar a fatura por uma dívida que não contraíram. Afinal, nada juridicamente impede, mas antes obriga, que o Poder Público brasileiro, sob a liderança institucional da União (nunca é demais repetir), cumpra o seu dever de assistir as populações indígenas. Dever que não se esgota com o ato em si de cada demarcação por etnia, pois ainda passa pela indispensável atuação das nossas Forças Armadas, isolada ou conjuntamente com a Polícia Federal, sempre que em jogo o tema fundamental da integridade territorial do Brasil (principalmente nas denominadas faixas de fronteira).

A perfeita compatibilidade entre faixa de fronteira e terras indígenas

99.Como derradeiro tópico nominado deste voto, afirmamos, sempre com base na Constituição, a serena compatibilidade entre apropriação usufrutuária de terras indígenas e faixa de fronteira. Isto pela consideração inicial de que, ao versar o tema das terras indígenas, a Magna Carta Federal não fez nenhuma ressalva quanto à demarcação abrangente de faixa de fronteira ou nela totalmente situada.

100.Mas não é só. Além de não incluir nenhuma faixa de fronteira entre os bens pertencentes à União, a Constituição ainda deixou expressa a possibilidade de uso e ocupação não-estatal de qualquer delas. Apenas arrematando o seu discurso com a regra de que tal ocupação e uso “serão regulados em lei”, tendo em vista que toda faixa de fronteira é de logo qualificada por ela, Constituição, como “fundamental para defesa do território nacional”. Eis o texto:

“A faixa de até cento e cinqüenta quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres, designada como faixa de fronteira, é considerada fundamental para defesa do território nacional, e sua ocupação e utilização serão reguladas em lei” (§2º do art. 20).

101.Uma dessas possibilidades de uso de faixa de fronteira, por sinal, já vem disciplinada na própria Constituição. Diz respeito às atividades de pesquisa e lavra de recursos minerais e ao aproveitamento dos potenciais de energia hidráulica, a saber:

“A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o caput deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas” (§ 1º do art. 176).

102.Não podia ser diferente essa compatibilidade, que apenas retrata o fato de que justamente nas fronteiras terrestres do Brasil é que mais se concentram as nossas populações indígenas, especialmente nas regiões norte e centro-oeste. Concentração contemporânea da descoberta do País, é sabido, assim como por efeito de migrações espontâneas, ou, então, forçadas pela intolerância e perseguição por parte dos não-índios (a espremedura topográfica a que nos referimos no capítulo de nº 61). Seja como for, concentração indígena que se fez e se faz decisiva para a preservação da integridade territorial brasileira (esse elemento da soberania nacional), pois os nossos aborígines, amantes e profundos conhecedores da nossa geografia, sempre souberam se opor com toda eficiência e bravura às tentativas de invasões estrangeiras em nosso País.

103.Realmente, os nossos indígenas sempre se dispuseram a defender a integridade do território brasileiro, ora por si mesmos, ora em articulação com lideranças patrióticas nacionais. O que nos dá a certeza da continuidade dessa colaboração junto às Forças Armadas e à Polícia Federal, esta última no desempenho de sua função constitucional de polícia de fronteiras (inciso III do §1º do art. 144), e, aquelas, no cumprimento do seu mister igualmente constitucional de defesa da Pátria (art. 142, cabeça). Donde escrever, em artigo recente, a atual senadora e ex-ministra do Meio Ambiente, Marina da Silva, também ela uma grande conhecedora da região norte desta nossa Terra de Santa Cruz: “A defesa das nossas fronteiras na Amazônia sempre recebeu grande contribuição das comunidades indígenas. Por exemplo, pela incorporação de seus jovens ao Exército para ações em áreas onde ninguém quer ou sabe ir” (jornal Folha de São Paulo, Caderno A, p. 2, edição de 4 de agosto de 2008). Isto sem deixar de tecer comentários sobre a particular situação do Estado de Roraima, a propósito, justamente, da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, literis: “A população de Roraima não chega a 400 mil habitantes. Para os cerca de 350 mil não-índios há quase 11 milhões de hectares de terras disponíveis, diz estudo do Instituto Socioambiental. Comparando, Pernambuco tem 9,8 milhões de hectares para cerca de 8 milhões de habitantes”.

104. Nesse contexto, longe de se pôr como um ponto de fragilidade estrutural das nossas faixas de fronteiras, a permanente alocação indígena nesses estratégicos espaços em muito facilita e até obriga que as duas citadas instituições de Estado (Forças Armadas e Polícia Federal) se façam também permanentemente presentes com seus postos de vigilância, equipamentos, batalhões, companhias, agentes e tudo o mais que possa viabilizar a mais otimizada parceria entre o Estado e as nossas populações nativas.

105.Conforme dito precedentemente, se o Poder Público se faz ausente em terras indígenas, tal omissão é de ser debitada exclusivamente a ele, Estado, e não aos índios brasileiros. Índios que não podem se opor a essa presença (juridicamente não podem, frise-se) e ainda necessitam dela para a contínua elevação dos seus padrões de segurança, politização, educação, saúde, transporte e demais itens de bem-estar material. Não é por aí, portanto, que se pode falar de abertura de flancos para o tráfico de entorpecentes e drogas afins, nem para o tráfico de armas e exportação ilícita de madeira. Tampouco de perigo para a soberania nacional, senão, quem sabe, como uma espécie de desvio de foco ou cortina de fumaça para minimizar a importância do fato de que empresas e cidadãos estrangeiros é que vêm promovendo a internacionalização fundiária da Amazônia legal, pela crescente aquisição de grandes extensões de terras. A cupidez estrangeira a se aproximar cada vez mais, acrescente-se, das nossas incomparáveis reservas de água doce, biodiversidade e jazidas de urânio, nióbio, ouro, diamante e cassiterita, além petróleo e gás natural (ao menos na franja da divisa do Brasil com a Venezuela).

106.Enfim, quem proíbe o Estado brasileiro, mormente o Estado-União, e mais especificamente ainda o Estado-Forças Armadas e o Estado-Polícia Federal, − quem proíbe o Estado brasileiro, dizia eu, de ocupar o espaço funcional que lhe cabe em terras indígenas? Quem impede o governo brasileiro de responder às ONG’s estrangeiras, e até mesmo à ONU, com toda altivez e em alto e bom som, que neste nosso território somos nós que mandamos? Quem obsta o Estado soberano do Brasil de espalhar pelos quatro cantos do mundo que nenhum outro Estado independente avançou tanto na questão indígena, tutelarmente, como o Estado brasileiro pós Constituição de 1988? E que, portanto, nenhum outro povo tem lições pra nos dar na matéria? Resposta: unicamente ele mesmo, Estado brasileiro, certamente por motivo de uma acanhada interpretação das suas próprias competências constitucionais, no tema, como, por exemplo, a que assiste à União para “assegurar a defesa nacional”, de permeio com a execução dos “serviços de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras” (incisos III e XXII, respectivamente, do art. 21 da Constituição). Despercebidas, talvez, as nossas autoridades, tanto civis quanto militares, do enorme trunfo que é poder conscientizar ainda mais os nossos indígenas, instruí-los (a partir dos conscritos), alertá-los contra a influência malsã de certas ONG’s, mobilizá-los em defesa da soberania nacional e reforçar neles o sentimento de brasilidade que nos irmana a todos. Missão até favorecida pelo fato de serem os nossos índios as primeiras pessoas a revelar devoção pelo nosso País e até hoje dar mostras de conhecerem o seu interior e as suas bordas mais que ninguém. Olho e pálpebra que são de uma terra que lhes dá um multimilenar sustento e que lhes povoa o sonho imemorial de nela viver em paz para todo o sempre.

O caso concreto da demarcação da terra indígena “Raposa Serra do Sol”

107.Chego à derradeira parte deste voto, que outra não pode ser senão o exame do caso concreto. Fazendo-o, enfrento, como de estilo, as questões formais. Isso para de logo me contrapor às alegações de nulidade do processo demarcatório, por suposta agressão às garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, pois as duas situações jurídicas ativas foram plenamente exercitadas tanto pelo Estado de Roraima quanto pelos demais atores processuais.

108.No ponto, anoto que os trabalhos de demarcação da área indígena Raposa/Serra do Sol começaram em 1977, data a partir da qual o tema ganhou todas as tintas dos chamados “fatos públicos e notórios”. Daí porque, em acréscimo a essa publicidade natural, o estudo de 1991/1992 foi sinteticamente publicado no diário oficial da União já em abril de 19933, tudo conforme os dizeres do § 7º do art. 2º do Decreto 22/91 e como decorrência do aforismo do tempus regit actum e do princípio processual da instrumentalidade das formas. Tempo mais que suficiente para que todas as partes e demais interessados se habilitassem no procedimento e ofertassem eventuais contraditas, porquanto o primeiro despacho do Ministro da Justiça Nelson Jobim somente se deu em 1996 (despacho de nº 80/96, excluindo da área a demarcar parte das terras atualmente reivindicadas por arrozeiros). Noutros termos, nulidade haveria tão-somente se os interessados requeressem e lhes fossem negados pela Administração Federal seus ingressos no feito, o que jamais ocorreu.

109.O mesmo é de se dizer quanto à participação de qualquer das etnias indígenas da área: Ingarikó, Macuxi, Patamona, Wapichana e Taurepang. Sendo que somente se apresentaram para contribuir com os trabalhos demarcatórios os Makuxi, filiados ao Conselho Indígena de Roraima – CIR4 . Os demais indígenas, tirante os Ingarikó, atuaram diversas vezes nos autos com cartas e petições. Todos forneciam informações e nenhum deles subscreveu o relatório nem o parecer antropológico, elaborados pela antropóloga Maria Guiomar Melo, servidora da FUNAI, e pelo Prof. Paulo Santilli, respectivamente.

110. Também não vejo como causa de nulidade o fato de o advogado responsável pelo parecer jurídico (Felisberto Assunção Damasceno) haver sido indicado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Tal parecer não foi além de sua natureza opinativa e passou pelo crivo da Presidência da FUNAI, da Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça e de outras instâncias administrativas em sucessividade processual endógena, como, v.g., o Consultor Jurídico da Casa Civil da Presidência da República. É o que também penso quanto à alegada não participação de membros do grupo oficial de trabalho na confecção do laudo antropológico, bem assim no que tange ao fato de servidores administrativos, devidamente treinados, efetivarem levantamentos de índole meramente censitária de pessoas e bens. Já aqueles que representavam os interesses do Estado de Roraima − também o demonstram os documentos dos autos5 −, tinham eles por função apresentar estudos de que não se desincumbiram por vontade própria. Resultando claro que tal inércia não era mesmo de estancar um proceder administrativo que já se fazia em descompasso com a determinação constitucional de conclusão de todas as demarcações de terras indígenas “no prazo de até cinco anos a partir da promulgação de Constituição” (art. 67 do ADCT).

111. O que importa para o deslinde da questão é que toda a metodologia propriamente antropológica foi observada pelos profissionais que detinham competência para fazê-lo: os antropólogos Maria Guiomar Melo e Paulo Brando Santilli. Este último indicado e permanentemente prestigiado pela Associação Brasileira de Antropologia, de cujos quadros societários faz parte como acatado cientista. Ele foi o responsável pela confecção do parecer antropológico que, a partir dos estudos e levantamentos feitos pela Dra. Maria Guiomar (ela também um destacado membro da Associação Brasileira de Antropologia), serviu de base para os trabalhos demarcatórios em causa, assinando-o solitariamente, como estava autorizado a fazêlo (tanto quanto a Dra. Guiomar). Afinal, é mesmo ao profissional da antropologia que incumbe assinalar os limites geográficos de concreção dos comandos constitucionais em tema de área indígena. O que se lhe mostra impertinente ou estranho é laborar no plano de uma suposta conveniência da busca de um consenso entre partes contrapostas e respectivos interesses, que ele, Paulo Santilli, acertadamente não intentou.

112. De se ver que o Estado de Roraima teve sua participação garantida no grupo de trabalho da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), bastando lembrar que foi prontamente acatada sua indicação de nada menos que sete (07) servidores da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, do Interior e Justiça. Ademais, poderia exercer os seus direitos também sob o mecanismo posto no § 5º do art. 2º do Decreto nº 22/91:

§ 5º. Os órgãos públicos federais, estaduais e municipais devem, no âmbito de suas competências, e às entidades civis é facultado, prestar, perante o Grupo Técnico, informações sobre a área objeto de estudo, no prazo de trinta dias contados a partir da publicação do ato que constituir o referido grupo.

113.Sigo para realçar que a participação de índios vinculados ao CIR, aliada ao fato de apenas dois antropólogos assinarem suas peças técnicas (cada qual a sua), nada disso habilita o autor popular e seus assistentes a concluírem pela parcialidade do laudo antropológico. Da mesma forma que não se pode impugnar o laudo dos peritos do Juízo, sob a argumentação de que todos eles simpatizavam com as teses defendidas pelo Estado de Roraima, na medida em que publicaram trabalhos de defesa da demarcação em forma de ilhas e revelaram o máximo de preocupação com a mantença da soberania nacional (em especial quanto à fronteira do Brasil com a Venezuela), além de que centraram suas pesquisas no desenvolvimento tecnológico de solos com o fito de demonstrar a possibilidade de maior produtividade em reduzidas dimensões de terra. Não é isso que atesta a parcialidade de quem quer que seja, como não infirma aquilo que verdadeiramente conta para o desate da causa, como reiteradamente vimos enfatizando: as coordenadas diretamente constitucionais sobre o magno tema da demarcação de toda e qualquer terra indígena.

114.Também não se reveste da importância que lhe emprestam o autor popular e seus assistentes a alegação de que houve uma proliferação artificial de malocas, no curso do processo administrativo, dado que tal expansão, além de não provada como artificial, somente se deu após a feitura do parecer antropológico. Também assim a fraude que decorreria da distância de 180 km entre as malocas (famílias extensas) Mapaé e Cedro, pois é fato que tal distanciamento foi medido a partir de uma maloca ingarikó, situada no extremo norte da área, até outra maloca da etnia makuxi, situada mais ao sul dessa mesma área. Sendo que na demonstração desse preciso trajeto foi omitida, sabe-se lá por que, a real presença de nada menos que 81 malocas (segundo mapas constantes dos autos)6. Por fim, ações pretensamente fraudulentas, como o emprego de motoristas como se técnicos agrícolas fossem, mas que se revelaram como argumento equivocado, pois o que se tem como indicativo de fraude não foi senão um erro material: chamar de técnicos agrícolas quem, de fato, era motorista. Por isso mesmo que, logo nas páginas seguintes do laudo, o erro foi reparado: quem era de fato motorista como tal foi nominado7.

115. Mácula processual ou defeito de forma também não se extrai da consideração do crescimento, entre o laudo antropológico e o concreto ato de demarcação, de 1.678.800 ha para 1.747.089 ha (Decreto de 15/04/2005) como o real perímetro da área afinal demarcada. Cuida-se de diferença que os próprios autos sinalizam como natural ou não desarrazoada. É que o técnico que definiu a primeira “marca” o fez em caráter estimativo, tanto assim que até então não comparecera fisicamente ao local e se valera tão só de instrumentos mecânicos de mensuração (planímetro e curvímetro), considerada a definição antropológica da área e apenas de posse de mapa cartográfico. Num segundo momento, porém, profissional diverso já se deslocou pessoalmente até a área a mensurar para então se valer, agora sim, de fontes cartográficas mais precisas e tecnologia atualizada, como sistema de posicionamento global -GPS, imagens de satélite e cálculos computacionais8 . Tudo a rechaçar qualquer eiva de nulidade processual.

116. Encerro este enfrentamento das questões formais para estranhar que, mesmo à face de trabalhos antropológicos revestidos de todos os elementos de uma etno-antropologia e de uma antropologia social e cultural adequada, pois reveladores da interatividade orgânica dos índios com suas terras e consigo mesmos, tudo enlaçado ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à riqueza sentimental das relações uxórias e de parentesco, cosmogonia, artes, coleta, caça, pesca, festas, tradições, crenças, economia, etc., insistam o autor popular e todos que o secundam neste processo em adjetivar tais peças antropológicas como simplesmente genéricas ou abstratas. Supostos repositórios de “guarda-chuvas”, pois serviriam para qualquer demarcação de terra indígena. Afirmação, contudo, que penso derivar do desconhecimento da multifacetada cultura aborígine, como o próprio fato de que muitas etnias são dispersões originárias de um mesmo tronco, inclusive lingüístico e religioso, variando tão-só a forma de expressão ou de produtividade. Casos típicos do “timbó”, planta que se usa como instrumento de pesca; das imbiras, que são armadilhas de caça; da coivara, uma técnica de rotatitividade de solos para plantio; ou da areruia como sincretismo religioso.

117. Muito bem. Superadas as questões formais, avanço para o lado substantivo da demarcação. Não sem antes ressaltar que a presente ação tem por objeto tãosomente a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, com extensão a abranger, aproximadamente, 7,5% do território do Estado de Roraima. Fazendo-o, estou convicto de que os autos retratam o seguinte:

I – toda a área referida pela Portaria nº 534/2005, do Ministro de Estado da Justiça, é constituída de terras indígenas, como conceituado pelo § 1º do art. 231 da Constituição Federal. Terras indígenas contíguas ou lindeiras, ainda que ocupadas, em grande parte, indistinta ou misturadamente pelas etnias Ingarikó, Makuxi, Taurepang, Patamona e Wapichana. Indiferenciação, essa, que se evidencia pelos 150 anos sem conflitos armados interétnicos e reforçada pela presença de: a) uma língua franca ou de tronco comum; b) intensas relações de trocas; c) uniões exogâmicas. Mais: cuida-se de terras indígenas ocupadas por forma tradicional e permanente à face do marco temporal do dia 05 de outubro de 1988 conforme demonstração convincentemente feita pelo laudo e parecer antropológicos de fls. 423/548. Todas elas em nada descaracterizadas pelo fato das posses ilegítimas que se deram com maior vigor no século XX, mediante a expulsão dos índios das margens dos rios e igarapés e das terras ao pé das montanhas. Posses ilegítimas, protagonizadas pelos “civilizados [que] ambicionavam para seus gados as pastagens” (Serviço de Proteção ao Índio)9/10;

II – em que pese a demarcação pecar pela falta de observância do vetor monoétnico para a definição dos limites das várias terras indígenas lindeiras que formam toda a área conhecida como Raposa Serra do Sol – tema nem sequer agitado pelas partes e seus assistentes –, de tal circunstância nenhum prejuízo resultou para os índios das cinco etnias em comento. Motivo, aliás, da inexistência da irresignação de nenhum membro individual ou órgão representativo de qualquer das comunidades envolvidas, o que seguramente se explica: a) pelo fato da intensa e antiga miscigenação entre os seus componentes; b) pela concreta dificuldade de precisa identificação da área de movimentação física de cada uma dessas tribos ou etnias autóctones;

III – a extensão da área demarcada é compatível com as coordenadas constitucionais aqui longamente descritas, sobretudo à vista do que vimos chamando de postulado da proporcionalidade extensiva. Valendo enfatizar que a demarcação de terras indígenas não se orienta por critérios rigorosamente matemáticos. Sem falar que não têm préstimo para esse fim critérios não-índios de mensuração, como, por exemplo, cálculo de hectare/habitante e clusters (demarcação por ilhas ou do tipo “queijo suíço”). As próprias características geográficas da região contra-indicam uma demarcação avara ou restritiva, pois a reconhecida infertilidade dos solos (causadora da necessidade da prática da coivara e da pecuária extensiva), os períodos de cheias e a acidentada topografia da região já são em si mesmos um contraponto ao generoso querer objetivo da Constituição em matéria de proteção indígena11;

IV -a desintrusão ou retirada dos não-índios, tão massiva quanto pacificamente, seguida de majoritário reassentamento por parte do governo federal, já sinaliza a irreversibilidade do procedimento. Daí porque o fato da antiguidade de instalação das vilas “Água Fria”, “Socó”, “Vila Pereira” (do Surumu) e “Mutum” não autoriza inferir que a Constituição, por haver proibido o garimpo em terras indígenas, optou pela permanência de qualquer dessas povoações. Ainda mais quando, a partir de 1990, a ocupação não-índia somente se deu em função da chegada dos garimpeiros que foram retirados da Terra Indígena Yanomami durante a operação conhecida por Serra Livre. Nada justifica tal ilação, pois o fato é que já não há como concluir pela viabilidade do retorno do garimpo e da economia privada das fazendas, num atual contexto sócio-econômico-institucional de quase absoluta presença de índios (nas vilas Socó e Água Fria, por ilustração, o que remanesce da presença não-índia se restringe a 1 e 3 ocupações, respectivamente);

V – são nulas as titulações conferidas pelo INCRA, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, assim como inválida é a ocupação da “Fazenda Guanabara”. Se não, veja-se: a) a autarquia federal, baseada em estudo de 1979, constante de procedimento demarcatório inconcluso12 (ausentes portaria declaratória e decreto homologatório), sem qualquer consulta à FUNAI arrecadou terras da União como se devolutas fossem, alienando-as diretamente a particulares; b) sucede que as terras já eram e permanecem indígenas, sendo provisoriamente excluídas dos estudos de 1979 e de 1985 apenas para superar “dificuldades que teria o Órgão Tutelar em demarcar” tal área (dificuldades consistentes em litígios dos índios frente aos nãoíndios13; c) já a titulação da Fazenda Guanabara, alegadamente escorada em sentença com trânsito em julgado, proferida em ação discriminatória, também ela padece de vício insanável. É que a referida ação não cuidou da temática indígena, pois, equivocadamente, partiu do pressuposto de se tratar de terra devoluta. O que se comprova pelo acórdão do TRF da 1ª Região, transitado em julgado, na ação de manutenção de posse que teve por autor o suposto proprietário privado. Acórdão que vocalizou o seguinte: “comprovada através de laudo pericial idôneo a posse indígena, é procedente a oposição para reintegrar a União na posse do bem”14 . Pelo que não podem prosperar as determinações do Despacho nº 80/96, do então Ministro de Estado da Justiça, pois o que somente cabe aos detentores privados dos títulos de propriedade é postular indenização pelas benfeitorias realizadas de boa-fé;.

VI – os rizicultores privados, que passaram a explorar as terras indígenas somente a partir de 1992 (após a promulgação da Lei Fundamental de 1988, destarte), não têm qualquer direito adquirido à respectiva posse. Em primeiro lugar, porque as posses antigas, que supostamente lhes serviram de ponto de partida, são, na verdade, o resultado de inescondível esbulho15 . Como sobejamente demonstrado no laudo e parecer antropológicos, os índios foram de lá empurrados, enxotados, escorraçados. Não sem antes opor notória resistência, fato que perdura até hoje. Em segundo lugar, porque a presença dos arrozeiros subtrai dos índios extensas áreas de solo fértil, imprescindíveis às suas (dos autóctones) atividades produtivas, impede o acesso das comunidades indígenas aos rios Surumu e Tacutu e degrada os recursos ambientais necessários ao bem-estar de todos eles, nativos da região.

[sic.]132. Enfim, tudo medido e contado, tudo visto e revisto − sobretudo quanto a cada um dos dezoito dispositivos constitucionais sobre a questão indígena −, voto pela improcedência da ação popular sob julgamento. O que faço para assentar a condição indígena da área demarcada como Raposa/Serra do Sol, em sua totalidade. Pelo que fica revogada a liminar concedida na Ação Cautelar no 2009, devendo-se retirar das terras em causa todos os indivíduos não-índios.

É como voto.

Notas de rodapé:

1 Eis o que dizem os §§ 3º e 4º do art. 174 da Constituição acerca das atividades de garimpo, proibidas em terras indígenas: “O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros”; “As cooperativas a que se refere o parágrafo anterior terão prioridade na autorização ou concessão para pesquisa e lavra dos recursos e jazidas de minerais garimpáveis, nas áreas onde estejam atuando, e naquelas fixadas de acordo com o art. 21, XXV, na forma da lei”. Quanto ao motivo em si da proibição do garimpo em terras indígenas, é por se tratar, inicialmente, de atividade significativamente degradante do meio ambiente, sobretudo pelo despejo de mercúrio em águas correntes. Sobremais, o convívio com os garimpeiros tem acarretado para os índios, historicamente, um sem número de vícios e doenças extremamente danosos à sua reprodução física e cultural.
2 Ver .”A Gramática do Tempo”: para uma nova cultura política, vol. 4, São Paulo: Cortez, pp. 433/469.
3 Fls. 1.296/1.300 do vol. 5.
4 Vide membros do grupo técnico interinstitucional às fls. 425 do vol. 2. Remarque-se que nada foi feito às escondidas.
5 Fls. 583/585 do vol. 3.
6 Fls. 1.314/1.322 do vol. 6
7 Fls. 1.430: identificação dos membros do Grupo de Trabalho. Fls. 1.432: identificação dos dois servidores do Governo do Estado como motoristas.
8 Fls. 1.265/1.267 do vol. 5.
9 Fls. 1.987/1988 do vol. 8.
10 Fls. 727/728 do vol. 3.
11 Generoso querer da Constituição que, de modo algum, retira dos não-índios o espaço necessário para seu adequado desenvolvimento. É que, em se tratando do Estado de Roraima (como da maioria dos Estados da região Norte do Brasil), as extensões territoriais são superlativas. Prova disso é que as terras não-indígenas do Estado de Roraima se estendem por uma área de 121.182,19 km2, para uma população de menos de 400 mil habitantes. Só para que se tenha uma idéia da extensão dessas terras, o Estado de Pernambuco, com mais de 8 milhões de habitantes, possui 98.311,616 km2. Já o Estado do Rio de Janeiro, com apenas 43.696,054 km2, é habitado por mais de 15 milhões de pessoas.
12 Procedimento estabelecido, sucessivamente, pelos Decretos nos 76.999/76 e 88.118/83, hoje já revogados.
13 Afirmação da antropóloga coordenadora do Grupo de Trabalho de 1984, constante da Informação DEID/FUNAI 007/98 (fls. 1143/1169, volume 5).
14 Processo nº 1998.01.00.0850320, trânsito em julgado em 08/01/2004.
15 Esbulho que veio acompanhando da multiplicação do tamanho de fazendas na região. A história documentada pelos próprios posseiros demonstra que a Fazenda Depósito media, em 1954, 2.500 hectares (fls. 2.922). Em 1958, formou-se a Fazenda Canadá com parte da chamada Fazenda Depósito e já agora com extensão de 3.000 hectares (fls. 2.895 e 2924); portanto, maior que toda a área dividida. Em 1979, Lázaro Vieira de Albuquerque vende a Fazenda Canadá e nessa data possuía não mais que
1.500 hectares (fls. 2.925). Em 1982, as Fazendas Depósito e Canadá são vendidas e somam 3.000 hectares (fls. 2.926). Em 10/04/1986, as Fazendas Depósito (agora com 3.000 hectares), Canadá (com 3.000 hectares) e Depósito Novo (com 3.000 hectares), são vendidas, “podendo ainda as áreas totais serem dimensionadas em proporção maior de 9.000 hectares” (fls. 2927).

Supremo Tribunal Federal (STF), 27 de Agosto de 2008