Quando Joênia Batista de Carvalho, advogada brasileira da etnia wapichana, ocupou a tribuna do STF, na quarta-feira, não representou apenas a causa territorial dos indígenas de Roraima, como constava da agenda. Ao se paramentar com as marcas faciais de sua tribo e arrolar os fatos da relação dos indígenas de Roraima com o general Rondon e o Exército na demarcação dos confins do território brasileiro, o que os fez brasileiros muito antes de outros protagonistas do pleito, pôs em causa conexões inevitáveis do que motiva o processo. Trata-se de um processo de conotação histórica porque nele está em jogo mais do que a contestação do direito dos índios daquele Estado a uma reserva íntegra, já decretada com base na Constituição, que lhes assegure a materialidade de seu território de ocupação imemorial.
A invocação de problemas de segurança nacional em relação à demarcação de um território indígena contínuo e íntegro na faixa de fronteira é compreensível, mas parece irrelevante no mundo moderno, em face dos recursos técnicos de que dispõe o aparato responsável pela segurança das fronteiras do País. Esses setores recebem fotografias aéreas das diferentes regiões brasileiras a cada tantas horas, feitas a partir de satélite, e a cada tantos dias fotografias de melhor resolução. As Forças Armadas brasileiras, com esses recursos, sabem até mesmo que tipo e tamanho de avião estacionou num aeroporto até horas depois de o avião ter decolado, simplesmente com as imagens de seu fantasma na imagem gerada e deixada por sua temperatura no solo. O mesmo monitoramento identifica diariamente aviões não autorizados, procedentes de países vizinhos, que invadem o espaço aéreo brasileiro. A lei do abate permite que tais aviões sejam derrubados, caso não se identifiquem e não pousem onde os pilotos dos caças de abordagem determinarem.
O que o País precisa não é que os índios de Roraima sejam culturalmente lesados em nome da segurança das fronteiras. Precisa que as Forças Armadas estejam devida e permanentemente equipadas e treinadas para cumprir sua função constitucional na defesa das fronteiras do País. E isso estão, cabendo assegurar que disponham sempre do que necessitam para que essa missão não seja, ela sim, prejudicada. No Alto Rio Negro, que faz fronteira com a Venezuela e a Colômbia, território do município de São Gabriel da Cachoeira, com uma brigada do Exército estabelecida, em que 85% da população são indígenas, além do português são línguas oficiais o nheengatu, o baniwa e o tukano e nelas são publicados leis, decretos, portarias, editais. Nem por isso a segurança é menor.
No litígio que corre no Supremo, entre arrozeiros e governo federal, de que as vítimas do conflito territorial são os índios, há uma disputa entre duas concepções de terra: a terra como morada ancestral, referência de um modo de viver e de uma consciência do mundo que, suprimida, desencadeará o desaparecimento social e cultural de seus protagonistas; e a terra como mercadoria, mero instrumento de troca e produção, que pode ser comprada e vendida em qualquer lugar. Sua posse pelos arrozeiros, declarada ilegal no voto do ministro-relator, não é, pois, referência simbólica de identidade nem meio de sobrevivência cultural.
No processo está em jogo, também, uma tendência da história brasileira relativa à diferença entre a terra como propriedade fundiária e o território como patrimônio da nação. No antigo regime sesmarial, antecessor do atual regime fundiário, o Estado era titular do domínio da terra e os sesmeiros tinham dela a posse útil. A Lei de Terras, de 1850, alterou esse direito de modo que os fazendeiros se tornaram titulares de domínio e posse, um direito pleno. Com a Revolução de 1930, o Estado brasileiro tratou de recuperar em parte o domínio da terra para sobre ela exercer sua soberania no que sobrepusesse os interesses nacionais aos interesses privados. Nessa tendência houve a separação legal de solo e subsolo, retornando o subsolo e tudo que contém ao domínio do Estado. O mesmo acabou acontecendo com as terras do Distrito Federal, as marinhas e as terras indígenas.
O que está em jogo no Supremo é, portanto, a interrupção ou a mitigação do processo de reconquista do domínio do território pelo Estado Nacional. Os interesses dos índios, nesse aspecto, coincidem com os do Estado; o dos arrozeiros, não. Nas conexões dessa tendência histórica, temos o surgimento de sujeitos de direito e sujeitos de brasilidade diversos do convencional, mas igualmente legítimos.
Vale lembrar que em países como a Inglaterra, quando a expansão do capitalismo, no século 17, colidiu com direitos tradicionais da população, as lutas sociais asseguraram o reconhecimento dos direitos sociais como direitos precedentes em relação aos direitos econômicos e à conseqüente coisificação dos seres humanos na devastação cultural que se disseminava. No Brasil não tivemos, com a força social devida, instituições tradicionais reguladoras dos direitos dos pobres, trabalhadores e desvalidos porque esta era, afinal, uma sociedade escravista, resumida ao mandar e obedecer. As lutas tardias dessas populações, dos banidos da condição de sujeitos e privados do reconhecimento de identidade própria e ancestral, acabaram pondo na ordem do dia a reinvenção do Brasil numa perspectiva pluralista e multicultural. Mesmo no direito de propriedade, a Constituição de 1988 abrandou sua rigidez para acolher a legitimidade do costume quanto à posse e ao uso da terra.
Estamos num momento de recriação identitária e, portanto, de inclusão social não pela assimilação aniquiladora, mas pelo reconhecimento integrador do direito à diferença. Essa tendência histórica pode ser enriquecida ou empobrecida, dependendo do que o STF decidir, pois ele dirá se a diferença é um direito universal ou se há brasileiros de primeira e de segunda, em que a diferença continuará residual, como um defeito de caráter.
José de Souza Martins é autor de Fronteira (A Degradação do Outro nos Confins do Humano), Hucitec, São Paulo, 1997
OESP, 31/08/2008, Aliás, p. J4.