A reserva de grandes áreas para usufruto exclusivo de índios em zonas de fronteira gera duas preocupações. De um lado, potencializa a vulnerabilidade da soberania nacional, de vez que abre caminho para que as tribos isoladas sejam usadas como massa de manobra por ONGs e organismos estrangeiros interessados em internacionalizar, se não toda, larga parte da faixa fronteiriça da Amazônia brasileira. De outro, se é imperativo respeitar os direitos históricos dos índios, o poder público tem tratado o problema de forma particularista, com viés étnico e abordagem unilateral, capazes de reintroduzir na sociedade uma intolerância aos índios que não interessa à unidade da nação.
É inquietante que muitos brasileiros de boa-fé, partidários da causa indígena, demonstrem irritação com episódios como a demarcação de 9,6 milhões de hectares (a área do Líbano) para os ianomâmis, no Amazonas e em Roraima, e, agora, mais 1,7 milhão de hectares na reserva de Raposa Serra do Sol, para cinco tribos de Roraima.
Se seguirmos o modelo histórico de ocupação do território, baseado em nossa formação étnica tripartite, veremos que o respeito às prerrogativas dos índios não pode implicar desproteção de regiões tão cobiçadas como a Amazônia, impedindo-se, como agora se impede, a vivificação das zonas de fronteira que tradicionalmente se faz pela presença não só do Estado como sobretudo de empreendedores não índios, a exemplo dos agricultores de Roraima, que ocupam a terra e a fazem produzir riquezas em benefício de todos. Fronteiras ricas e ermas aguçam a ambição alheia. Foi com uma ocupação precária que consolidamos o território deste país continental, inclusive anexando a maior parte da Amazônia que, pelo Tratado de Tordesilhas, pertencia à Espanha.
Urge tratarmos o assunto com a sabedoria necessária para não estigmatizar os índios como vilões, tampouco apequená-los como vítimas que uma certa Historiografia e Antropologia jogam num vale de lágrimas da História do Brasil. Nosso caldeirão cultural incorpora em vez de segregar. O destino de todos, dos índios ao mais recente imigrante, é se integrarem na sociedade nacional. A esse ideal dedicou-se o Humanismo de nossas inteligências mais poderosas, de José Bonifácio a Darci Ribeiro, do Marechal Rondon aos Irmãos Vilas Boas.
Como reconheceram os intérpretes mais certeiros, a começar por Gilberto Freire, os índios figuram entre os construtores do Brasil. De seu seio saíram homens de Estado, como Arariboia, parceiro de Estácio de Sá na expulsão dos franceses e consolidação do Rio de Janeiro, no século XVI, e Poti, ou Antônio Filipe Camarão, herói da guerra aos holandeses no século XVII -- ambos agraciados com o título de Dom e capitão-mor pela Coroa portuguesa. Mesmo os guerreiros que se opuseram à colonização lusa, como os tuxauas tamoios, Cunhambebe, aliado dos franceses, e o manao Ajuricaba, são heróis do eclético panteão nacional: lutaram com bravura, e ao menos Ajuricaba, ao preferir o suicídio à prisão, constelou na morte o lema de José Bonifácio de que "a liberdade é um bem que não se pode perder senão com o sangue".
Séculos depois desses episódios, a nação é uma só. Não podemos correr o risco de abrigar um Estado multinacional e uma nação balcanizada. Ao contrário: conjugando isonomia e respeito às diferenças, podemos comemorar o saldo amalgamado de índios, brancos e negros que forjaram o povo brasileiro.
Cada tentativa de conferir superioridade de qualquer tipo a um deles deve ser repudiada. Nesse conflito, não ocorre o dilema de escolher entre irmãos o que será ungido e o que será imolado, pois as soluções devem atender e beneficiar todos e sobretudo ao interesse geral de um país forte, justo e democrático no engrandecimento de seu povo.
Aldo Rebelo, deputado federal (PCdoB-SP).
O Globo, 06/04/2009, Opinião, p.7.