Macunaíma, 'herói da nossa gente', nasceu na beira do rio Urariocera, que hoje se encontra no estado de Roraima. Ele simboliza 'um herói sem nenhum caráter' e vivencia incessantes metamorfoses. É índio, é negro, é branco, xamânico e moderno. O personagem-mito de Mário de Andrade também é uma síntese da diversidade cultural brasileira e de uma identidade nacional costurada por inúmeras proveniências culturais, que convivem em harmonia.
Curiosamente, Macunaíma nasceu na região de Raposa/Serra do Sol, foco de uma perigosa e falsa polêmica sobre a demarcação contínua das terras dos índios Ingaricó, Macuxi, Patamona, Taurepang e Wapichana. Esses povos são guardiões de culturas milenares, cujas expressões e manifestações devem ser protegidas e promovidas – assim como o devem todas as tradições culturais brasileiras. A polêmica sobre a demarcação das terras dos índios foi encaminhada a nossa Suprema Corte, que deve brevemente se pronunciar. Caso tenhamos uma decisão contrária aos direitos desses povos indígenas, daremos início a um drástico retrocesso em nossas políticas de diversidade cultural. Diante, portanto, da delicada situação que ameaça o convívio multicultural e democrático que marca o nosso País, o Ministério da Cultura não poderia silenciar.
Apresentaremos, neste breve espaço, alguns argumentos que evidenciam o absurdo da situação e de suas possíveis conseqüências.
Lembremos da nossa Constituição de 1988. O seu Art. 231 reconhece o direito originário dos índios ao usufruto dos recursos naturais dos territórios tradicionalmente ocupados por eles. Ora, uma reconfiguração do território de Raposa / Serra do Sol dividido em ilhas implica em negar o que preconiza o referido artigo, porque impede a reprodução material e cultura de suas vidas. É preciso que a sociedade e os Ministros do STF compreendam que se trata de um direito constitucional, fruto de uma longa e legítima conquista histórica. Uma recusa ao direito de demarcação contínua de Terras Indígenas representaria ignorar um dos pilares da nossa Constituição. Pois como esclarece o eminente jurista constitucionalista José Afonso da Silva, a localização e a extensão da área demarcada não são ditadas por critérios de conveniência do poder público, e sim pela ocupação tradicional.
O Brasil é signatário de outros instrumentos jurídicos internacionais que também contribuem para a proteção dos direitos indígenas e dos direitos culturais. A Carta dos Índios da ONU é um exemplo. A Convenção para a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, aprovada em 2005 e ratificada pelo nosso Congresso Nacional, é outro. Ambos evidenciam como a política indigenista brasileira é sim extremamente contemporânea e dialoga com os principais instrumentos jurídicos internacionais.
Também precisamos alertar para o perigo de certas opiniões que consideram as culturas indígenas como atrasadas ou um empecilho ao desenvolvimento. Além de preconceituosas, essas concepções não percebem a relevância das culturas indígenas não só para a conservação e preservação da floresta tropical e de outros biomas, mas para a sua produção, como vem mostrando as recentes pesquisas arqueológicas na Amazônia. No plano societário, o "esquecimento" e/ou desconhecimento da ocupação multimilenar da floresta favorece uma lógica de ocupação e de povoamento de tipo colonial, baseada na predação dos recursos e, principalmente, na imposição de modelos de exploração que foram concebidos para outras realidades e que ignoram a especificidade maior da Amazônia, que é ser floresta. Tal atitude, colonial até mesmo quando manifestada por brasileiros, conduz ao não-reconhecimento da cultura e dos saberes amazônicos e ao desprezo por suas populações tradicionais (povos indígenas, seringueiros, ribeirinhos). Assim, a Amazônia segue desentendida e supostamente des-conhecida. Mas, a pergunta que ninguém faz é: Por que os povos indígenas sabem manejar a floresta sem destruí-la e, mais ainda, produzindo diversidade? Afinal, basta olhar o mapa da região e constatar que eles são os guardiões das áreas mais preservadas e que são eles que contêm a devastação. Com efeito, os índios ocupam na Amazônia uma área superior à da França e Espanha juntas; embora sejam menos de 500 mil, cerca de 240 mil deles vivem em Territórios Indígenas que somam 13% da superfície brasileira (98,6% em 414 áreas na Amazônia, 1,08 milhão de quilômetros quadrados, 20,7% da Amazônia Legal). Considerando que ocupam essas terras há séculos ou há milênios, dependendo dos casos, é óbvio que são os principais "especialistas" em seu manejo. Por isso, seus saberes precisam ser reconhecidos, valorizados pela sociedade nacional e inseridos numa abrangente política de desenvolvimento, que contemple as especificidades de nossa sociodiversidade e de nossa biodiversidade.
Alguns alertam sobre um imaginado perigo de uma demarcação em zona de fronteira. Seria realmente um afronta à nossa soberania? O belo exemplo dos vinte anos da demarcação do território yanomami mostra a falácia desse argumento. Sabemos hoje que há um debate internacional sobre a Amazônia, um debate sobre a governança dessa importante região. Caso não desenvolvamos um modelo eficaz e simbólico de sua proteção, seremos internacionalmente deslegitimados. Talvez a maior ameaça à soberania do Brasil se encontre no mantimento de uma mentalidade colonial expressa nas próprias políticas desenvolvimentistas que estamos implementando nessa região e na negativa repercussão internacional que delas decorre.
Não sejamos ingênuos. A decisão do STF sobre Raposa / Serra do Sol terá enormes repercussões. O destino da terra onde nasceu Macunaíma se tornou uma encruzilhada na história do nosso País. Ao invés de aprofundar as conquistas da Constituição de 1988 e celebrar nossa riqueza e diversidade cultural, pode desencadear um movimento de ataque aos direitos indígenas a seus territórios e, por tabela, uma ofensiva contra as culturas tradicionais e contra o meio-ambiente, sobretudo a floresta amazônica, no momento mesmo em que esta se revela crucial no combate ao aquecimento global. É por isso que, como Ministro da Cultura, não poderia me ausentar de um debate tão importante para a preservação e proteção da diversidade cultural brasileira.
Juca Ferreira, sociólogo baiano, foi secretário-executivo do Ministério da Cultura na gestão de Gilberto Gil. Atual ministro interino, assumirá a pasta na quinta-feira 28.
Carta Capital, 27/08/2008.