A História é outra

Autor: 
José Theodoro M. Menck
Data de publicação: 
17/04/2008
Fonte: 
OESP

Li, com surpresa, a matéria 'RR é brasileira graças a índios' (13/4, A12), com a posição da 'advogada especialista em direito socioambiental Ana Valéria Araújo'.

Não quero entrar em questões referentes à advocacia, muito menos às 'socioambientais' (seja lá o que isso quer dizer), mas não me posso omitir quanto ao absurdo histórico por trás das observações da colega - também sou advogado, mas não 'especialista', e sim doutor em História das Relações Internacionais, cuja tese de doutorado foi a questão da fronteira do Brasil com a então Guiana Inglesa (justamente onde se situa a reserva Raposa Serra do Sol).

No texto ela diz que 'Roraima, na verdade, é brasileira por causa dos índios' e, mais avante, após invocar a causa defendida por Joaquim Nabuco junto ao rei da Itália em 1904: 'O que mais pesou foi a conversa com os índios, que atestaram que queriam ser e se consideravam brasileiros.' Com as vênias de estilo, devo dizer que tais declarações somente podem vir de quem nunca leu os 18 volumes que formam as três Memórias Brasileiras escritas e entregues por Joaquim Nabuco ao rei Vitório Emanuel III nos primeiros anos do século 20. Antes de mais nada, deve ser dito que o Brasil perdeu a demanda, ao contrário do que deixa entender a dra. Ana Valéria.

Depois, o depoimento dos índios foi entregue pela Inglaterra, com todos eles se declarando ingleses - o território contestado havia sido 'neutralizado' militarmente na primeira metade do século 19, mas a Inglaterra possuía grande presença civil na área, e quando, depois de mais de 60 anos, a questão veio a ser julgada, os ingleses conseguiram declarações dos caciques macuxis (os índios da terra) se declarando súditos da Inglaterra. A resposta de Nabuco foi coletar declarações antigas, anteriores à ocupação inglesa na área (ou seja, antes de 1830), em que 'viajantes' que haviam passado pela região declaravam que havia forte presença militar luso-brasileira na região do Lago Parima, no alto curso do Rio Rupunani, hoje pertencente à Guiana. Em verdade, Roraima é hoje brasileira graças a centenas de desbravadores lusitanos que adentraram aqueles inóspitos rios ao longo dos séculos 17, 18 e 19, cujos nomes foram ciosamente registrados pela burocracia portuguesa e resgatados por Joaquim Nabuco em suas Memórias Brasileiras. Em suma, estudando os documentos, vê-se claramente que Roraima é brasileira não obstante os índios, cujos pontos de vista não foram sequer considerados no laudo arbitral do rei da Itália, que dividiu a área, dando dois terços à Inglaterra e um terço ao Brasil (uma franca derrota para o País de que Joaquim Nabuco nunca se recuperou, pois nunca mais voltou a residir no Brasil). A autora perverteu a História.

José Theodoro M. Menck, josetheodoromenck@yahoo.com.br

OESP, 17/04/2008, Fórum dos Leitores, p. A2-A3.