Na semana passada (27/08), o Ministro Relator do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto, surpreendeu com a força e a coragem de seu voto histórico em favor dos povos indígenas da Raposa-Serra do Sol, em Roraima, e do Brasil. Falou-se de uma Constituição que reafirma a compatibilidade da demarcação de terras indígenas de maneira contínua com a integridade das fronteiras do país. Falou-se de uma era constitucional compensatória que visa ao protagonismo de setores minoritários; de uma Carta Magna que valoriza e protege valores, culturas e formas de organizações indígenas; e de um país onde há lugar para todos.
Enquanto a questão da demarcação contínua das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos Macuxi, Wapichana, Taurepang, Patamona e Ingaricó ainda permanece sob discussão no Supremo Tribunal Federal, o Brasil já tem o que comemorar, e também o que refletir. Não há quem tire a beleza de um dia histórico em defesa dos indígenas e seus direitos na suprema corte do país - ainda que outros dias venham como dias comuns, a repetir os erros do passado, ainda que o voto em questão seja vencido. Contudo, na indesejada hipótese de voto vencido, preocupa saber que, em prejuízo dos povos indígenas, uma errônea opinião pode se fazer unânime e forte, a prejudicar a defesa de direitos e interesses indígenas no Brasil e no mundo: a suposição de que a Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas pode ser desprezada no Brasil. Não pode.
Aqui surge então a reflexão para o futuro. Sugere o Ministro Relator em seu voto que os “índios brasileiros nem sequer precisam (da Declaração da ONU sobre direitos indígenas) para ver sua dignidade individual e coletiva juridicamente positivada, pois o nosso Magno texto federal os protege por um modo tão próprio quanto na medida certa.” E conclui que “É a nossa Constituição que os índios brasileiros devem reverenciar como sua carta de alforria no plano sócio-econômico e histórico-cultural, e não essa ou aquela declaração internacional de direitos, por bem intencionada que seja.” Opiniões semelhantes - e outras mais extremadas no sentido de rechaçar por completo tal Declaração - surgiram no decorrer da semana.
A premissa de que o texto magno brasileiro confere proteção aos povos indígenas está corretíssima. No entanto, concluir que por tal razão podemos desprezar a Declaração da ONU ou qualquer ditame de organismos internacionais (dos quais o Brasil é parte por livre escolha) é contribuir para uma afronta ao direito e às relações internacionais e constitucionais. É equivocada a idéia de que documentos e tratados internacionais são necessariamente contrapostos ao direito e soberania nacionais. Não são. Instrumentos internacionais refletem em si a manifestação da soberania e liberdade nacional de cada país no cenário internacional. Cada país pode escolher ou não ratificar um tratado (seja de direito comercial ou de direitos humanos) e incorporá-lo como lei doméstica e vinculante. Cada país tem a liberdade para votar favoravelmente ou contra uma Declaração de direitos humanos, arcando com as conseqüências morais e políticas de seu posicionamento internacional.
Quando comunidades indígenas, por meio de suas organizações ou organizações de direitos humanos acessam o sistema internacional de direitos humanos, dentro dos requisitos de processo de direito nacional e internacional, para fazer valer seus direitos fundamentais (inclusive reconhecidos pela Carta Magna), elas estão contribuindo para que o país se auto-examine e reconheça seus limites para, daí então, poder avançar.
Reclamações internacionais de direitos humanos ajudam a fortalecer a políticas de direitos humanos e os mecanismos de proteção aos cidadãos, ao revés de constituir intromissão estrangeira. Em assunto indígena, reclamações internacionais de direitos humanos (no âmbito do mecanismo CERD, OIT e do sistema interamericano de direitos humanos, e não da Declaração da ONU) evidenciam o entendimento de que as comunidades indígenas reclamantes vêem o Brasil como seu Estado e, por essa razão, reclamam por igualdade de tratamento e de direitos como parte fundamental da cidadania brasileira.
É a própria Constituição brasileira que recepciona o direito internacional dos direitos humanos em seu artigo 5º, parágrafos 2 e 3, comprovando que a Carta Magna nacional caminha de mãos dadas com o direito internacional dos direitos humanos. Portanto, para manter-se na “vanguarda mundial do trato das questões indígenas”, como afirma o Ministro Relator no caso Raposa Serra do Sol, não podemos desprezar o avançado compromisso de intenções e guia norteador das relações entre Estado e povos indígenas que é a Declaração.
A Declaração da ONU sobre direitos indígenas não é lei ou tratado internacional, como bem lembrou a advogada das comunidades indígenas ante a Suprema Corte. A Declaração reafirma a contínua existência indígena e suas vontades de preservar e desenvolver suas próprias culturas e tradições, bem como de participarem das decisões e das políticas que se refiram a eles. A Declaração da ONU não invalida qualquer dispositivo da Constituição brasileira; não incide sobre terras indígenas de maneira a sobrepor-se ao Direito nacional; e não atenta contra a integridade territorial do país. Construída ao longo de um árduo e demorado processo de entendimentos e negociações entre Estados, povos e organizações indígenas, apenas em 2007 a Declaração foi aprovada pela Assembléia Geral da ONU, com 144 votos de países a favor, 4 contra e 11 abstenções. A adoção da Declaração consagrou o início da nova era de direitos humanos em questões indígenas, mas não antes sem haver passado por ajustes que correspondiam com o interesse dos Estados em esclarecer os limites do termo “self-determination”.
E o que diz a Declaração sobre o assunto? O artigo 3 da Declaração apresenta a estrutura básica do referido direito à livre-determinação, advinda do artigo primeiro padrão dos Pactos de Direitos Humanos da ONU. Já o artigo 4 esclarece que o direito à livre-determinação no contexto indígena está relacionado ao direito à autonomia e ao auto-governo indígena para as questões relacionadas com os assuntos internos e locais indígenas. Trata-se, portanto, de espécie diferenciada de auto-determinação, que a comunidade internacional achou prudente chamar de livre-determinação para explicitamente proteger a integridade territorial dos Estados soberanos.
Na seqüência, o artigo 5 da Declaração esclarece que o escopo do referido direito reside na participação e envolvimento dos povos indígenas na vida nacional do Estado, ao mesmo tempo em que se protege a identidade cultural indígena. Os artigos 18, 19 e 20 reafirmam a relação dos povos indígenas com o Estado, nas inúmeras atividades de interesses das duas partes.
O artigo 36 versa sobre o direito dos povos indígenas de manter e desenvolver os contatos, as relações e a cooperação com seus próprios membros e outros povos através das fronteiras onde vivem. Especificam-se as atividades de caráter espiritual, cultural, político, econômico e social indígenas - atividades que transcendem as barreiras formais das fronteiras, mas não necessariamente constituem afronta à estrutura estatal.
Por fim, o Artigo 46 (1) da Declaração é explícito no sentido de esclarecer que nenhum dispositivo do documento poderá ser interpretado para autorizar ou fomentar qualquer ação que afete, no todo ou em parte, a integridade territorial ou unidade política dos Estados soberanos independentes, respeitando, assim, a Carta da ONU. A Declaração complementa e reforça os dispositivos constitucionais nacionais em matéria de direitos humanos.
Portanto, do importante voto em favor da causa indígena no Supremo Tribunal Federal, fica um ponto positivo e um desafio para o Brasil: a compreensão da temática indígena como temática de direitos humanos. O direito, e principalmente o direito indígena, evolui à medida que a sociedade envolvente passa a compreender e respeitar a diversidade cultural de outras coletividades. É através de diálogos internacionais e com povos indígenas que se atinge o maduro entendimento das questões. Portanto, se ao louvarmos a constituição brasileira, em seu caráter mais humanista e moderno, rechaçamos um documento internacional de direitos humanos, prendemo-nos a um paradoxo complexo que nos impede de verdadeiramente “conciliar colonização e indigenato”, como brilhantemente propõe o ministro Britto.
Na verdade, a maior garantia da não emancipação de grupos culturalmente distintos, que detêm direitos territoriais incontestáveis porque originários, se dá a partir da garantia da intenção indígena de fazer parte da sociedade maior sem ter de renunciar à sua etnia e cultura - verdadeira inclusão desses povos como parte da sociedade brasileira, e não apenas como folclore. Somente um Estado que efetivamente protege vidas e culturas indígenas através da não-discriminação pode fazer com que os indígenas sigam querendo o “país para ser deles e viver com eles para todo o sempre”, como relata o ministro.
A Declaração, a Constituição e o voto do Ministro Relator concordam entre si no mérito, não há disparates. Para conferir, vale uma leitura responsável e contextualizada da Declaração. Somente através de um processo educativo sobre a Declaração, enquanto documento de direitos humanos, será possível evitar qualquer tentativa de uso malicioso do instrumento em prejuízo dos povos indígenas do Brasil e do mundo. O Brasil quer, precisa e já se comprometeu a avançar ainda mais o humanismo e a vanguarda em termos constitucionais e de direitos indígenas. Resta agora fazê-lo.
Erika Magami Yamada, advogada formada pela Universidade de São Paulo, mestre em Direitos Humanos Internacionais pela Universidade de Lund, e doutoranda no Programa de Direito e Política Indígena da Universidade do Arizona.
ISA, 03/09/2008, Notícias Socioambientais.