TI Raposa/Serra do Sol: fundamentos históricos
Nádia Farage
Depto de Antropologia
IFCH – UNICAMP
Paulo Santilli
Depto de Ciências Sociais
FCL - UNESP
A terra indígena Raposa/Serra do Sol, demarcada com área de 1.747.464 hectares, homologada e registrada no Serviço de Patrimônio da União constitui, conforme reza o artigo 231 da Constituição Federal, o reconhecimento do Estado brasileiro aos direitos territoriais históricos dos povos indÌgenas que ali habitam, bem como seu direito ao futuro, visto serem as terras necessárias à sua reprodução física e social.
No que segue, tratamos da presença histórica dos Macuxi, Ingarikó, Patamona, Taurepáng e Wapishana nos campos e serras de Roraima, amplamente atestada pela documentação colonial, desde as primeiras incursões portuguesas no século XVIII.
Os aldeamentos indígenas
O vale do rio Branco foi objeto de um processo peculiar de ocupação colonial na segunda metade do século XVIII, em virtude de sua condição de fronteira portuguesa com as possessões da Espanha e dos Paises Baixos na Guiana.
Área marginal no quadro da economia amazônica – esta, por sua vez, também periférica em relação às demais regiões de colonização portuguesa na América –, o rio Branco, ao lado do alto rio Negro, foi uma das últimas áreas a serem alcançadas pelo avanço da colonização portuguesa na Amazônia. Tal ocupação tardia deveu-se basicamente ao fato de que a área não oferecia nenhum produto de exploração fácil e rentável para o mercado colonial. O baixo rio Branco foi, com efeito, objeto de exploração extrativista no período colonial, ali obtendo-se o cacau, item importante das exportações da Amazônia, e , em menor grau, a baunilha e outros produtos de extração. Muito mais tarde, em fins do século XIX e início do século XX, nesta área viria a ocorrer a exploração da balata. Porém, o baixo rio Branco certamente conforma área bastante diferenciada dos campos e serras no extremo norte do que é o estado de Roraima. Nesta última área em particular, os cronistas setecentistas inventariaram a ocorrência de produtos comerciáveis no contexto da economia colonial amazônica, como a baunilha, madeiras ou resinas, mas tal extração pôde ser adiada em favor da exploração de outras áreas de mais fácil acesso na Amazônia.
O apresamento clandestino de escravos índios atingiu a região do rio Branco no início do século XVIII e, de forma oficial, a partir dos anos trinta daquele século. É, entretanto, sob a égide do Tratado de Madrid, que dispunha sobre a demarcação das fronteiras coloniais luso-espanholas, que a ocupação do vale do rio Branco viria a se tornar um imperativo de ordem político-estratégica (Farage, 1991: 55ss).
Nesse sentido, a ocupação do rio Branco constitui caso limite da colonização do Estado do Maranhão e Grão-Pará que, à época colonial, compreendia a Amazônia portuguesa: por todo o vale amazônico, o domínio territorial português se fez valer por meio de aldeamentos indígenas. Isto porque, excetuandoo-se a fronteira com a Guiana Francesa, estabelecida pelo Tratado de Utrecht em 1713, os limites do noroeste amazônico permaneceram, por largo tempo, intencionalmente indefinidos, pois Portugal não possuía título para reclamá-los; só a ocupação de fato, pelo povoamento, poderia estabelecer tais limites. O Tratado de Madrid, em 1750 - primeira tentativa, desde Tordesilhas, de delimitação das fronteiras coloniais luso-espanholas -, guiava-se, exatamente, pelo princípio da posse de fato, estabelecendo que cada parte deteria os territórios até então ocupados e povoados. Assim, durante o ministério pombalino, a tônica foi a de povoar “todas as terras possíveis”, contando com a população indígena como base de uma sociedade colonial. Joaquim Nabuco (1941) argumentou, com muita agudeza, que, antes mesmo da consolidação pombalina, a Coroa portuguesa via na população indígena o nexo estratégico para seu domínio efetivo da Amazônia. Com efeito, repetidas cartas régias recomendavam o bom tratamento dos índios como interesse de Estado: um claro exemplo disso é a Carta Régia de 13 de julho de 1710, em que o Rei ordenava ao governador que coibisse os abusos praticados pelos colonos contra os índios, para que estes últimos não fugissem, “com que perdem a Religião, e Eu os vassalos, e habitadores de minhas terras”. Ainda mais exemplar é o Parecer do Conselho Ultramarino de 20.12.1695, que afirmava que "os Gentios erão as Muralhas dos Certoens", expressão que Nabuco, muito acertadamente, considerou a suma da legislação indigenista portuguesa durante três séculos (Farage, 1991: 41-42).
A iniciativa oficial concede, assim, a feição característica da ocupação portuguesa no rio Branco: a colonização não se pautou pelo estabelecimento de colonos civis, mas, ao contrário, o início de uma ocupação efetiva da região na década de 70 do século XVIII foi basicamente desempenhada pelo Estado, consistindo na construção de uma fortaleza, o Forte São Joaquim, e a formação de aldeamentos indígenas sob a jurisdição daquela guarnição militar. No quadro da orientação estratégica da ocupação portuguesa da bacia do rio Branco, aos povos indígenas da área foi atribuído um papel decisivo: deles se esperava que fornecessem a base do povoamento colonial, que, por sua vez, representaria uma garantia inconteste da soberania de Portugal sobre o território. Nas palavras do coronel Lobo D’Almada [(1787) 1861:679], um dos ideólogos da colonização do rio Branco, “uma das maiores vantagens que se pode tirar do rio Branco é povoal-o, e coloniar toda esta fronteira com a imensa gente que habita as montanhas do paiz” (Farage, 1991:128).
Os cronistas setecentistas registram alta diversidade étnica em todo o vale do rio Branco; no mapa 1, encontram-se plotadas as informações do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira e do coronel e, mais tarde, governador Manuel da Gama Lobo D’Almada, que forneceram descrição mais acurada, em virtude de haverem explorado a região nos anos oitenta do século XVIII. Cabe sublinhar que as informações de ambos são complementares, em particular quanto à localização dos Macuxi. Lobo D’Almada [(1787) 1861:674] os localizava na região serrana que se estendia do rio Rupununi em direção oeste, até o rio Surumu. Alexandre Rodrigues Ferreira complementava, ao listar as “Nações de Gentios do Tacutú”: “No Mahú Macuxis são os dominantes” (A.Rodrigues Ferreira, 1786, Diário do rio Branco, ms BN-RJ).
Entre os anos de 1777 e 1780 foram constituídos no rio Branco cinco aldeamentos, que somaram 1019 habitantes; entre 1784 e 1789, foram estabelecidos outros cinco aldeamentos seculares, que chegaram a contabilizar 1051 habitantes, atingindo os Wapishana, Paraviana, Sapará, Parauana e, em menor grau, os Macuxi e os Waycá (Ingarikó), habitantes das serras mais distantes. A localização aproximada dos aldeamentos e os deslocamentos populacionais que provocaram, em relação aos territórios indígenas, conforme se depreende da documentação, pode ser visualizada nos mapas 2 e 3.
Em 1780, ocorreu uma revolta generalizada da população indígena aldeada; os aldeamentos foram reorganizados em 1784 até nova revolta, em 1790. Após esta última revolta, quando os aldeamentos foram desmantelados e a população remanescente ou capturada foi dispersa por aldeamentos em diferentes pontos da Amazônia, o Estado não voltaria a investir politicamente no aldeamento de índios como forma de ocupação da área. O projeto de estabelecer aldeamentos indígenas e guarnições militares, como forma de preservação territorial, continuou, porém, presente, ao menos retoricamente, durante o Império. Da experiência colonial, restaria na região uma forma incipiente de exploração econômica, representada pela pecuária, de que trataremos adiante.
Deve-se observar que, habitantes de uma fronteira, fruto de disputa colonial, os povos indígenas na região também foram afetados pelo processo colonizatório holandês da Guiana, no mesmo período em que a colonização portuguesa se instalava. Os holandeses atingiram a região através de uma rede extensa e multilateral de trocas de manufaturados por escravos índios, que envolvia povos indígenas desde o baixo rio Essequibo até o vale do rio Branco. A inserção dos holandeses nesta rede de trocas lhes valeu a aliança política dos índios, que, mais tarde, seria reivindicada pela Inglaterra como título de domínio territorial (Farage,1991: 85-119).
O litígio de fronteiras entre Brasil e Inglaterra teve início na década de trinta do século XIX, com a instalação da missão anglicana de Pirara, nos campos entre o rio de mesmo nome e o rio Rupununi, fronteira ainda indefinida entre a Guiana Inglesa e o Império do Brasil. O governo brasileiro viria a considerar que a missão se encontrava em seus domínios e, em 1839, enviaria à região um destacamento militar para desalojá-la, sob a acusação de haver “alienado” ao Brasil quinhentos índios Macuxi e de instruí-los na língua e na religião inglesas. Em contrapartida, os relatórios do viajante naturalista R.H.Schomburgk, a serviço da Royal Geographical Society, ao descrever cenas violentas de apresamento, por militares brasileiros, de índios Macuxi e Wapixana - que deveriam engrossar as fileiras governamentais na repressão à Cabanagem -, mobilizaram o governo e a opinião pública inglesa, já sensibilizada pelas campanhas anti-escravidão (N.Farage, 1991; P.Rivière, 1995).
Propunha R.H.Schomburgk que a linha divisória entre Inglaterra e o Império brasileiro seguisse a margem direita do rio Tacutu, de suas nascentes até a junção com o rio Surumu, prosseguindo deste ponto às nascentes do rio Cotingo. A Inglaterra encampou a linha Schomburgk, dando curso ao lítigio com o Brasil. Em 1842, um acordo provisório entre os dois países veio a neutralizar o território disputado. A pendência só seria solucionada em 1904, por arbitragem submetida ao rei da Itália, resultando na linha fronteiriça que, ainda hoje, separa o estado de Roraima, Brasil e a República da Guiana.
Vê-se, assim, que, atualizando as linhas da disputa colonial setecentista, o estabelecimento da fronteira trazia, novamente, à cena o peso político-estratégico dos povos indígenas, seus habitantes. Com efeito, os povos indígenas constituíram elemento pivotal na argumentação das partes litigantes, ambas alegando as relações historicamente estabelecidas com os povos indígenas na área, em defesa de suas pretensões territoriais. A linha Schomburgk não vigorou e o Brasil manteve a maior parte do território disputado, que corresponde, em larga medida, à área atual da TI Raposa/Serra do Sol (vide mapa 5).
As fazendas nacionais
Como apontado pelos estudos de sub-sistemas econômicos baseados na pecuária (P.Rivière, 1972), esta foi tradicionalmente uma atividade de regiões economicamente marginais, com dificuldade de acesso a mercados, pois possibilitava o suprimento interno e, assim sendo, a relativa independência de que necessitam regiões isoladas. Esta linha explicativa bem se aplica ao início da pecuária em Roraima em fins do século XVIII: além de uma extração de lucratividade duvidosa, eram os campos que imediatamente se ofereciam à vista, e para eles os cronistas voltar-se-iam com insistência, realçando sua potencialidade para a criação de gado [M.G.Lobo D´Almada (1787) 1865:663; F.X.Ribeiro de Sampaio (1777) 1872:269-272, in Farage, 1986].
A pecuária não foi ainda uma atividade empreendida por colonos civis. Ao contrário, sua implementação foi uma iniciativa oficial, visando justamente integrar a região do rio Branco ao mercado interno colonial. Tal iniciativa partiu do Governo da Capitania de São José do Rio Negro durante a administração de Manuel da Gama Lobo D´Almada, que ali introduziu as primeira cabeças de gado em 1787.
Configurou-se, assim, àquela altura, outro aspecto importante, mas pouco explorado pela historiografia desta região: fazendas com imensa extensão de terras, cuja propriedade era do Estado. Tal tipo de propriedade certamente não configura uma peculiaridade única de Roraima, tendo também ocorrido em outros pontos da colônia. No entanto, sua singularidade reside no fato de que, em Roraima, tratava-se de terras indígenas que, em parte, foram assim reconhecidas posteriormente.
* NOTA DE RODAPÉ
As fazendas régias, ou, como foram conhecidas posteriormente, as fazendas nacionais do rio Branco1, não foram medidas ou demarcadas durante todo o século XIX. Havia, no entanto, o reconhecimento tácito de sua existência e, é essencial notar, a propriedade do Estado sobre tais terras jamais foi contestada2.
Na segunda metade do século XIX, no quadro da disputa de fronteiras com a Inglaterra, o Estado brasileiro veio a se interessar em descrever os limites das fazendas e determinar-lhes a origem. Frise-se que as descrições dos limites, em especial da fazenda São Marcos, variaram em função de tomarem ou não em conta o território neutro.
Um ofício do Procurador Fiscal da Tesouraria da Fazenda ao Presidente da Província do Amazonas, de 1856 assim os descrevia:
“[...] Fazenda São Bento – Confina: Ao Norte, com o Rio Branco; ao Sul, com o Cánamê e em parte se estende para o territorio Venezuelano, que nunca foi explorado.
Fazenda São Marcos – Confina: Ao Norte, com o terreno neutro, que termina na Cordilheira do Paracaúna (sic) e que tem sido pouco explorado; ao Sul, com o Rio Branco e o Tacutú, sendo o ponto de confluencia destes dois rios; a Este, como Tacutú e o Surumú; e ao Oeste, com o Rio Branco e o Parimé.
Fazenda São José – Confina: Ao Norte, com o Tacutú, em parte, e em parte com o Repumini (sic); ao Sul, em parte com o Igarapé do Surrão, que a divide da fazenda São Pedro, do Capitão Bento Ferreira Marques Brazil, e em parte com terras devolutas que este chama de suas; a Este, com a Província do Pará; e ao Oeste, com o Rio Branco. [...]” (Procurador Fiscal da Thesouraria da Fazenda ao Presidente da Província do Amazonas, of. No. 3, de 23/01/1866, apud Luiz de França e Sá, 1902, ms. IHGB, in Farage, 1986).
Já em 1865, o Major Gabriel Antonio Ribeiro Guimarães informava ao Presidente da Província do Amazonas os limites das três fazendas, sem mencionar o território neutro, o que, vale insistir, estendia os limites das fazendas São Marcos e São José sobre a área em litígio:
“[...] A extensão dos campos e terrenos que constituem as Fazendas da Nação é, pouco mais ou menos, de 30 leguas, a contar da foz do Igarapé Mucajahy, que sabe pouco acima das caxoeiras do Rio Branco correndo, ao Norte, até a cordilheira Paracaima (sic), que limita o (então) Imperio com Demerára; os quaes ficam entre a linha que, pelo Oeste, divide o Brazil com Venezuéla e que, a Este, separa esta Província da do Pará; a qual córre da montanha Parintins, pela foz do Nhamundá, e vae encontrar as possessões de Suriname.
Que fica assim demonstrado que os campos occupados pelas ditas Fazendas limitam-se, no interior, tanto nesta Provincia como na do Pará; e no exterior, com Venezuéla, Demerára e Suriname [...]” (Major Gabriel Antonio Ribeiro Guimarães ao Presidente da Província do Amazonas, 31/10/1865, apud Luiz de França e Sá, ms. IHGB, in Farage, 1986).
Em 1874, informava o próprio Administrador das Fazendas:
“[...] A Fazenda de São Marcos está situada á margem esquerda do Rio Branco e á direita do Tacutú; limita-se: Ao Sul, com a confluência do Tacutú com o Rio Branco; ao Norte, com a cordilheira Paçaraima (sic) e terreno neutro; a Este, com o Tucutú (sic) e Surumú; e ao Oeste, com o Rio Branco e o Parimé; comprehendidas as serras Xiriry, Urubú, Taramé, Marnay, Turumú e muitas outrs. Sua extensão é calculada em mais de sessenta leguas quadradas.
A Fazenda de S.Bento está situada á margem direita do Rio Branco e fronteira á foz do Tacutú; limita-se: Ao Norte e a Este, com o Rio Branco; ao Sul e ao Oeste com a confluencia do Igarapé Canamé e linha que vem da antiga missão de Porto Alegre ao mesmo Canamé, abrangendo as serras Canamé, Veado, Murupú, Truerú e outras. Sua extensão é calculada em quarenta leguas mais ou menos [...]” (Administrador Antonio de Jesus Passos à Thesouraria da Fazenda, 29/08/1874, apud Luiz de França e Sá, 1902, ms. IHGB, in Farage, 1986).
* NOTA DE RODAPÉ
E em 1875, outro funcionário governamental assim resumia:
“[...] Estas Fazendas estão situadas a 990 mil metros em linha reta de Manáos, e a sua extensão é, pouco mais ou menos, de 198 mil metros, a contar da fóz do Igarapé Macajahy, pouco acima das cachoeiras do Rio Branco, correndo ao Norte até a cordilheira Paracaima, que limita o Imperio com Demerára; as quaes ficam entre a linha que, pelo Oeste, divide o Brazil com Venezuéla, e a que, a Este, separa a Provincia do Amazonas da do Pará, correndo da montanha Parintins, pela fóz do Nhamundá, e indo encontrar as possessões do Surinam. Estas Fazendas nunca fôram medidas nem demarcadas [...](B.da Silva, 1º Escripturario da Sub-Directoria das Rendas, 21/05/1875, apud Luiz de França e Sá, 1902, ms.IHGB, in Farage, 1986).
O Governo Imperial veio a se manifestar em 1878, quando o Ministério da Fazenda, embora reconhecendo que não havia ainda providências quanto à medição e demarcação das fazendas nacionais, anunciava seus limites oficiais:
“S.Bento – Ao Norte confina com o Rio Branco. Ao Sul, com o Canamé; a Léste, com o Rio Branco; a Oeste, com o Canamé, em parte, e em parte se estende para o território da Republica da Venezuela, lado este ainda não explorado. Sua extensão é de 40 legoas.
S.Marcos – Ao Norte confina com o terreno neutro que termina na cordilheira do Paracaima, lado pouco explorado; ao Sul, com o Rio Branco e Tacatú, sendo ahi confluencia destes dous rios; a Léste, com o Tacatú e Surumú; a Oeste, com o Rio Branco e Paremé. Tem 60 legoas quadradas aproximadamente de extensão.
S.José – Ao Norte confina com o Tacatú, em parte e em parte com o Repumuni, lado este ainda pouco explorado; ao Sul com o Igarapé do Surrão, em parte, que a divide da fazendo S.Pedro de dominio particular e em parte com terras devolutas; a Léste com a Provincia do Pará, lado por onde é inteiramente desconhecido; a Oeste com o Rio Branco.” (Ministro Gaspar Siveira Martins, Relatório do Ministério da Fazenda, 1878:88).
O relatório do Ministério da Fazenda de 1878 informava ainda que a fazenda São José havia sido anexada à São Marcos em 1841. Verifica-se, portanto, que até o final do século XIX o Estado era proprietário da imensa maioria das terras da região: tendo por centro de irradiação o Forte São Joaquim, as fazendas nacionais se estendiam pelo território compreendido entre o médio e alto rio Branco.
Datam, no entanto, das duas últimas décadas do século XIX as primeiras referências ao estabelecimento significativo de civis na área, que viria a afetar profundamente a situação das terras de propriedade do Estado na região.
Segundo o viajante francês H.Coudreau (1887, II:406ss.), um rápido crescimento das fazendas particulares de gado nos campos do rio Branco teria ocorrido após a década de 70 do século XIX, quando o número de colonos e a quantidade de gado teria triplicado. Calculava o cronista, ao final da década de 80, 32 fazendas na região de campos, concentradas à margem direita do rio Branco e no rio Uraricoera; apenas quatro delas estariam localizadas na área do rio Tacutu e margem esquerda do rio Branco. Dois anos depois, outro observador, Ermano Stradelli [(1889) 1991:31] corrigiria esta cifra para 80 fazendas, em mãos de 32 proprietários. Eram pequenas, e nenhuma chegava a ter 2.000 cabeças de gado.
O esbulho das terras das fazendas nacionais viria se iniciar, formalmente, na década de 80 do século XIX, com o arrendamento das fazendas a poderosos empresários amazonenses - em um primeiro momento, Sebastião José Diniz e, posteriormente, a firma J.G.de Araújo Ltda, com sede em Manaus -; favoreceu-o, pouco depois, o advento da República. São conhecidas as repercussões do início do período republicano na política fundiária nacional, basicamente provocadas por uma interpretação distorcida do artigo 64 da Constituição de 1891, que delegava jurisdição sobre as terras devolutas aos governos estaduais, mais sensíveis às pressões locais. Além disso, o decreto n. 7 de 20 de novembro de 1889 dava competência aos Estados para regular transitoriamente a administração dos bens do Estado e autorizar a venda dos que não conviesse conservar. Ficavam reservadas, porém, as fronteiras e outras áreas para fins militares.
O Governo do Estado do Amazonas, em 1900, abriu concorrência para a venda das fazendas nacionais. Frise-se, entretanto, que tal venda foi impedida em nome do interesse de Estado: consultado acerca das negociações em curso, o Ministério da Guerra manifestou-se totalmente contrário a elas, declarando não haver a necessidade de transferência de domínio de tais fazendas e, ainda, que pretendia utilizá-las para fins militares. O veto formalizou-se pouco depois (Ministério da Guerra, 22/01/1903 apud Sebastião José Diniz, 1903, ms IHGB, in Farage, 1986).
Em 1912 o Ministério da Fazenda legou as fazendas nacionais no rio Branco ao Ministério da Agricultura, que as consignou à Superintendência da Defesa da Borracha. Em 1915, as fazendas nacionais já estavam sob a administração do Serviço de Proteção aos Índios.
A despeito disso, o governo do estado do Amazonas, nas três primeiras décadas da República, veio a expedir, sistematicamente, títulos de registro de terras, que incidiam sobre as fazendas nacionais no Branco. O Serviço de Proteção aos Índios, após sua instalação na região, a todos contraditou, sustentando os limites das três fazendas nacionais como patrimônio da União. Seus protestos, registrados no Diário Oficial do estado, bem como nos relatórios administrativos do período, não surtiram efeito (Farage, 1986).
As fazendas particulares proliferaram às expensas do patrimônio nacional: além das terras, o roubo de gado pertencente ao Estado constituiu prática corriqueira entre os posseiros, formando e engrossando rebanhos particulares em detrimento do estatal. Na primeira década do século XX, o etnólogo T.Koch-Grünberg (1989,I:35) faria menção ao assentamento de “numerosos boiadeirs particulares” no perímetro das fazendas nacionais:
“(...) nestes gigantescos domínios estatais se têm assentado nos últimos decênios numerosos boiadeiros particulares que tomaram posse da terra sem ter direito a ela e que marcaram com suas próprias marcas o gado selvagem que encontraram (...)” (T.Koch-Grünberg, 1979,I:35)
O exame das requisições de registro de terras no estado do Amazonas entre 1893 e 1900 (mss ITERAM), por força do Decreto Estadual de 16/03/1892, indica que a quase totalidade das posses existentes no vale do rio Branco incidia sobre a área dos rios Uraricoera, Amajari e margem direita do rio Branco. No mesmo período, apenas nove posses foram registradas no rio Tacutu e dez na margem esquerda do rio Branco. Tais registros constituem um bom parâmetro para se avaliar o avanço da ocupação das terras em Roraima no início do século XX: deve-se notar que a ocupação da margem esquerda do rio Branco e do rio Tacutu era quase inexistente, mesmo se comparada àquela estabelecida na margem direita do rio Branco e no rio Uraricoera.
Neste quadro, é precisa a avaliação de T.Koch-Grünberg (1979,I:35), de que, naquela primeira década do século, as fazendas São Bento e São José estavam praticamente perdidas ao patrimônio do Estado, tal o número de posses já instaladas em seus limites. Mas, note-se, relativamente intocados encontravam-se a fazenda São Marcos, sede do Serviço de Proteção aos Índios, e a área obtida na arbitragem de fronteiras com Inglaterra em 1904, cuja neutralização, ao que tudo indica, terá adiado a ocupação fundiária e, nesse sentido, protegido o território indígena do esbulho por particulares.
É o que, ainda, se depreende do relato da Inspetoria Regional do Serviço de Proteção aos Índios em 1914: "Ora a inspectoria do Serviço de Proteção aos Índios ao estabelecer a sua acção nos territorios do rio Branco e seus affluentes, encontrou a maior parte da região acima, somente, exclusivamente, de facto sob a posse dos índios, ainda completamente selvagens uns, outros já em contacto freqüente com os civilizados, porem vivendo com seus usos, costumes e linguagem." (Memorandum enviado pelo ajudante da 1- Inspectoria do SPI, Augusto Zany, ao diretor, capito Alípio Bandeira - Manaus, 15 de janeiro de 1914, in Farage,1986).
Quadro análogo é projetado pelo registro produzido pelos missionários beneditinos, na primeira década do século XX, que fundaram uma missão, às margens do rio Surumu, o afluente da margem direita do rio Tacutu, e de lá saíam para longas viagens de desobriga pelas aldeias situadas na cordilheira (Anuário do Rio Branco:10-21, in Santilli, 1994).
Deve-se observar, por fim, que à diferença de outras regiões de economia pecuarista no país, como os campos do Paranapanema (Niemuendaju, 1954:83-8), o sul do Mato Grosso (Cardoso de Oliveira, 1976:56) ou o Piauí (Mott, 1979:68), onde a expansão da pecuária implicou na expulsão e no extermínio da população indígena, na área em pauta o traçado das fazendas se superpôs àquele dos territórios indígenas, mas, apesar do alto grau de violência que marca sua história no século XX, não obteve forçar sua retração.
Ao contrário, é notável a constância do território Macuxi, que abrangia, no início do século XX, praticamente a mesma área que lhe atribuíam os cronistas setecentistas (P.Santilli, 1994). Na primeira década do XX, já observava T.Koch-Grünberg (1982,III:20):
“Seu território principal se encontra como na época do seu primeiro contato com os europeus, desde fins do século XVIII, entre o Tacutu, seu afluente direito, o Mahu ou Ireng e o Rupununi, o grande afluente esquerdo do Alto Essequibo, no território fronteiriço entre Brasil eGuiana Inglesa, onde eles habitam principalmente a grande serra Canucu, coberta pela selva. Desde aí se estendem pelo oeste-noroeste até o Cotingo e mais adiante em povoações isoladas por ambas as margens do Surumu e pelo sul deste na savana ondulada na região do Alto Parimé-Maruá ao lado dos Wapixana. Pela margem direita do Baixo Uraricoera se encontram apenas poucos assentamentos dos Macuxi, que aqui como no Surumu já estão em parte mesclados com os Wapixana. O ponto mais avançado da tribo para oeste é o dos Macuxi de Maracá, separado do contingente principal a leste pelos Wapixana e sem conexão com ele (...)”
A confirmá-lo visualmente, temos o mapa do Conde Ermano Stradelli (1902), realizado em viagem de reconhecimento do alto rio Branco para o governo do estado do Amazonas:
Em 1927, a Comissão de Inspeção de Fronteiras, instituída pelo Ministério da Guerra, percorreu, sob o comando do General Rondon, o curso dos rios Tacutu, Surumu, Cotingo e Mau (ou Ireng), tendo encontrado suas margens povoadas por aldeias Macuxi, Ingaricó, e, ao sul, Wapixana, com uma população estimada em pelo menos 2.000 indivíduos (1928:64-170, in Santilli,1994).
O mapa do etnólogo e lingüista E.Migliazza, datado de 1970 (in Santilli, 1994), indica os mesmos limites territoriais Macuxi; a distribuicão das aldeias plotadas por Migliazza é, ainda, índice importante de que, a despeito da ocupação de suas terras, as aldeias Macuxi mantiveram sua territorialidade ao longo do século XX, o que, finalmente, teve reconhecimento formal, por parte do Estado brasileiro, com a homologação da TI Raposa/Serra do Sol em 2005.
Referências Bibliográficas
COUDREAU, H. 1887 La France Equinoxiale, 2 vols. Paris, Chalanell-Ainé.
FARAGE, N. 1986 Histórico das Fazendas Nacionais no rio Branco, ms inédito. São Paulo, CEDI.
FARAGE, N. 1991 As muralhas dos sertões: os povos indígenas no rio Branco e a colonização. Rio de Janeiro, Paz e Terra/ANPOCS.
KOCH-GRÜNBERG, T. 1979-1982 Del Roraima al Orinoco. Caracas, Ed.Banco Central de Venezuela.
RIVIÈRE, P. 1972 The forgotten frontier: ranchers of Northern Brazil. New York, Holt, Rinehart & Winston.
RIVIÈRE, P. 1995 Absent-minded imperialism: Britain and the expansion of Empire in nineteenth-century Brazil. London/New York, Tauris Academic Studies.
SANTILLI, P. 1994 As fronteiras da república: história e política entre os Macuxi no vale do rio Branco. São Paulo, NHII-USP/FAPESP.
STRADELLI, E. 1991 O rio Negro, o rio Branco, o Uaupés,1889, in T.Isenburg (org) Naturalistas Italianos no Brasil. SP,Ícone.