Guatemala

 


“A experiência de consultas comunitárias como instrumento de resistência dos povos indígenas da Guatemala.”

Eugenia Valey e Miriam Ischiu

 

Às consultas comunitárias que se realizam na Guatemala, elas são um meio de resistência dos povos indígenas. E temos toda uma história realmente que foi realmente enviesada, foi atropelada em todo o momento histórico. Antes da invasão podemos dizer que existiam diversos princípios, o princípio de reciprocidade, constituído também entre 22 povos que formam o povo Maya, e também o povo Garifuna, o povo Xinca e o povo mestiço ou Ladino.

 

Dentre os conhecimentos cosmogônicos do povo Maya, que (retomamos desde os termos que usam) também os irmãos do sol como cosmovisão estão os princípios e valores que são a harmonia, o equilíbrio, a complementariedade, a atualidade, a reciprocidade, inter-relação, o consenso e o conselho, através de toda uma inter-relação dos seres humanos e da Mãe Natureza. E podemos ver então o território Maia que localizamos fora dos limites políticos que se usam entre os diferentes países, e o constituem o sul do México, Belize, Guatemala, parte de Honduras e El Salvador, esse é o território Maia.

Para nós também existem vários elementos que fazem parte e são a base fundamental das consultas comunitárias na Guatemala, que são a espiritualidade, a partir da cosmovisão, e eu acabei de mencionar seus princípios e valores; a identidade, que é algo que resistiu através de todos os processos históricos da Guatemala; os direitos históricos, principalmente o direito à terra e ao território, que são dois elementos totalmente diferentes e também relacionados, mas se entendem de maneira diferente; os direitos da Mãe Natureza como tal, é um dos elementos; o idioma, que foi muito forte na Guatemala, e que apesar de todas as políticas de assimilação e de opressão, resistiu; as formas próprias de governo, que todavia em algumas comunidades se vivem e se praticam; a ideologia e a produção com equilíbrio. São elementos fundamentais onde podemos ver no mapa da Guatemala e os diferentes povos Maias que o constituem.

Podemos dizer que na cosmovisão Maya, no pensamento Maya o Universo é um todo, é uma unidade indivisível e dinâmica, cujos elementos estão estreitamente ligados e que pode ser compreendido como modelo de um processo cósmico, cosmogônico, por ele todas as partes do universo não podem considerar-se como é hoje, separadas. Não podemos pensar que os seres humanos não temos uma relação direta com a mãe natureza, porque aí sim é pensar antropocentricamente; e pensar também na visão que o sistema capitalista nos impõe que é o individualismo; não podemos dizer que estamos separados dos animais, por isso dizemos que somos filhos da terra, que é a nossa mãe, que nos alimenta e não podemos nos separar dela. Estes são os aspectos gerais da cosmovisão Maia, que não vamos aprofundar porque o tempo não basta para explicar os diferentes elementos, mas nós consideramos quatro pontos: o Leste, o Oeste, o Norte e o Sul. Estão relacionados como o nascer do sol, que é nosso avô que nos guia; o pôr do sol, onde descansa o sol, mas também esse descanso faz parte do equilíbrio, do dia e da noite, que listamos como parte do complemento; o Norte que é saída do ar, e o Sul que é também a caída do vento; e outros aspectos que não vou aprofundar neste momento.

Os holocaustos sofridos pelos povos indígenas como despojamento e também como um processo histórico de resistência, dos quais nós consideramos o primeiro holocausto, a invasão e a colonização, por quê? Porque existiu um processo de despojamento do território e implementação do genocídio, que é realmente a depredação massiva do patrimônio natural, a dominação e a escravidão, a exclusão e marginalização, o racismo e o genocídio provocados pelas entidades invasoras nessa época. A assimilação e a aculturação dos povos com a implantação de sistemas religiosos alheios aos que haviam nesse período, aqui nestas terras dos povos indígenas. Mas também, à essas formas de opressão existiram formas de resistência que foram os motins, os levantes; o conhecimento oral, que foi um elemento muito importante; o resguardo dos conhecimentos através de novas formas de organização, se buscaram maneiras de que todo o conhecimento que tinham nossos avós e avôs fosse suportando toda a opressão que nesse momento se vivia; práticas clandestinas, e assim a nossa cosmovisão conseguiu sobreviver até a atualidade.

Também podemos destacar outro período histórico que é de holocausto para nós, que foi a época da reforma liberal, em 1871, quando se impôs e se homogeneiza aos povos indígenas a partir de um Estado feudal, praticamente assim se classifica, com a continuação da expropriação territorial coletiva, e assimilação e a exploração e a semi-escravidão por meio da implantação de monoculturas em quintas, como café, algodão, cana-de-açúcar; a divisão religiosa. Das formas de resistência nesse período podemos destacar principalmente o idioma; a organização comunitária; as práticas cosmogônicas e a agricultura.

E passamos ao conflito armado interno que foi outro período, durou 36 anos, e precisamente neste 19 de dezembro se completam doze anos da assinatura de acordos de paz, uns acordos em que há só papéis e não a implementação efetiva desses acordos. Dentro do conflito armado interno se deu o genocídio, o ecocídio e o etnocídio, praticamente dirigidos aos povos indígenas na forma voraz do capitalismo; a criminalização e a militarização do território, que é nosso território e que foi despojado desde esse momento; segregação; o rompimento do tecido social; e como mencionei o despojamento do território; o recrutamento forçado por meio da entidade militar, que também ajudou no rompimento do tecido social; o capitalismo voraz, já mencionado, como justificativa de imposição de hidrelétricas, onde se deu o massacre de uma comunidade para a que existisse uma hidrelétrica, com a justificativa de que essa comunidade ia contra o governo, onde duas crianças sobreviveram ao massacre que houve nesse lugar, em Rio Negro, não sei se alguém conhece o caso aqui. A religião, nesse momento já existe mais fortemente a religião, depois que dividiram a população Maia, as famílias se dividem por religião, mas houve um período de liberação que de certa maneira ajudou em alguns aspectos algumas comunidades.

As formas de resistência dos povos indígenas, particularmente do povo Maia, foram a remoção, de alguma maneira foi um meio de resistência o exílio, a organização de mulheres, a desmilitarização nas comunidades, a organização de resistência. São 200 mil mortos no conflito interno, mais de um milhão de pessoas deslocadas de suas terras, entre eles dois mil são casos que não foram esclarecidos sobre desaparecimentos de pessoas.

E dentro do contexto neoliberal, a neocolonização, como a chamamos, existe a imposição de um sistema econômico que promove o despojamento territorial, nessa terra que muito antes da invasão era nossa e nos tiraram por meio de planos e projetos como o Plano América, os tratados de livre comércio, os mega-projetos e também o ALCA que de alguma maneira não foi realmente uma negociação direta com os povos indígenas, que promoveu as hidrelétricas por exemplo, os biocombustíveis, porque afinal não são as comunidades que usam esses biocombustíveis, são outras entidades que os usam.

A demagogia política dos diferentes governos de direita, o sistema de justiça e governo corrupto, com a implantação de terror, a utilização de elementos culturais e folclorização para o sistema capitalista, nos utilizam somente para tirar fotos, para que sejamos enfeite em congressos, sobretudo paras as mulheres que usamos sempre nossos trajes; o crime organizado e o tráfico, que promovem o Estado e suas entidades, seus aparatos estatais; a criminalização das lutas sociais, as lutas indígenas e sociais foram criminalizadas; a repressão vinculada ao racismo; o Estado patriarcal; a situação socioeconômica com a diferenciação de classes também foi muito forte, a negação do direito histórico individual e coletivo.

Já as formas de resistência que sobreviveram nas comunidades são o exercício do direito de participação e decisão por meio das consultas populares e comunitárias; a mobilização baseada na informação e na formação; a defesa da Mãe Natureza e seu patrimônio natural; exigência de justiça; processo de recuperação da identidade; a recuperação e exercício da cosmovisão; a aplicação do direito Maia, que permitiu consultas comunitárias contra a imposição de sistemas que impedem esse reconhecimento direto do território, que é historicamente um direito individual e coletivo. Vamos aprofundar um pouco mais o sistema de consultas comunitárias com a companheira Miriam.

 

Miriam Ischiu (liderança indígena da Guatemala)

 

Creio que como são países definitivamente com um evolução e desenvolvimento econômico muito mais avançado que o nosso, pois estamos sujeitos a uma planificação de tempo, e isso nos obriga a limitar o que temos a compartilhar com vocês hoje.

Este é um mapa da Guatemala, imagino que alguns de vocês tenham ido lá, mas queremos compartilhar os códigos, e como a mineração avançou, os pontos vermelhos são as minas que estão sob exploração, são vários níveis de exploração. As solicitações de exploração, que são os pontos amarelos que vamos identificar no mapa, que incluem vários departamentos das quatro regiões do país, estão as solicitações de exploração e solicitações de reconhecimento. O que temos aqui é um mapa da situação mineira que tem a ver com metais e minerais metálicos e que vai diretamente também contra grupos lingüísticos da Guatemala.

Este é um dos efeitos a nível de conflitos sociais, queremos mostrar a reação, e o que significa o patrimônio natural para a população Maia. Temos a participação de mulheres, homens, crianças, adultos, temos a expressão de mulheres em situações bastante delicadas. Isso tem a ver com a instalação de uma fábrica de cimento, o que basicamente ataca a saúde. Em todas as manifestações, esse é um dos papéis que usamos em todo o processo da consulta. Quando se fala de consulta, nada mais é do que fazer resistência, fazer diferente do que se quer, do que se impõe, e que tem a ver com a vida, porque falar de patrimônio natural, falar da nossa cosmovisão é diretamente a defesa da vida. Quando se diz não à mineração é porque estamos com uma proposta de vida, é a defesa de tudo isso.

Hoje na Guatemala temos escassez de água, isso tem a ver com outro processo que é o desmatamento, ou seja, o grau de responsabilidade que tem a empresa madeireira em todos esses países, principalmente no nosso. Então não é somente a mineração mas também a floresta, e isso significou a mudança climática, que hoje está sendo pintada como monstro, que é todo esse desgaste, toda essa devastação, devastação dos recursos naturais causada por esse desenvolvimento econômico, porque a palavra que usam é aproveitamento de recursos naturais, isso é sinônimo de exploração. E isso tem a ver com a comodidade dos países industrializados, porque nós da América Latina, e no caso a América Central, nos convertemos uma vez mais em provedores de matéria-prima, quando falamos dos biocombustíveis, estamos sacrificando toda uma dieta vegetal que tem a ver com o milho, que é convertido em etanol. E isso é uma exploração que tem a ver com combustíveis e mais ainda a corresponsabilidade que temos, cada um de nós, individualmente, com o consumismo, é outro efeito que tem a ver com o aquecimento global. E entretanto o estão vendendo como uma coisa, um fenômeno do qual se deve tirar proveito, mas isso é uma responsabilidade.

Com isso enfrentamos diversos desafios como povos indígenas, a partir da Convenção 169, o desafio é retomar o conhecimento ancestral de nossos povos indígenas. O que acontece depois de uma consulta? Vemos que é necessário dar seguimento com uma proposta de defesa da vida, porque não sei se algum de vocês poderia tapar o nariz e ver se pode viver sem ar, ou se algum de vocês tem idéia de quanto oxigênio lhe dá uma árvore, é para cinco pessoas, e se desmatamos? Outro desafio é a corrupção dos funcionários e a imposição da invisibilidade. Outro é o sistema liberal de um jogo duplo na aplicação, como comentei antes. Outro desafio são as autoridades locais e nacionais que devem respeitar as consultas comunitárias.

Outro é ter cuidado com os trâmites administrativos, vemos que outra coisa se converte em limitação para uma consulta, é não ter acesso à informação. E na Guatemala temos um Ministério de Energia e Minas que dá a licença de mineração, e temos um Instituto Nacional de Florestas, que se encarrega das licenças do desmatamento. Então, essa informação não é acessível, e isso creio que foi uma grande limitação para nós para saber o que acontece quando se está autorizando diferentes processos de mineração. Na Guatemala atualmente se está debatendo uma lei que tem a ver com o acesso à informação.

Dentro disso algumas propostas dos povos indígenas. A organização comunitária se converte em um referencial de resistência das consultas como meio de pressão social e política. As consultas comunitárias não são consideradas de boa-fé se não têm o caráter vinculante de maneira permanente no exercício pleno de sua autonomia. As consultas comunitárias devem ser um exercício de direito próprio das comunidades. As consultas comunitárias como meio de prevenção de conflitos, dignificação e direitos, porque por isso falamos do direito, e direito vincula o direito à vida e o direito a um ambiente são, e isso significa saúde, significa sobrevivência.

Queremos dividir algumas conclusões, como Maia, como Guatemalteca, uma delas é que as consultas comunitárias são um processo que integra gerações, por quê? Porque participamos crianças, mulheres, homens. de diferentes idades, e tem a ver com uma ampla participação ativa de todas as gerações.

Para os povos indígenas, a discriminação, racismo e genocídio e despojamento territorial, foram constantes nos diferentes períodos históricos, e entretanto, as lutas e resistências se mantiveram na busca do reconhecimento dos direitos, respeito e bem viver, o que para nós é seguir com uma luta permanente.

Outra conclusão é que os conhecimentos dos povos indígenas foram reconhecidos pela Convenção 169, e como a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas conseguiu uma luta internacional e permanente, ainda que tenha algumas incoerências, estamos conscientes disso.

Essa é uma região da Guatemala que tem a ver com uma assembléia permanente e constante, em que até esse momento se efetuaram trinta (30) consultas comunitárias, não à mineração, não às hidrelétricas. Então o que estamos mostrando aqui são os períodos em que se fizeram as consultas, que quantidade de habitantes participou. As primeiras consultas realizadas na Guatemala foram em 2005, houve três em 2005, algumas em 2006, 2007 e 2008, pelo correio ou por alguma página web, de repente se inteiraram de algumas delas. Aí apresentamos algumas imagens de como as mulheres foram agredidas, há todo esse militarismo que se desenvolveu na Guatemala para deter e reprimir a população que de novo protestava pelas consultas comunitárias dizendo que não entraria a fábrica de cimento, que não entraria a mineradora, que não entrariam as hidrelétricas, então são as reações.

Uma das conclusões é que muitas vezes as coisas que não se consegue fazer e que tem a ver com nosso pensamento, que tem a ver com atitudes, porque o racismo e a discriminação foram também herdados de geração em geração, e isso tem a ver com o nosso pensamento. Então quando falamos de cosmovisão Maia e falamos de um povo como o nosso na Guatemala, e quando falamos dessa relação dos elementos da natureza, é porque eu sou parte da natureza, é porque está nos convidando à cordialidade, está nos convidando à fraternidade. Em São Paulo ouvimos passarinhos cantando, e nossa surpresa foi que são gaiolas que têm os pássaros em cativeiro, para que em determinada hora ouçamos o canto de pássaros, mas isso é artificial, e esse pássaro é parte de nosso mundo.

  • Este texto corresponde a palestra proferida pelas autoras no seminário internacional "Oportunidades e Desafios para a Implementação da Convenção 169 da OIT" realizado em Brasília DF durante os dias 10 e 11 de novembro de 2008.  

En español el término es cosmovisión, que en términos generales es la forma como uma persona, una cultura o un grupo determinado tiene una forma propia y especifica de ver al mundo que lo rodea y actua en consecuencia o adaptado a esa particular manera de ver las cosas. Para el caso de la cosmovisión maya, se refiere a la interacción, interrelación, respeto e interdependencia de la vida humana, la madre tierra y el cosmos. (Nota de edição sugerida pelas palestrantes).

 

 

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2011_relator_Anaya_Guatemala.pdf251.38 KB