Consulta Livre, Prévia e Informada sobre Medidas Legislativas

 

1. A Convenção 169 da OIT no Brasil e o Direito de Consulta Prévia

2. Sobre a aplicação do direito de consulta prévia relativa a medidas legislativas

2.1. Sobre a oportunidade

2.2. Sobre a representatividade

2.3. Sobre os procedimentos adequados

2.4. O que faz uma consulta prévia nos termos do artigo 6o da Convenção 169 da OIT

3. Quais as medidas legislativas sujeitas à obrigação de consulta prévia

4. Notas de rodapé

 

Consulta Prévia em processos legislativos

Nos últimos vinte anos surgiram mecanismos legais e administrativos que possibilitaram democratizar o exercício do poder por parte de órgãos governamentais. Muitos deles derivam da Constituição Federal de 1988  que, em matéria de participação popular direta no Poder Legislativo, inovou, ao permitir a apresentação de iniciativas legislativas, referendos e plebiscitos (Art. 14, I II e III, da CF), além de outros mecanismos que indicam a abertura democrática vivida pelo Brasil naquele período pós-ditadura militar.

Em 1988 os povos indígenas alcançaram um patamar de dignidade distinto ao terem sido reconhecidos na Constituição sua organização social e seus direitos originários às terras que tradicionalmente ocupam, bem como ao usufruto exclusivo dos recursos naturais nelas existentes. Bens esses que cabe à União proteger e fazer respeitar. No entanto, não foi sem embate que os direitos indígenas foram assim consagrados. Nem sem concessões. O subsolo e a utilização do potencial energético dos recursos hídricos existentes nas terras indígenas pertencem à União e podem ser explorados por terceiros. A sua exploração, porém, está condicionada a cuidados prescritos pelos constituintes: somente mediante autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades indígenas e no interesse nacional (Art. 231, § 3º e Art. 176, § 1º).A regulamentação sobre essas matérias deve se fazer mediante lei ordinária, devendo haver, pelo seu conteúdo e objetivo, consulta prévia com os povos interessados.

Atualmente tramitam no Congresso Nacional projetos de lei que afetam diretamente povos indígenas e tribais, sem que estes até o momento tenham sido consultados ou pelo menos definidos os procedimentos e recursos para a realização das respectivas consultas durante o procedimento legislativo. Exemplo é o Projeto Legislativo (PL) 2057/91, que dispõe sobre o Estatuto dos Povos Indígenas - EPI, instrumento apropriado para regulamentar a Constituição Federal quanto à relação dos povos indígenas com o Estado.  Dado seu caráter de estatuto, o EPI pode reunir os princípios e as disposições que regulamentam os direitos indígenas, harmonizando o seu exercício de maneira integral e coesa. O EPI viria a substituir a Lei 6.001/73, o Estatuto do Índio, que, apesar de vigente, teve muitos artigos revogados pela nova Constituição.

Outras proposições em tramitação visam a regulamentar a exploração de recursos minerais existentes em terras indígenas. Entre elas, o Projeto de Lei 1610/96, que, ao dispor de maneira isolada sobre o aproveitamento e a exploração mineral em terras indígenas, corre o risco de destoar de um conjunto de princípios orientados a proteger e fazer respeitar os direitos indígenas de acordo com a Constituição de 1988.
De acordo com o texto constitucional e a Convenção 169 da OIT, essas iniciativas, como outras tantas referentes a quilombolas, não devem ser transformadas em leis sem que antes sejam consultadas as pessoas que possam ter seus direitos afetados por elas.

Vale a pena destacar que existe um precedente negativo contra o Brasil aprovado pelo Conselho de Administração da OIT, em março de 2009, com relação à ausência de consulta prévia no processo de elaboração da lei 11284, de 2 de março de 2006, que trata sobre a gestão de florestas públicas.

Neste caso, a OIT interpretou que, apesar de a lei excluir explicitamente a possibilidade de constituir FLONAS sobrepostas com territórios indígenas, a exploração florestal poderia eventualmente impactar os povos indígenas que moram nas regiões florestais do País, como a Amazônia, devido aos impactos regionais desse tipo de atividade econômica. Por esta razão, a OIT considerou nessa decisão que os povos indígenas deveriam haver participado do processo de debate e aprovação da lei e que, necessariamente, terão de participar da definição das medidas administrativas que regulamentem sua aplicação. Veja a decisão na integra anexada ao final deste texto.

 

1. A Convenção 169 da OIT no Brasil e o Direito de Consulta Prévia

O direito dos povos indígenas de serem consultados sobre medidas administrativas ou legais que possam afetar os seus interesses está reconhecido na Convenção nº 169 da OIT,  ratificada no Brasil mediante o Decreto Legislativo nº. 143, de 20/6/2002, que aprova o texto da Convenção, entrando em vigência no país a partir do ano 2003. A ratificação é compreendida pelo ordenamento jurídico brasileiro como a condição necessária e suficiente para a introdução da norma internacional com caráter de lei ordinária de aplicação direta no país. (Veja item A Convenção 169 no Brasil)

O artigo 6º da citada Convenção dispõe sobre o direito dos povos indígenas à consulta prévia quando se prevêem medidas legislativas ou administrativas que lhes afetem diretamente. Como disposição geral de consulta prévia o artigo 6º da Convenção dita:

1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão: a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente; b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes; c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim.

2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas. (grifos nossos)

Com relação ao primeiro relatório apresentado pelo Brasil à OIT, sobre o cumprimento das obrigações derivadas da Convenção 169, é pertinente para o caso que nos ocupa mencionar as seguintes observações realizadas por esta organização:

Legislación. En sus últimos comentarios sobre el Convenio núm. 107, la Comisión tomó nota de que el Poder Ejecutivo había enviado al Congreso Nacional una propuesta de consolidación de la legislación indigenista, la cual regula la casi totalidad de las disposiciones constitucionales en la materia y representa un marco de la política indigenista en Brasil. La Comisión toma nota que esta legislación aún no ha sido consolidada. La Comisión espera que el Gobierno tomará en cuenta, durante el proceso de discusión de la consolidación, la reciente ratificación del Convenio núm. 169 y, en particular, su artículo 6, según el cual los gobiernos deberán consultar a los pueblos interesados, mediante procedimientos apropiados y en particular a través de sus instituciones representativas, cada vez que se prevean medidas legislativas o administrativas susceptibles de afectarles directamente. La Comisión invita al Gobierno, si así lo considera necesario, a solicitar la asistencia técnica de la OIT en la tarea de la consolidación de la legislación referida, a fin de asegurar la compatibilidad entre los diferentes proyectos y el Convenio. (...)

7. Artículo 6.      Consulta. (...) El artículo 6 es mas bien de alcance general y se refiere al procedimiento. La Comisión indica que este artículo prevé la consulta cada vez que se prevean medidas legislativas o administrativas susceptibles de afectarles directamente. Sírvase proporcionar informaciones sobre la manera en que la legislación prevé la consulta en caso de medidas administrativas y legislativas tal como lo prevé el artículo 6, párrafo 1, a), del Convenio. La Comisión solicita asimismo informaciones sobre la manera en que se lleva a cabo dicha consulta, en particular respecto de los requisitos fundamentales de la consulta (previa, a través de las instituciones representativas de los pueblos indígenas y mediante procedimientos apropiados). (Grifos nossos)

A adequada aplicação do direito de consulta prévia relativa a medidas legislativas implica discutir e definir elementos tais como: os critérios para determinar quais são as medidas legislativas sujeitas à obrigação de consulta; em que condições de tempo, forma e local deve ser executada; assim como as conseqüências jurídicas da omissão desta obrigação.

A seguir, apresentamos algumas reflexões sobre os mencionados elementos, com base nas experiências de países vizinhos que vêm trabalhando e discutindo a implementação integral do direito à consulta prévia.

A Consulta Prévia aos povos indígenas e a autorização do Congresso Nacional para a exploração de recursos naturais em terras indígenas

O artigo 231 da CF dispõe no seu §3º que: "O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurado participação nos resultados da lavra, na forma da lei" (grifos nossos).

A mencionada disposição constitucional inaugura o principio da consulta prévia na América Latina, e apesar de não ter sido ainda amplamente aplicado, existe jurisprudência nacional que tem clarificado o que implica a mencionada obrigação para o Congresso Nacional, e como esta deve ser implementada em harmonia com a toda a legislação nacional e internacional vigente.

Os elementos questionados no processo de autorização do Congresso Nacional de exploração de recursos naturais em terras indígenas vão desde a necessidade da existência de leis complementares prévias a qualquer autorização, até a oportunidade para consultar os povos diretamente afetados, assim como a competência e o papel de entidades indigenistas (FUNAI) ambientais(IBAMA) neste tipo de processos.

Devido à escassez de casos relativos a estas normas no judiciário, a jurisprudência no Brasil é pouca, mas contundente, definindo regras de interpretação que podem ser resumidas como aparece a embaixo

A primeira constatação da jurisprudência sobre o tema é que a consulta aos povos indígenas afetados deve ser prévia á autorização de Congresso Nacional para a exploração de recursos naturais. Assim vale a pena citar decisão do Tribunal Regional da 1a Região sobre autorização do Congresso Nacional para a Construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte a ser implementada no rio Xingu:

"Nesse aspecto, a ausência da norma expressa sobre o momento da oitiva das comunidades afetadas nos induz a olhar a lógica das coisas e não os interesses em conflito.

A lógica indica que o Congresso só pode autorizar a obra em área indígena depois de ouvir a comunidade. Por outro lado, só pode proceder à consulta depois que conhecer a realidade antropológica, econômica e social das comunidades que serão afetadas pelos impactos ambientais.

Dalmo Dallari, no Informe Jurídico da Comissão Pró-Índio (Ano II, nº 9 a 13, abril a agosto de 1990), quanto ao momento da consulta prevista no § 3º do art. 231 da CF/88, faz observações inteiramente pertinentes a hipótese sub judice.

 

"Não é pura e simplesmente ouvir para matar a curiosidade, ou para se ter uma informação irrelevante. Não. É ouvir para condicionar a decisão. O legislador não pode tomar uma decisão sem conhecer, neste caso, os efeitos dessa decisão. Ele é obrigado a ouvir. Não é apenas uma recomendação, é na verdade, um condicionamento para o exercício de legislar. Se elas (comunidades indígenas) demonstrarem que será tão violento o impacto  da mineração ou da construção de hidroelétrica, será tão agressivo que pode significar a morte de pessoas ou a morte da cultura, cria-se um obstáculo intransponível à concessão de autorização".

 

 Sendo a oitiva das comunidades afetadas um antecedente condicionante à autorização, é inválida a autorização do DL 788/2005. Não se autoriza para depois se consultar. Ouvem-se os indígenas e depois autoriza-se, ou não." (grifos nossos)

Apesar da Desembargadora Federal SELENE MARIA DE ALMEIDA anotar a ausência de norma específica para identificar a oportunidade da consulta, é importante lembrar a Convenção 169 da OIT está plenamente vigente no Brasil e que nela fica claro que a consulta sempre deve ser prévia á decisão que afeta os povos indígenas, sendo ao contrario uma simples notificação e não um processo de participação da tomada de uma decisão que lhe afeta indiscutivelmente um povo o comunidade específica.

A jurisprudência também reforça a competência exclusiva do Congresso Nacional para o cumprimento deste mandado constitucional. Ou seja, o parágrafo 3o do artigo 231 impõe uma obrigação de tal importância ao Congresso Nacional que não existe nenhuma razão para pensar que esta pode ser transferível para o Poder Executivo. Assim, na mesma decisão relativa à Usina de Belo Monte, o TRF da 1a Região afirma: 

"A primeira constatação que se tem da mera leitura do § 3º do art. 231 das CF/88 é a obrigatoriedade da consulta às comunidades indígenas afetadas. A hipótese não é de faculdade do Congresso Nacional. O constituinte ordenou que sejam "ouvidas as comunidades afetadas para que participem da definição dos projetos que afetarão suas terras e seu modus vivendi".

A consulta se faz diretamente à comunidade envolvida com o projeto de construção. Não há se falar em consulta à FUNAI a qual poderá emitir parecer sobre o projeto, mas não substitui a vontade dos indígenas. Portanto, a consulta é intuito personae.

Essa problemática não está sendo discutida neste agravo, mas sua abordagem esclarece a intenção do legislador no tema do aproveitamento dos recursos naturais em terra indígena.

Assim como a comunidade indígena não pode ser substituída por outrem na consulta, o Congresso Nacional também não pode delegar o ato. É o Congresso Nacional quem consulta, porque é ele que tem o poder de outorgar a obra. Quem tem o poder tem a responsabilidade pelos seus atos.

A audiência às comunidades faz-se na área que será afetada. Uma representação parlamentar pode ouvir diretamente as lideranças indígenas, avaliar diretamente os impactos ambientais, políticos e econômicos na região. Esta é a coisa certa a se fazer." (Grifos nossos)

 

Vale à pena destacar a menção que o Tribunal Regional faz da importância de que a consulta seja feita com as comunidades ou os povos diretamente afetados sem a necessária presença de intermediários como a FUNAI e preferivelmente na área que será afetada. Quem melhor que o mesmo povo que sofrerá as conseqüências da decisão para discuti-la e influenciar. De fato decisões jurisprudenciais como a mencionada, vem discutindo qual deve ser o novo papel da FUNAI após o fim a regime tutelar com a CF de 1988. Enfatizar o fato de que são os povos indígenas os que falam por si mesmos é fundamental para adequada implementação do mecanismo de consulta no Brasil, por essa razão a anotação sobre o papel da FUNAI no atual contexto jurídico, cujo assunto ainda não está totalmente definido e que deve ser urgentemente abordado tanto pelo governo como pelo movimento indígena.

Adicionalmente, é importante chamar a atenção sobre o critério colocado na jurisprudência com relação à identificação da entidade competente para realizar uma consulta. A decisão do STF é clara ao afirmar que somente é competente aquela entidade que tem o poder de decisão. Ao final, é o Congresso Nacional quem autoriza ou não e careceria de sentido que a consulta fosse realizada por uma entidade que nada tem a dizer no momento da decisão final como o é o IBAMA ou a FUNAI, ambos órgãos do Executivo.

Um último elemento contido na jurisprudência do TRF da 1a Região que vem sendo citada é o relativo a natureza política da consulta prévia e sua diferencia substancial com mecanismos de participação dentro de processo de licenciamento ambiental como o são as audiências publicas.   Assim o TRF da 1a Região afirma que:

"Em parecer que acompanhou o memorial, o ilustre jurista Edis Milaré afirma que o momento da oitiva das comunidades indígenas afetadas coincide com a audiência pública prevista no art. 3º  da Resolução CONAMA 237/97.

Certamente a audiência pública do EIA constitui o foro adequado criado pelas normas ambientais para propiciar a todo cidadão e instituição a oportunidade de informar-se, questionar, criticar, condenar, opor, enfim, adotar a posição que julgar oportuna face ao empreendimento pretendido.

Mas não se confunde a consulta aos interessados, no caso do EIA, e a oitiva às comunidades indígenas prevista no § 3º do art. 231 da CF/88.

Ademais, a norma Constitucional acima referida está inserida no texto relativo aos índios e fala exclusivamente de aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos em terra indígena. É lógico que o Congresso, no caso, ouve as comunidades afetadas e não todo e qualquer um. Se a obra atingirá outras comunidades que não as indígenas, elas serão ouvidas, mas sobre os impactos ambientais em terras indígenas, manifestam-se os índios.

A FUNAI, os índios, os ribeirinhos, as comunidades urbanas, ambientalistas, políticos, religiosos etc., todos podem ser ouvidos em audiência pública inserida no procedimento de licenciamento ambiental.

Contudo, não é do ponto de vista do Direito Constitucional, se confundir a consulta dos índios - da competência do Congresso Nacional -, com a audiência pública referida na Resolução CONAMA 1/86 e regulamentada pela Resolução 9/87. A audiência pública realizada pelo IBAMA para colher subsídios tem natureza técnica. A consulta do Congresso tem por objeto subsidiar a decisão política" (Grifos nossos)

 

            Esta precisão conceitual entre audiência publica e consulta constitucional aos índios é fundamental para diferenciar os processos de licenciamento ambiental como aqueles que levam em consideração critérios técnicos e os processos de participação política, nos quais os critérios escapam de laudos e especialistas. Na consulta, as decisões políticas devem ser construídas pelas personalidades políticas competentes e os pareceres técnicos deveram guardar seu adequado lugar como subsídio e não como protagonista da decisão final.

 


 

2. Sobre a aplicação do direito de consulta prévia relativa a medidas legislativas

Em sistemas democráticos, nos quais todos os setores da sociedade devem ter igual oportunidade de participação política na definição dos assuntos que lhes afetam, o direito de consulta prévia sobre medidas legislativas não pode ser considerado um mecanismo desproporcionado e privilegiado de democracia direta para os povos indígenas e tribais. Sua existência com referência a decisões legislativas, adotadas mediante debates públicos, somente se justifica na medida em que é compreendida como uma aplicação do princípio democrático de eqüidade, o qual ordena tratar os iguais como iguais e os desiguais como desiguais. É em função deste princípio que se faz necessário adequar as regras gerais às particularidades reconhecidas e promovidas como legítimas no interior de uma sociedade.

Assim, a consulta prévia sobre assuntos legislativos pode ser compreendida como a qualificação de um procedimento de participação direta que pretende garantir o poder de influência de povos indígenas e tribais sobre as decisões de natureza legislativa que lhes afetam diretamente. Por essa razão, exigem um mecanismo de inserção no debate público adicional diferente dos que têm outros grupos sociais.

Para a doutrina, os tratados internacionais têm o poder de condicionar a produção legislativa, na medida em que seu conteúdo estabelece uma obrigação negativa relativa à impossibilidade de o Congresso legislar de maneira contrária ao compromisso adquirido internacionalmente pelo Brasil.

"Aprovado um tratado internacional, o Poder Legislativo se compromete a não editar leis a ele contrárias. Se o Congresso Nacional dá sua aquiescência ao conteúdo de compromisso firmado é porque implicitamente reconhece que, se ratificado o acordo, está impedido de editar normas posteriores que o contradigam. Assume o Congresso, por conseguinte, verdadeira obrigação negativa, qual seja a de se abster de legislar em sentido contrário às obrigações assumidas." (grifos nossos)2

No caso concreto da Convenção 169 da OIT, o condicionamento ao legislador ordinário é tanto sobre o conteúdo da matéria a ser legislada sobre povos indígenas e tribais, quanto sobre o procedimento para a expedição das normas que afetam diretamente estes povos.

O artigo 6º da citada Convenção define o conteúdo mínimo que deve ter um processo de consulta prévia para ser considerado como tal, o qual, segundo a OIT, pode ser resumido em cinco elementos básicos 3: 1) a oportunidade do processo de consulta, que deve ser sempre prévio à decisão final, 2) a legitimidade dos interlocutores, os quais somente podem ser instituições representativas dos povos, sem ser possível realizar consultas com membros individualmente considerados, 3) deve ser realizada uma pré-consulta ao processo de consulta para definir os interlocutores legítimos e os procedimentos adequados para cada caso, 4) a informação do processo deve ser: prévia, completa e independente, sendo o princípio da boa fé norteador do processo; e 5) os resultados e produtos das consultas devem estar refletidos na decisão final, sendo este último elemento o principal para qualificar o processo de consulta prévia e diferenciá-lo de qualquer outro tipo de encontro entre parlamentares com representantes indígenas.

Levando em consideração os diferentes pareceres da OIT sobre cada um dos itens mencionados, segue um breve resumo de seus significados.  

 

2.1. Sobre a oportunidade

Quando deve ser realizada a Consulta Prévia?

Levando em consideração que as propostas legislativas podem mudar durante o processo legislativo, é importante definir regras referentes à oportunidade na qual devem ser realizadas as consultas, de tal forma que estas sempre sejam prévias às decisões definitivas. Nesse sentido é importante definir regras de consulta para o debate tanto nas Comissões quanto nas plenárias de cada Casa, levando em consideração que estas não serão necessariamente obrigatórias em todos os casos, já que existem oportunidades nas quais os projetos aprovados nas comissões são votados nas plenárias sem nenhum tipo de modificação, sendo que, freqüentemente, é nas Comissões que os projetos são debatidos com maior profundidade.

A época ideal dentro do processo legislativo para a realização da consulta é logo após o informe do relator ficar pronto e antes de ser apresentado para debate e votação na respectiva comissão. O congressista-relator será o responsável por liderar o processo de consulta, que no primeiro momento significa a realização de uma pré-consulta com as organizações indígenas de representação nacional, para definir as entidades representativas que devem participar do processo e a forma e os procedimentos mais adequados para sua execução.

O gráfico abaixo ilustra o que consideramos as oportunidades apropriadas para realizar consultas durante o trâmite do projeto em Comissão.

 

Concluído o processo de consulta, o relator deverá incluir em seu informe os principais pontos levantados pelas organizações representativas dos povos indígenas durante os encontros realizados. É importante que na sistematização feita pelo relator estejam refletidos os pontos de concordância e de discordância colocados nas reuniões, seja para incluí-los no texto normativo ou para argumentar as razões de sua exclusão na exposição de motivos do projeto de lei. O objetivo é comprovar a eficácia do processo de consulta, cuja  finalidade é garantir a oportunidade real dos povos indígenas e tribais influenciarem a decisão legislativa que lhes afeta diretamente.

Somente na medida em que os textos da decisão final forem refletindo o processo de consulta com os povos interessados é que este poderá ser considerado como tal. Sem essa condição, os encontros não passarão de simples reuniões informativas, que estão longe de corresponder à obrigação referida artigo no 6o da Convenção 169. 4

 

2.2. Sobre a representatividade

Com quem deve ser realizada a Consulta Prévia?

Como explicitamente adverte a Convenção 169 da OIT, a consulta deve ser realizada por meio das instituições representativas dos povos indígenas e tribais, portanto, são eles os que devem indicar as instituições adequadas para representá-los em um processo de abrangência nacional, por se tratar da discussão de uma medida legislativa de natureza federal. É neste momento que deve ser realizada a pré-consulta, para identificar as organizações indígenas nacionais e regionais que participariam do processo, assim como as regras, procedimentos e prazos que devem regê-lo. (Veja o item O que é a consulta prévia)

É fundamental enfatizar que a consulta não pode ser realizada com indivíduos pertencentes a povos indígenas, porque eles não têm a legitimidade suficiente para serem interlocutores do processo de consulta prévia segundo o artigo 6o da Convenção. É necessário que se definam as entidades que possuem efetiva representação nacional, regional e local.

Sobre o papel da Funai, é fundamental saber que a Fundação não representa os povos indígenas. Trata-se exclusivamente da entidade indigenista do Estado brasileiro e, como tal, poderá emitir parecer próprio sobre o projeto de lei em questão, sem que este nada tenha a ver com o processo de consulta prévia aos povos indígenas afetados. A Funai poderia até facilitar a execução da consulta, mas não pode substituir os povos em sua interlocução com o Estado. A este respeito vale a pena citar a jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 1a Região sobre a consulta aos indígenas tratando-se de aprovação de Decreto Legislativo.

" A consulta se faz diretamente com a comunidade envolvida com o projeto de construção. Não há que se falar em consulta à FUNAI a qual poderá emitir parecer sobre o projeto, mas não substituir a vontade dos indígenas. Portanto a consulta é intuito personae." (Agravo de Instrumento No. 2006.01.00.017736-8/PA. Julgado 13/12/2006 Relatora: Desembargadora Selene Maria de Almeida)

Resta concluir que a interlocução indígena para um processo de consulta prévia somente pode ser exercida pelas instituições representativas destes povos.

 

2.3. Sobre os procedimentos adequados

Como realizar um consulta?

A regra mais importante para a realização de uma consulta prévia é a definição particular dos interlocutores, as regras, os procedimentos e os prazos para a execução de cada consulta, não obstante para dita definição seja necessário ter presentes a qualificação da informação, a flexibilidade dos prazos e a transparência dos procedimentos que devem ser norteados pelo principio da boa-fé.

É importante enfatizar que a informação sobre a medida legislativa no processo de consulta deve ser prévia, clara e independente. Deve ser entregue com um tempo razoável, para sua circulação e compreensão, para as instituições representativas dos povos interessados. Igualmente, todas as necessidades de informação adicional durante o processo devem ser respondidas de forma tal que, ao final do processo, os povos consultados afirmem compreender adequadamente a informação necessária para emitir sua opinião.

Com relação à razoabilidade dos prazos que cada consulta deve ter, é importante ponderar sobre sua adequada flexibilidade. Uma vez decidida a forma como realizar a consulta (múltiplas reuniões regionais, por exemplo) e solucionada a questão da(s) língua(s) a ser(em) utilizada(s), cabe considerar outras peculiaridades, como, por exemplo, definir com as instituições representativas o tempo disponível para a realização das consultas. Deve ser um tempo razoável para que os povos indígenas tomem conhecimento da matéria de maneira oficial, possam debatê-la e firmar um entendimento a respeito, de acordo com os seus costumes e tradições, o que vai depender de cada caso e será fundamental para o sucesso do processo. Esse é um dos elementos mais importantes a serem definidos com o relator na  pré-consulta.

Com relação à questão da idoneidade dos espaços para a realização das audiências públicas de consultas prévias sobre medidas legislativas, vale fazer alguns comentários. Os artigos Arts. 21-A, VII, 255 a 258 do RICD, define a Audiência Pública como uma oportunidade para instruir matérias legislativas em trâmite e sua realização depende de aprovação da maioria simples da Comissão, após iniciativa de qualquer de seus membros. No caso da Consulta Prévia, o espaço das audiências públicas deve ser cuidadosamente adequado às circunstâncias dos povos indígenas dispersos por todo o Brasil, o que provavelmente daria lugar à realização de várias audiências descentralizadas que garantam a participação direta dos povos afetados. Será importante também definir o tempo disponível para a realização das consultas e a forma de sistematização integral das mesmas, para que a Comissão possa retomar as discussões e as consultas possam, efetivamente, influenciar a decisão final dos deputados.

É importante mencionar que a simples convocatória e realização de uma Audiência Pública como mecanismo de participação da sociedade civil não é suscetível de ser interpretada como o cumprimento da obrigação de consulta prévia. É necessário diferenciar o direito de consulta prévia (artigo 6º da Convenção 169) do direito de participação geral. A consulta prévia é um instrumento jurídico que faz parte desta última, mas que se caracteriza e diferencia dos outros tipos de participação pela sua especificidade sobre medidas eventuais. Desta forma, existem espaços de participação dentro dos quais é possível executar processos pontuais de consulta prévia. Entretanto, a garantia de participação genérica não compreende necessariamente o exercício do direito de consulta. Não é possível confundir o espaço de participação com a consulta em si.

Com relação à idoneidade das audiências públicas já contempladas no regimento interno da Câmara para a realização de consultas prévias, a OIT tem se manifestado sobre a oportunidade de adaptar estes espaços nos países onde já existem e, então, promover as consultas. Por exemplo, no caso da Bolívia, onde as audiências públicas são obrigatórias no processo legislativo, a Comissão de Especialistas em Amplificação de Convênios e Recomendações considerou que poderia ser um espaço útil na adequação de um processo de consulta 5 que envolvesse as audiências como parte do mesmo e qualificasse o efeito de seus resultados. Conclusão: dependerá das conseqüências explícitas que se atribuam a cada encontro e da realização de audiências públicas, se será possível ou não adequar este espaço predeterminado no trâmite legislativo para introduzir as consultas prévias sobre medidas legislativas com povos indígenas e tribais.

 

2.4. O que faz uma consulta prévia nos termos do artigo 6o da Convenção 169 da OIT

 Sobre a influência eficaz dos resultados

A consulta terá cumprido o seu objetivo se a participação dos povos indígenas consultados se refletir no resultado dos trabalhos da Comissão Especial. Conseguir o consentimento não quer dizer que os povos indígenas a serem afetados pela medida legislativa devam concordar com o que lhes está sendo apresentado. Ao contrário. Para obter seu consentimento, a medida legislativa deve refletir seus principais pensamentos sobre a matéria em discussão. Chegar a um acordo significa que as partes envolvidas devem chegar à decisão que foi mutuamente influenciada e que reflete um verdadeiro consenso sobre seus principais pontos. Não se trata aqui de buscar uma atitude passiva dos povos indígenas, de aceitar o que lhes está sendo apresentado, mas de haver um empenho significativo por parte dos membros da Comissão Especial, para que o texto legislativo final seja merecedor de seu aval.

A consulta prévia pode ser resumida como um direito de influência efetiva sobre uma decisão de Estado que não pode ser nem arbitrária nem autoritária, o que obriga a incluir no seu conteúdo e motivação as discussões levantadas nas reuniões com os diretamente afetados. Se na decisão final não estiverem refletidas as opiniões debatidas nos encontros, esta não poderá ser considerada um processo de consulta prévia nos termos do artigo 6o da Convenção 169. Serão simples reuniões de informação sobre medidas a serem adotadas pelo Estado.

Um caso que ilustra muito bem o efeito que deve ter o produto de um processo de consulta para ser considerado como tal, é o processo executado pelo Congresso Nacional para consultar as comunidades indígenas Kaingang no Projeto de Decreto Legislativo nº  381 de 1999, que dispõe sobre a autorização do uso de Terra Indígena na região de São Jerônimo da Serra, no Rio Tibagi, PR.  Neste processo, transcorrido entre março de 1999 e novembro de 2000, o relator, deputado Luciano Pizzatto, conseguiu liderar adequadamente vários encontros com os representantes do povos Kaingang e incluir no texto do Decreto Legislativo, como em sua justificativa, os argumentos apresentados pelos indígenas. O relator articulou a tal ponto os elementos levantados durante as consultas que chegou a modificar o projeto original inicial, para apresentar na Comissão uma proposição substitutiva que incluía as decisões discutidas internamente pelos Kaingang sobre o projeto. O substitutivo foi aprovado por unanimidade na Comissão de mérito e por maioria na Comissão de Constituição, Justiça e Redação.

 

3. Quais as medidas legislativas sujeitas à obrigação de consulta prévia

Claramente, não são todas as medidas legislativas - que de uma ou outra forma afetam os povos interessados - as que estão sujeitas à obrigação de consulta. Nada mais desproporcionado e afastado do objetivo do artigo 6o da Convenção 169, que propõe a discussão de medidas de afetação direta aos povos indígenas e tribais, especialmente aquelas decisões adotadas pelo parlamento que surgem precisamente em razão da particularidade social, cultural e econômica que estes povos representam. Com relação às decisões do Estado de caráter geral, que afetam em igual medida os povos interessados e demais brasileiros, a Convenção 169 dispõe a obrigação do governo de garantir as medidas necessárias para que a participação política dos povos indígenas e tribais se faça pelo menos na mesma proporção que os demais segmentos da população em todos os níveis de tomada de decisões (literal b, numeral 1o do artigo 6º da Convenção 169 da OIT).

Vários têm sido os critérios discutidos para definir o limite entre as medidas legislativas sujeitas à consulta e aquelas que, mesmo afetando os povos interessados, pela sua natureza geral não estão condicionadas ao cumprimento desta obrigação. Entre as diferentes propostas jurídicas, vale a pena trazer para a reflexão no Brasil os critérios definidos pela jurisprudência da Corte Constitucional colombiana, tribunal supremo de um país na América do Sul que mais tem discutido o tema na hora de aplicar o artigo 6o da Convenção 169 sobre medidas legislativas.

"Cabe señalar que la obligación de consulta prevista en el literal a) del artículo 6º del Convenio 169 de la OIT no puede interpretarse con el alcance de que toda la regulación del Estado, en cuanto que sea susceptible de afectar a las comunidades indígenas y tribales, deba someterse a un proceso de consulta previa con dichas comunidades, por fuera de los escenarios ordinarios de participación y deliberación democrática, y que dicho deber sólo se predica de aquellas medidas que, en el ámbito de la aplicación del Convenio, sean susceptibles de afectar directamente a tales comunidades.

Con todo, es preciso tener en cuenta que la especificidad que se requiere en una determinada medida legislativa para que en relación con ella resulte predicable el deber de consulta en los términos del literal a) del artículo 6 del Convenio 169 de la OIT, puede ser el resultado de una decisión expresa de expedir una regulación en el ámbito de las materias previstas en el convenio, o puede provenir del contenido material de la medida como tal, que, aunque concebida con alcance general, repercuta de manera directa sobre las comunidades indígenas y tribales." (Corte Constitucional Colombiana Sentencia de constitucionalidad C-003/2008)

Com relação aos critérios relativos à identificação da especificidade de afetação das medidas legislativas que devem ser submetidas à consulta prévia, dois critérios mencionados na citação transcrita merecem destaque: por um lado aquele que faz referência à obrigatoriedade da consulta quando se trata de medidas legislativas que desenvolvem dispositivos da Convenção 169 da OIT, o que significa que todas aquelas medidas especificamente relacionadas com os direitos diferenciados reconhecidos aos povos indígenas e tribais - como educação, saúde, território, recursos naturais, condições trabalhistas, penais etc. - deverão necessariamente ser consultados, por desenvolverem a aplicação da mencionada Convenção no Brasil (Veja o item Convenção 169 da OIT). Por exemplo, no caso do projeto de mineração em terras indígenas, a medida legislativa faz referência direta aos artigos 7º, 13 e 15 do texto da Convenção 169; segundo este critério, não existe dúvida sobre o dever de consulta neste caso. O mesmo se poderia afirmar com relação ao Estatuto dos povos indígenas, que tramita há mais de 13 anos no Congresso Nacional, assim como sobre todos os decretos legislativos que tramitem no Congresso Nacional para autorizar a exploração do potencial hidroelétrico em terras indígenas.

O segundo critério mencionado pela Corte colombiana faz referência à afetação direta que uma medida legislativa possa implicar para os povos interessados, em razão de seu conteúdo material, já que uma decisão legislativa, ainda que concebida com alcance geral, pode repercutir diretamente sobre as comunidades indígenas e tribais afetando os direitos diferenciados a estas reconhecidos pela constituição e pela lei. O caso específico a que se refere a jurisprudência citada é a lei geral florestal da Colômbia, a qual, apesar de ser uma lei que não inclui explicitamente disposições destinadas aos povos indígenas e tribais, regulamenta a exploração dos bosques nativos do país - os quais estão, na sua maioria, nos territórios daqueles povos, o que faz o conteúdo material da lei geral lhes afetar diretamente, razão pela qual a Corte decidiu que, no caso da lei geral de florestas nativas, é imperativa a obrigação da consulta prévia durante o processo legislativo. (Veja o texto da Corte Constitucional na íntegra no item Consulta Prévia na América do Sul , na Colômbia)

Por outro lado, existem decisões legislativas de caráter geral que não incluem disposições específicas para garantir o acesso a direitos diferenciados dos povos indígenas e tribais, o que constitui uma omissão legislativa contra a própria Constituição Federal. Neste tipo de caso, as leis gerais não precisam ser consultadas, mas também não podem ser aplicadas aos povos interessados sem nenhum tipo de consideração à sua especificidade. Somente nos casos em que se incluem exceções, ou disposições referentes à regulamentação de condições especiais para estes povos, ditas disposições estarão necessariamente sujeitas ao dever de consulta prévia, na medida em que são criadas exclusivamente para os povos interessados e não poderiam deixar de contar com a sua opinião a respeito.

Um exemplo deste tipo de decisão geral podem ser as leis relativas ao Sistema Nacional de Educação, as quais, na medida em que não incluírem nenhuma disposição relativa às condições específicas de acesso dos povos indígenas e tribais à educação formal, não estarão sujeitas ao dever de consulta. No máximo, o Estado estaria obrigado a garantir a participação dos povos interessados em igualdade de oportunidades dos demais setores da sociedade brasileira (Artigo 6o. num 1, b), mas dita regulamentação nacional, na medida em que não considera as particularidades dos povos interessados, não poderia ser aplicada a eles, já que a imposição de normas que desconhecem a especificidade dos povos são contrárias à Constituição Federal e à lei, principalmente por não aplicar os direitos diferenciados reconhecidos a esses povos e insistir em lhes dar um tratamento idêntico ao dado ao restante da população. Isso não pode implicar de nenhuma forma que os povos interessados não tenham acesso aos mesmos direitos que os demais cidadãos, simplesmente significa que, para garantir o acesso dos povos interessados, em igualdade de condições aos direitos dos cidadãos, estes últimos devem ser diferenciados 6 , ou seja, deve-se levar em consideração as particularidades e circunstâncias concretas dos povos aos quais estão orientados.

Resumindo, todas as medidas legislativas que tratem especificamente sobre aquele conjunto de direitos diferenciados reconhecidos na Constituição e nas leis aos povos indígenas e tribais, bem seja de maneira explícita ou como decorrência de sua aplicação, devem ser previamente consultados com os povos. De igual forma, aquelas decisões de caráter geral que omitem a introdução e desenvolvimento de medidas particulares para garantir os direitos diferenciados dos povos interessados não precisam ser consultadas, na medida em que não têm por objeto regulamentar a especificidade desses direitos. Nesses casos, trata-se de omissões legislativas que, em princípio, podem impedir a aplicação destas leis gerais aos povos interessados, por desconhecerem os direitos diferenciados destes povos, ferindo, dessa forma, a própria Constituição Federal, que reconhece e protege sua especificidade social, cultural e econômica. 

Finalmente, é importante lembrar que nos ativemos às discussões ainda em aberto sobre a implementação do direito de consulta prévia relativo às decisões legislativas em outros países da América do Sul, apenas com a pretensão de instigar o debate brasileiro sobre o tema e a aplicação deste direito no País.

 

Notas de rodapé 

[1] Art. 176 (...)§ 1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o "caput" deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas.

Por sua vez, o §3º do artigo 231, também se refere à necessidade de por meio de lei, o Congresso Nacional autorizar o aproveitamento dos recursos hídricos, incluindo os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas, condicionada à consulta prévia às comunidades indígenas afetadas. Art. 231.(...) § 3º. O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

[2] MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito Internacional Público. Parte Geral. 2a  ed. Rev., ampl. E atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; IELF, 2005. Pág. 96.

[3] Para ver as observações da OIT referente a processos de consulta prévia consultar: www.ilo.com nos informes anuais da Comissão de Expertos em Amplificação de Normas Intencionais (CEANI).

[4] Sobre os pareceres da OIT sobre a impossibilidade de considerar as reuniões informativas como a totalidade do processo de consulta prévia ver: Reclamação contra o Estado de Equador por incumprimento da Convenção 169, representada pela Federeción Ecuatoriana de Organizaciones Sindicales Libres. www.ilo.org/ilolex

[5] "Consulta y participación 8. Artículo 6º. La Comisión toma nota (...). que el reglamento de debates de la Cámara de Diputados determina la obligación de las Comisiones Congresales de realizar audiencias públicas de consulta con los sectores de la población directamente interesados. Sírvase indicar las consultas efectivamente realizadas con los pueblos indígenas en virtud de ese reglamento. En 2004, la Comisión tomó nota que el Gobierno ha comunicado el proyecto de decreto supremo de «consulta y participación de los pueblos indígenas originarios".(Sublinhado fora do texto) Informe 2006 Sobre bolivia C 169: Solicitud directa , CEACR 2005/76a reunión"

[6] O conceito de direitos diferenciados faz referencia ao principio jurídico de equidade que ordena tratar aos iguais como iguais e aos desiguais como desiguais, sem equivalências artificiais que desconheçam as diferenças concretas dos sujeitos de direito em uma sociedade plural.

 

AnexoTamanho
OIT Reclamación contra Brasil marzo 2009.pdf121.61 KB
Sobre falta de oitiva dos povos indígenas_Belo Monte_Des_Selene_Almeida.doc133 KB