Consulta prévia e empreendimentos no Brasil

Apesar de no Brasil não existir nenhum tipo de regulamentação dos procedimentos de consulta prévia das medidas administrativas e legislativas referentes a obras, atividades ou projetos de infra-estrutura ou exploração econômica de recursos naturais em territórios indígenas e tribais, ou com impacto direto sobre estes povos, o tema é atualmente discutido na administração e na justiça.
 
A Funai, por exemplo, como entidade indigenista, é frequentemente chamada para participar de consultas sobre obras que são planejadas e executadas dentro de territórios indígenas. Igualmente, esta instituição é convocada para participar das decisões administrativas que envolvem empreendimentos fora de territórios indígenas mas que os afeta diretamente. Além destes processos que acontecem, mesmo sem regulamentação vigente,  têm sido desenvolvidas no Brasil consultas prévias seguindo as políticas operativas do Banco Mundial sobre a matéria, por tratar-se de empreendimentos que são financiados por essa entidade e que afetam diretamente povos indígenas e tribais (veja no item Empreendimentos e Instituições Financeiras Multilaterais, Banco Mundial, casos Goiás e Paraíba).
 
Assim, com as experiências de consulta prévia que estão acontecendo no Brasil, o marco constitucional de 1988 com relação aos direitos diferenciados de povos indígenas e tribais, e a ratificação da Convenção 169 da OIT, é possível e necessário avançar na reflexão sobre a implementação deste direito no nível administrativo, para regulamentá-lo.
 
A seguir, propomos alguns elementos iniciais para a reflexão sobre a implementação do direito de consulta prévia dos povos indígenas e tribais com relação a obras, atividades ou empreendimentos de infra-estrutura ou exploração econômica de recursos naturais dentro ou fora dos territórios destes povos, sempre que sejam afetados:
 
1. Critérios para definir quando um empreendimento, mesmo localizado fora dos territórios dos povos interessados, deverá ter a sua autorização previamente consultada com os povos indígenas ou tribais por afetarem recursos naturais ou causarem impactos diretos a estes povos e seus territórios.
 
2. Critérios de representatividade dos povos tribais nos processos de consulta. A definição deste elemento é fundamental para a segurança e estabilidade dos eventuais acordos resultantes de processos de consulta. A sua definição deverá levar em consideração perguntas como: Quais devem ser os critérios para definir a instituição representativa dos povos em cada caso? Que papel devem desempenhar as organizações locais, regionais e nacionais que os representam? Qual o papel da Funai? São possíveis consultas com indivíduos ou partes independentes dos povos afetados? Como tratar as divisões internas que naturalmente surgem diante de propostas de empreendimentos que podem mudar o futuro de comunidades completas?
 
3. Critérios para definição de entidades competentes, por parte do Estado, para liderar e participar da consulta prévia em cada empreendimento. Da mesma forma que a representatividade dos povos, o Estado deve ter regras claras com relação à sua participação e à coordenação de competências, já que a maioria dos empreendimentos envolve diversas entidades que não necessariamente respondem às mesmas hierarquias dentro do governo e que devem ser previamente coordenadas. Neste ponto é importante responder perguntas como: Qual deve ser a entidade competente para coordenar os processos de consulta prévia dentro do Estado brasileiro? Nos casos para os quais o processo de consulta prévia implica a necessidade de discutir com várias entidades pela dispersão de competências, como deve ser a participação de todas elas? Qual é a entidade, dentro do Estado brasileiro, capaz de garantir a atuação coordenada dos órgãos envolvidos em cada caso?
 
4. Definição de procedimentos e prazos. Estes elementos, precisam ser tratados com a flexibilidade exigida pela diversidade de povos e situações. Por isso, a definição de procedimentos e prazos deve permitir que, entre margens razoáveis, cada caso possa definir suas condições particulares. A pergunta óbvia sobre este ponto é como conseguir regulamentar procedimentos e prazos, suficientemente adaptáveis à variedade e diversidade de povos e circunstâncias, sem impor regras e respeitando os costumes e tradições de cada povo para o processo de tomada de decisões.
 
5. Sobre a informação como subsídio necessário e prévio do processo de consulta. Devido a importância da circulação e compreensão da informação para os processos de consulta, e conscientes das evidentes assimetrias de informação e diferenças de visões de mundo entre as partes envolvidas em um processo de consulta prévia, é fundamental discutir  o acompanhamento técnico independente às comunidades diretamente afetadas, assim como os meios e o tempo suficiente para a sua compreensão e discussão interna. Aqui se deve perguntar: Como deve ser feito esse apoio técnico? Quem deve pagar essa conta? Que modificações implica incluir um apoio técnico independentes na apresentação e debate atual de estudos de impacto ambientai?
 
6. Efeitos jurídicos do produto da consulta. No caso de acordo, quais os mecanismos para exigir seu cumprimento pelas partes envolvidas: ações sumárias, possibilidade de impugnação dos atos administrativos, ou simples ações de responsabilidade contratual? Nos casos de não-acordo, qual é a conseqüência jurídica? Em caso da decisão final ser exclusivamente do Estado, como devem ser as características desta para incorporar o processo de consulta executado?
 
Vale a pena destacar que não existem fórmulas únicas para pensar o desenvolvimento jurídico desse direito, que as possibilidades são múltiplas e que a escolha política entre o leque de possibilidades vai depender do arranjo entre os povos interessados e o Estados. O presente especial é um espaço de deliberação e construção que tem como principal objetivo estimular o debate sobre o tema e sistematizar seus avanços visando a promover a implementação do direito de consulta prévia no Brasil. Por essa razão, estamos abertos a discutir publicamente os pontos acima mencionados e continuar a discussão que aqui foi simplesmente introduzida.