1. Dos sujeitos titulares do direito de consulta prévia
2. Do objeto e âmbito de aplicação
3. Sobre a representatividade dos povos
4. Da autoridade competente para liderar o processo de consulta prévia
5. Sobre os procedimentos e prazo
6. Da informação e o apoio técnico durante o processo de consulta prévia
7. Sobre os custos e o financiamento do processo de consulta
8. Dos efeitos jurídicos dos acordos e as conseqüências jurídicas da negativa
Consulta Prévia e empreendimentos
Uma análise comparada das regulamentações sobre Consulta Prévia na América do Sul
Na América do Sul, Colômbia, Equador, Venezuela e Bolívia vêm tentando regulamentar a aplicação do direito de consulta prévia, principalmente no que se refere à exploração de recursos naturais em terras indígenas. No entanto, com exceção da Colômbia, nenhum país têm tentado expedir uma regulamentação integral sobre consulta relativa a medidas administrativas e legislativas que afetam os povos interessados.
A maioria das regulamentações pertinentes ao assunto somente faz referência às medidas administrativas decorrentes de processos de licenciamento ambiental para exploração de recursos naturais nas terras e territórios dos povos interessados.
Atualmente só na Bolívia e na Venezuela estão plenamente vigentes as regulamentações sistematizadas, enquanto que na Colômbia e no Equador, apesar de formalmente vigentes, as regulamentações sobre consulta prévia são inaplicáveis, devido aos questionamentos que os povos indígenas e tribais fazem, evitando que os governos possam aplicá-las.
No caso da Colômbia, o movimento indígena questionou, sem sucesso, a nulidade do decreto que desenvolve a matéria perante o Tribunal Contencioso Administrativo, mas conseguiu que a Corte Constitucional declarasse o mencionado decreto inconstitucional, em repetidas oportunidades, e que o próprio Conselho de Administração da OIT manifestasse que a aplicação deste decreto é contrária à Convenção 169.
Já no Equador, o decreto que regulamenta a consulta prévia continua vigente e, precisamente por essa razão, o movimento indígena se nega a participar de qualquer processo de consulta, já que considera ilegítima a regulamentação expedida no ano de 2002. Os povos indígenas do Equador consideram tão lesiva a regulamentação que atualmente questionam o mencionado decreto perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A regulamentação sobre o processo de consulta prévia implica tomar decisões políticas sobre vários elementos que definirão o conteúdo e o alcance concreto deste direito para cada país. Assim, o objetivo deste documento é apresentar de maneira comparada os principais elementos de aplicação do direito de consulta incluídos nas regulamentações existentes. A análise apresentada a seguir limita-se à colocação de elementos de legislação comparada, que carecem de uma análise sistemática dos dispositivos legais no interior do campo jurídico de cada país. Por isso, sua compreensão integral deve ser complementada com a leitura dos casos citados em outros itens do especial e pela jurisprudência existente sobre o tema nos países comparados.
O principal objetivo deste trabalho de comparação de dispositivos legais é estimular o debate sobre as possibilidades jurídicas e políticas que cada elemento da implementação do direito de consulta prévia pode desenvolver. Para a análise dos dispositivos existentes, foram escolhidos seis elementos comuns à maioria das regulamentações, os quais, por sua vez, consideramos temas indispensáveis na reflexão sobre a implementação do direito de consulta em qualquer país.
1. Dos sujeitos titulares do direito de consulta prévia
Este elemento faz referência à definição concreta dos povos considerados como indígenas e tribais na legislação interna de cada país e os critérios aportados pela Convenção 169. Em principio, somente a Venezuela faz referência aos povos indígenas como únicos titulares do direito de consulta, enquanto os outros países incluem novas categorias de povos indígenas e tribais titulares deste direito. Na Colômbia, por exemplo, a regulamentação faz referência às comunidades indígenas e negras; no Equador, fala das nações auto-reconhecidas como nacionalidades indígenas e dos povos afro-equatorianos; enquanto na Bolívia, as regulamentações fazem referência a comunidades camponesas, nativas, originárias e indígenas como categorias diferentes.
No caso do Brasil, o Estado já tem reconhecido as comunidades quilombolas como titulares dos direitos no que se refere à Convenção 169 da OIT,
sendo este país, ao lado da Colômbia e do Equador, o único a reconhecer as comunidades afro-descendentes como titulares da Convenção na América do Sul.
Com relação aos critérios de identificação, vale a pena destacar que unicamente a regulamentação equatoriana faz referência ao critério de auto-identificação, a que se refere a Convenção 169 no seu artigo 2o, enquanto as demais regulamentações insistem em indicar órgãos públicos competentes para identificar as comunidades às quais se devem aplicar os regulamentos. (veja quadro comparativo sobre sujeito de direito das legislações dos cinco países mencionados).
2. Do objeto e âmbito de aplicação
Este elemento refere-se ao tipo de decisão administrativa contemplada na regulamentação como objeto da consulta prévia, assim como aos critérios definidos em cada país para decidir sobre a afetação de um empreendimento aos povos indígena e tribais titulares do direito de consulta. No caso das regulamentações vigentes na América do Sul, é importante mencionar que a grande maioria delas faz referência a decisões administrativas decorrentes da exploração de hidrocarbonetos dentro de territórios indígenas, como é o caso da regulamentação do Equador e da Bolívia. Já no caso da Colômbia, o decreto pretende regulamentar a consulta prévia referente a qualquer decisão administrativa que tenha a ver com a utilização de recursos naturais renováveis e não-renováveis em territórios de povos indígenas e comunidades negras.
Com relação aos critérios de afetação, merece destaque o fato de que a maioria das regulamentações existentes somente faz referência a empreendimentos dentro dos territórios indígenas ou tribais, sem estabelecer critérios de afetação para definir a procedência da consulta prévia, quando se trata de empreendimentos realizados fora dos territórios reconhecidos, mas que têm impacto direto sobre os povos interessados. A regulamentação equatoriana introduz um critério de afetação adicional à territorialidade ao definir o objeto das consultas como todas “as atividades de exploração de hidrocarbonetos que afetem diretamente povos indígenas e afro-equatorianos sempre que estes habitem as áreas de influência direta da atividade objeto de licitação ou licenciamento ambiental”.
No mesmo sentido a regulamentação colombiana também menciona o conceito de área de influência e dispõe que ,em caso de existir disputa sobre a abrangência das mencionadas áreas, será a autoridade ambiental competente a que decidirá a área de influência do projeto, obra ou atividade, sem que exista uma predefinição de distância fixa para todo o empreendimento (Art. 3o parágrafo 2o).
A evidente preocupação nas regulamentações pela exploração de hidrocarbonetos em territórios dos povos interessados se explica na medida em que o direito de consulta prévia começou a ser reivindicado pelos povos, principalmente neste tipo de atividade, a qual, pela importância econômica que representa, tem constituído os maiores empates políticos entre os povos e os Estados Sul-americanos. Vale a pena perguntar-se se a regulamentação de procedimentos de consulta consegue conciliar interesses tão polarizados e antagônicos como os que se enfrentam neste tipo de caso. Provavelmente é a regulamentação boliviana sobre a matéria a que mais seriamente se dispõe a desenvolver verdadeiras negociações, pela própria proposta de consulta que exige a existência de um consenso e não se limita, como o restante das regulamentações, a impor uma decisão final adotada unilateralmente pelo Estado.
Finalmente, um elemento que é praticamente desatendido pelas regulamentações acima comparadas é a definição de critérios de afetação de empreendimentos aos povos interessados. A falta de clareza sobre este ponto é parte dos principais problemas que enfrentam os povos, em se tratando de atividades realizadas fora de seu território mas com incidência e impacto direto sobre sua população e recursos naturais. Para futuras regulamentações da aplicação do direito de consulta prévia é fundamental ter uma proposta referente aos critérios de afetação. (veja quadro comparativo sobre âmbito de aplicação e critérios de afetação das legislações dos cinco países mencionados).
3. Sobre a representatividade dos povos
A representatividade é um elemento que deve ser definido com relação às pessoas ou instituições consideradas representativas dos povos indígenas e tribais para participar do processo de consulta prévia. Assim, representatividade faz referência aos interlocutores legítimos para realizar adequadamente cada processo de consulta. Neste elemento são debatidas questões como: quais devem ser os critérios para definir a instituição representativa dos povos? Que papel devem desempenhar as organizações locais, regionais e nacionais? Como definir as instituições representativas mais idôneas para tomar as decisões finais? Como garantir que os povos afetados sintam-se representados pelas instituições que participam da consulta?
A respeito deste elemento, cada país propõe fórmulas diferentes, sendo a proposta pela Bolívia a mais complexa e completa, partilhando com a Venezuela e o Equador a insistência de que sejam as autoridades locais das comunidades diretamente afetadas as representantes legítimas dos processos de consulta prévia.
Na Bolívia, se exclui, explicitamente, a possibilidade de realização de consultas prévias com indivíduos ou alguns setores dos povos ou comunidades envolvidos no processo. Insiste-se no princípio da integralidade da consulta, o qual passa pela compreensão da totalidade dos povos afetados e suas diferentes instituições de representação e mecanismos de tomada de decisões. Nesse país está previsto que as decisões adotadas pelos representantes locais sejam ratificadas pelas respectivas comunidades, para garantir que o conteúdo dos acordos contenham a vontade das pessoas diretamente afetadas pelas atividades objeto de consulta.
Nas regulamentações comparadas, as organizações regionais ou nacionais têm um papel secundário e, em alguns casos, sua participação é limitada ao acompanhamento das comunidades diretamente afetadas pelo empreendimento. Somente no caso equatoriano existem disposições explícitas no sentido de proibir a participação das organizações indígenas de caráter regional e nacional no processo de consulta. A principal preocupação comum de todas as regulamentações é garantir que sejam as pessoas diretamente envolvidas nos impactos das obras as que decidam sobre o objeto da consulta. Por exemplo, no caso peruano, a lei exige que os indivíduos que falem em nome dos povos apresentem atas, nas quais constem a delegação de poderes e o conteúdo da decisão que o representante está autorizado a discutir (Art. 8. Resolución de Intendência 019-2005).
A regulamentação equatoriana está principalmente preocupada com a identificação das comunidades concretamente afetadas, a fim de limitar a interlocução única e exclusivamente a elas, evitando que organizações indígenas de nível regional e nacional participem do processo e das decisões.
Finalmente, o elemento da representatividade é sumamente delicado e deve prever o papel das diferentes instâncias de representatividade e organização dos povos dentro do processo de consulta, assim como eventuais divisões e desacordos internos, que devem ser compreendidos e respeitados como parte do processo de tomada de decisão de cada povo. Neste elemento da regulamentação, é igualmente fundamental definir o papel da entidade indigenista do Estado para efeitos de decidir a sua função com relação às partes envolvidas no processo. (veja quadro comparativo sobre representatividade das legislações dos cinco países mencionados).
4. Da autoridade competente para liderar o processo de consulta prévia
A representatividade dos órgãos do Estado responsáveis pela consulta prévia é a outra cara da moeda da representatividade dos povos, que requer ser definida com igual cuidado, para garantir a legitimidade dos interlocutores estatais no processo.
A esse respeito surgem perguntas como: qual é a entidade mais competente para liderar cada processo? Nos casos para os quais o processo de consulta prévia implica a necessidade de discutir com várias entidades pela dispersão de competências, como deve ser a participação de todas elas? Pode uma entidade só coordenar a interlocução com os povos interessados e comprometer legitimamente a vontade de outras entidades públicas?
Com relação a este tema, não parece existir muito consenso entre as legislações existentes. Estas variam entre a definição desta competência para, como é o caso colombiano, a entidade indigenista do Estado até as entidades ambientais dentro do Ministério de Minas e Energia (como é o caso do Equador) e o Ministério de Meio Ambiente, como é o caso da Bolívia.
Claramente, a entidade do Estado competente para cada consulta vai depender do objeto e do tipo da consulta, mas é necessário definir quais são os critérios para nomear o interlocutor oficial dos povos, assim como a articulação interna do governo, já que a maioria das vezes as decisões envolvem várias instâncias e entidades do Estado que, necessariamente, devem participar de forma direta no processo de consulta, para garantir que as discussões e debates nele levantados possam ser efetivamente incorporados pelo agente público com a competência para fazê-lo. Igualmente importante é que a definição da entidade competente leve em consideração o poder real de coordenação dentro do Estado que esta possa exercer, porque não adianta indicar a competência para uma entidade fraca política e orçamentariamente falando.
Um ponto que não admite discussão sobre este elemento é a impossibilidade de o Estado delegar a execução do processo de consulta prévia ao empreendedor particular interessado na obra, projeto ou atividade, já que a natureza política e os interesses constitucionais que a consulta implica são incompatíveis com os interesses de ator particular que, por sua vez, seria juiz e parte no processo. É fundamental ter presente que a interlocução se deve dar entre o Estado, que adota medidas administrativas (licenças, autorizações, concessões, contratos, licitações etc.), e os povos indígenas e tribais afetados por estas. A participação dos empreendedores interessados é uma relação direta entre estes e o Estado, que, por sua vez, se verá afetada pelo produto da consulta, mas que não pode interferir na relação do Estado com os povos.
Entre a legislação sistematizada, somente no caso do Equador existe um tipo de consulta prévia (a chamada consulta prévia de execução) que pode ser realizada diretamente pelo empreendedor privado com os povos afetados, sendo esta uma das razões pelas quais os movimentos indígenas questionam a legitimidade do regulamento vigente. A própria OIT tem manifestado que a Consulta Prévia é um procedimento público indelegável a qualquer particular .(veja quadro comparativo sobre representatividade das legislações dos cinco países mencionados).
5. Sobre os procedimentos e prazo
Este elemento é possivelmente o mais importante para qualquer tipo de consulta, já que este direito é procedimental, ou seja, ele consiste na garantia de um conjunto de procedimentos que devem permitir aos povos preencher o conteúdo específico de cada circunstância e particularidade. O principal objetivo da Convenção 169 era, precisamente, introduzir a necessidade dos Estados de adaptar os procedimentos de participação dos povos interessados sobre as medidas que lhes afetam, de tal forma que a participação fosse eficiente a ponto de influenciar a decisão final.
A pergunta óbvia sobre este ponto é como conseguir regulamentar procedimentos e prazos, o suficientemente adaptáveis à variedade e diversidade de povos e circunstâncias, sem consistir uma imposição e respeitando os costumes e tradições de cada povo para a tomada de decisões. Nas regulamentações vigentes, é possível observar todo tipo de respostas a este questionamento. Na Bolívia, a fórmula legislativa é a única que contempla a possibilidade de que, em cada caso concreto, seja definido seu próprio procedimento e cronograma; os demais regulamentos trazem prescritos procedimentos gerais tais como oficinas, assembléias e reuniões, assim como prazos e cronogramas fechados, limitando as formas próprias de deliberação e tomada de decisão dos povos.
No Equador (Arts. 23, 27, 31, 34 e 36), o regulamento impõe um cronograma, um procedimento de interlocução e de tomada de decisões burocratizado por um escritório localizado no território afetado e administrado por funcionários dos empreendedores que executam as consultas. O procedimento descrito é tão impositivo e formal que contempla a possibilidade de não aceitar os comentários que não cumpram com os requisitos do formulário de compilação de informação por eles desenhado. O regulamento equatoriano não prevê, em nenhum momento, espaço para as formas próprias de participação e tomada de decisão dos povos interessados. Por esta e outras razões, a própria OIT tem manifestado, em repetidas oportunidades, que este regulamento não é conseqüente com a Convenção 169 da OIT.
Vale a pena mencionar que todos os regulamentos incluem a obrigação de realizar as consultas na língua dos povos envolvidos no processo, exceto o regulamento equatoriano, que não faz referência ao assunto.
Finalmente, merece destaque o procedimento inscrito na regulamentação boliviana que coincide com a jurisprudência da Corte Constitucional colombiana, no sentido de exigir que, antes de começar um processo de consulta, sejam acordados entre as partes os procedimentos e prazos que serão adotados para cada caso específico, respeitando a particularidade dos povos e dos conteúdos a ser discutidos (veja quadro comparativo sobre prazos e procedimentos das legislações dos cinco países mencionados).
6. Da informação e o apoio técnico durante o processo de consulta prévia
De maneira geral, toda a legislação comparada faz referência à necessidade de alimentar o processo de consulta com informação clara, compreensível, pertinente e de acordo com as características lingüísticas dos povos que estão sendo consultados. Somente no caso equatoriano o regulamento inclui um tipo de exclusão de informação considerada como sigilosa pelo Ministério de Minas e Energia ou pelo próprio empreendedor particular. O texto do Decreto da Bolívia é, sem sombra de dúvidas, o mais completo em relação às características e oportunidades da informação que devem circular durante o processo de consulta. Elementos que merecem destaque nesta regulamentação são a disponibilidade de tempo e meios de socialização, para a discussão interna entre os povos, sobre a informação disponibilizada, assim como a possibilidade de apoio técnico independente.
A independência do suporte técnico é um elemento fundamental para o sucesso da consulta, visto que a construção da confiança entre as partes vai depender em grande medida dele. Este instrumento ajuda as partes na compreensão das propostas e equilibra, na medida do possível, o manejo da informação para que as partes possam adotar decisões que as satisfaçam. Apesar da importância deste elemento, somente a lei orgânica dos povos indígenas da Venezuela (Art. 14) e a regulamentação boliviana mencionam explicitamente a obrigação de garantir este elemento. Nos outros regulamentos nada se fala a respeito (veja quadro comparativo sobre informações e apoio técnico das legislações dos cinco países mencionados).
7. Sobre os custos e o financimento do processo de consulta
A resposta à pergunta sobre quem deve bancar os custos econômicos dos processos de consulta é fundamental para garantir a viabilidade, independência e credibilidade do mesmo. Nas diferentes regulamentações, há fórmulas que combinam todo tipo de possibilidades; desde a equatoriana, que considera que os povos interessados devem pagar os custos econômicos necessários para sua participação no processo de consulta prévia, ou a colombiana, que nada menciona sobre tão importante ponto; até propostas como a boliviana, em que a lei determina que os custos deverão estar a cargo do Poder Executivo responsável por autorizar o projeto, obra ou atividade hidrocarbônica.
O ideal neste ponto é que o Estado seja o executor dos recursos necessários para a realização do processo, tendo em vista que sempre que existam interesses privados envolvidos na decisão existe a possibilidade de usar os recursos econômicos para gerar pressões indevidas e constranger a tomada de decisões. Por exemplo, na regulamentação equatoriana, se prevê que os povos façam uma solicitação ao empreendedor privado para que este, em um ato de liberalidade, financie os custos relativos a sua participação no processo.
É importante lembrar que o processo de consulta prévia resulta, unicamente, de decisões administrativas, as quais, por sua natureza, implicam interesses públicos cuja obrigação de cuidado e promoção é principalmente do Estado. (veja quadro comparativo sobre financiamento dos processos de consulta prévia nas legislações dos cinco países mencionados).
8. Dos efeitos jurídicos dos acordos e as conseqüências jurídicas da negativa
Com relação aos efeitos jurídicos dos acordos produtos do processo de consulta, a totalidade das regulamentações alude a um princípio contratual para afirmar que o conteúdo dos acordos resultantes da consulta é obrigatório para todas as partes e que, conseqüentemente, em possíveis casos de não-cumprimento, estarão disponíveis todos os remédios jurídicos ordinários para exigir a execução dos acordos. Adicionalmente aos mecanismos contratuais, no caso da Bolívia (Art.16), se prevê que o processo de consulta prévia poderá ser impugnado por não incorporar adequadamente os resultados desta ao conteúdo dos atos administrativos objeto da consulta. A regulamentação venezuelana (art.19) inclui a possibilidade de se utilizar a ação de amparo para exigir o cumprimento do regulamento de consulta, que, neste caso, implica o direito de veto. Na Colômbia, o fato de a consulta prévia ser reconhecida pela Corte Constitucional como um direito fundamental permite que este seja exigido judicialmente mediante a ação de tutela, que é uma ação sumária de proteção rápida, similar a ação de amparo.
A principal preocupação com relação aos efeitos jurídicos do produto da consulta prévia tem a ver com as conseqüências jurídicas da negativa, já que, neste ponto, está subentendida a questão: o direito de consulta previa implica, ou não, um direito de veto dos povos envolvidos nas decisões legislativas e administrativas que lhes afetam diretamente? Ou seja, se a negativa dos povos envolvidos na decisão é suficiente para que esta não seja adotada unilateralmente pelo Estado. Sobre isso, a regulamentação peruana menciona explicitamente que a consulta não implica veto dos povos sobre a decisão, que no final é sempre do Estado. A regulamentação colombiana dispõe no mesmo sentido.
Nos casos da Bolívia e da Venezuela é diferente. No primeiro destes países, a lei e o decreto definem que, diante da negativa dos povos envolvidos, será necessário iniciar um processo de conciliação “no melhor interesse nacional”, sem que se especifique o que acontece caso não se chegue um acordo. A lei boliviana (art.116 Lei 3058 de 2005) não autoriza o Estado a tomar uma decisão unilateralmente. No caso da lei orgânica de povos indígenas da Venezuela fica claro que, diante da negativa dos povos indígenas , é proibida qualquer tentativa de adotar uma decisão em sentido contrário. Vale a pena citar o texto sobre o assunto da lei venezuelana: Art.17 “(...) en caso de que los pueblos y comunidades indígenas involucrados expresen su oposición al proyecto referido, los proponentes podrán presentar las alternativas que consideren necesarias, continuando así el proceso de discusión para lograr acuerdos justos que satisfagan a las partes. Queda prohibida la ejecución de cualquier tipo de proyecto en el hábitat y tierras indígenas por persona natural o jurídica de carácter público o privado que no hayan sido previamente aprobados por los pueblos o comunidades indígenas involucrados.” Sendo a Venezuela o único país que optou pela alternativa do veto, vale a pena estar atento a implementação deste dispositivo. (veja quadro comparativo sobre efeitos jurídicos dos processos de consulta prévia nas legislações dos cinco países mencionados).
Depois da breve apresentação das normas que regulamentam o direito de consulta prévia na América do Sul, ficam claras pelo menos duas coisas. A primeira é que não existem fórmulas únicas para pensar o desenvolvimento jurídico desse direito, que as possibilidades são múltiplas e que a escolha política dentre o leque de possibilidades vai depender do arranjo entre os povos interessados e seus respectivos Estados, sem necessidade de radicalismos.
A segunda é que, de acordo com as regulamentações citadas, o direito de consulta prévia vem sendo interpretado como um instrumento exclusivo de autorização para a exploração de recursos naturais nos territórios dos povos envolvidos, o que tem deixado em segundo plano a sua dimensão política mais ampla, que lhe permite pensar os procedimentos e efeitos da participação dos povos na definição das políticas públicas, tanto legislativas quanto administrativas, que afetam seu presente e futuro.
Ninguém desconhece a pertinência de discutir os assuntos relativos à exploração dos recursos naturais por terceiros em territórios indígenas e tribais, mas o direito de consulta prévia propõe aos povos e aos Estados pensar, conjuntamente, e de maneira integral, as decisões que lhes afetam em todas as dimensões da vida. Seria um desperdício limitar esta oportunidade.
Por enquanto, esta é uma simples introdução da produção jurídica existente sobre a matéria. A totalidade das informações contidas neste item, assim como alguns pareceres de especialistas sobre cada caso específico, podem ser consultados a seguir, país por país.
Confira abaixo quadros comparativos sobre cada item.