Entrevistas http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa/?q=taxonomy/term/17/all pt-br De Buffalo Bill a Touro Sentado http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa/?q=node/524 <div class="field field-type-text field-field-entrevistado"> <div class="field-label">Entrevistado:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Carlos Ayres Britto </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-autor"> <div class="field-label">Autor:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Paloma Oliveto e Mirella D&#039;Elia </div> </div> </div> <div class="field field-type-date field-field-data-artigo"> <div class="field-label">Data de publicação:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> <span class="date-display-single">06/04/2009</span> </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-fonte"> <div class="field-label">Fonte:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> CB </div> </div> </div> <p><I>Relator do processo sobre a reserva Raposa Serra do Sol, ministro diz ter enfrentado o próprio preconceito</i></p> <p><STRONG>O julgamento sobre a demarcação da Raposa Serra do Sol foi bastante polêmico. O senhor já tinha um posicionamento antes de ser relator? </strong></p> <p>Não, vou contar a pura verdade. Quando eu comecei com meu voto, a minha cabeça era "de branco". Então, já fui dizendo aquilo mesmo: "Como é que se reserva tanta terra para índio?"; ou então: "Os índios fazem parte de uma cultura primitiva e os não índios de uma cultura evoluída". Comecei assim, me pegando preconceituoso. Às vezes a gente pensa que não tem preconceito, mas tem. Está lá no fundo da gente. A minha cultura me impunha esse condicionamento, de ver os índios como seres inferiores, à espera de tutela, como se fossem incapazes. Mas à medida que eu ia lendo a Constituição, palavra por palavra, termo por termo, expressão por expressão, eu, que tinha a obrigação de ser um militante da Constituição, fui percebendo que o capítulo versante sobre os índios foi feito por antropólogos e indigenistas de grande conhecimento. A Constituição é um sonoro não a essa cultura do branco. O que ela diz é que há duas civilizações. A do branco e a do índio. Há duas dignidades.</p> <p><STRONG>No seu voto, o senhor falou que os índios têm o direito de nos catequizar. O senhor foi catequizado por eles?</strong> </p> <p>Sim, exatamente isso. A aculturação é uma estrada de mão dupla. Não é só o índio nos conhecer para aprender conosco. É a gente conviver com os índios para aprender com eles. Para a Constituição, a aculturação é uma soma, um ganho, uma justaposição. O índio aculturado ganha a cultura do branco sem perder sua cultura. O branco que convive com os índios aprende com eles. Eu fui aprendendo aos pouquinhos. Refletindo, estudando, indo atrás das coisas. Eu comecei Buffalo Bill e terminei Touro Sentado. Foi assim que o meu voto começou e terminou. Terminou por um modo diametralmente oposto de como começou. Para os índios, a terra não é um bem. Para eles, a terra não é uma coisa, é um ser, é um espírito protetor. A Constituição diz: "Os índios não podem ser removidos de suas terras, a não ser diante de uma grave calamidade". Na cabeça do índio é o seguinte: "Não adianta me pagar pela terra". Ele não quer ser indenizado nem reassentado. No imaginário do índio, ele pensa: "Eu vou sair daqui, mas meus ancestrais vão ficar". Então é uma violência para eles.</p> <p><STRONG>Com a aprovação da condicionante do ministro Menezes Direito, que impede a revisão de demarcações já feitas, como ficam os outros processos já impetrados no STF?</strong> </p> <p>Na realidade, as 19 cláusulas foram uma inovação de forma, e não conteudística. Já estavam no meu voto e na Constituição. O Menezes Direito me disse várias vezes: "Britto, estudei, estudei, estudei, e nossos votos são rigorosamente convergentes. Em tudo. Apenas, eu vou inovar na técnica". E eu aplaudi. Ele é um ministro muito culto, muito preparado. E ele foi muito elegante quando sugeri a ele uma nova redação àquelas cláusulas. Ele acatou com uma elegância, tudo ele acatou. No conteúdo, nossos votos convergiram. Mas essa número 17 foi novidade. Ele disse o seguinte: que demarcação indígena, uma vez feita, está ungida e sacramentada, e nunca mais pode ser revista judicialmente. Eu discordei, mas fui voto vencido. Tentei ainda estabelecer um limite temporal. Demarcação feita depois da Constituição não se mexe, mas as de antes? É preciso se mexer, para assegurar aos índios a reprodução física e cultural. Mas fui voto vencido. </p> <p><STRONG>E o que ocorre com outros processos que já estão no Supremo, como o dos Pataxó Hã-hã-hãe?</strong></p> <p>Aí é que está. Ao levar ao pé da letra essa decisão, essa cláusula, não se reabre a discussão. Tenho esperança ainda de reverter. A Raposa Serra do Sol exaltou muitos ânimos, mas numa outra oportunidade acho que os ministros que apoiaram Menezes podem rediscutir isso, diante de um caso concreto de vistosa contração territorial em desfavor dos índios. </p> <p>CB, 06/04/2009, Brasil, p.6</p> Entrevistas Tue, 07 Apr 2009 19:49:19 +0000 leila 524 at http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa "As populações indígenas têm que participar do desenvolvimento do Estado", diz advogada http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa/?q=node/492 <div class="field field-type-text field-field-entrevistado"> <div class="field-label">Entrevistado:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Ana Paula Caldeira Souto Maior </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-autor"> <div class="field-label">Autor:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Thais Iervolino </div> </div> </div> <div class="field field-type-date field-field-data-artigo"> <div class="field-label">Data de publicação:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> <span class="date-display-single">24/03/2009</span> </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-fonte"> <div class="field-label">Fonte:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> www.amazonia.org.br </div> </div> </div> <p><i>Em entrevista, Ana Paula Caldeira Souto Maior, advogada do Instituto Socioambiental (ISA), falou não só sobre as consequências do julgamento na terra indígena Raposa Serra do Sol, como também analisou quais podem ser os impactos da decisão sobre outros processos de demarcação de Tis, além de abordar as necessidades e direitos dos povos indígenas.</i></p> <p><strong>Qual a sua opinião sobre o julgamento do STF realizado na semana passada?</strong></p> <p>Foi um resultado bem positivo para a Raposa Serra do Sol, porque reconheceu que a demarcação foi feita com base em um procedimento administrativo legítimo, que não houve nenhum vício que maculasse esse processo. Reconheceu que é possível demarcar Terra indígena em faixa de fronteira, mostrou que a forma de demarcar TI, realizada pela Funai [Fundação Nacional do Índio], implica na demarcação ou no reconhecimento integral das terras ou do direito dos índios à terra e não um reconhecimento parcial como era postulado pelo Estado de Roraima. Todas essas questões foram discutidas no bojo do processo.</p> <p>Outra questão suscitada foi com relação ao Estado que tenha uma parte significativa de seu território ocupado por terras indígenas - e essas terras pertencem à União - se essas terras não comprometeriam a existência do Estado, causando um conflito federativo. E foi estabelecido que não, que mesmo tendo parte significativa de seu território ocupado por populações indígenas - e neste caso o Estado de Roraima é um Estado excepcional, porque é o Estado que tem a maior parte de território físico ocupado por populações indígenas, cerca de 45% - a ocupação dos índios em seu território não compromete a existência do Estado, nem tampouco o seu desenvolvimento econômico.</p> <p>Na verdade as populações indígenas têm que participar do desenvolvimento do Estado, que deve ser pensado a partir da sua realidade, no caso a existência dessas populações. Então esses fatos são muito importantes e eles valem não só para a demarcação da Raposa Serra do Sol, mas para todas as terras indígenas que foram demarcadas de acordo com o artigo 231, da Constituição Federal.</p> <p><strong>No julgamento foram colocadas 19 condicionantes. Qual é a sua opinião sobre elas?</strong></p> <p>Elas trazem inquietações. Algumas delas repetem o texto constitucional - e quanto a isso não há problema algum - mas aquelas que representam inovações, trazem algumas preocupações.</p> <p>Uma delas é com relação à construção de obras, que em terras indígenas que forem consideradas de cunho estratégico pelas Forças Armadas não precisarão de consulta às comunidades indígenas, nem à Funai. Entendo que isso fere o direito das comunidades indígenas de serem ouvidas, de criar um diálogo com o poder público para realizar qualquer obra dentro do seu território. A convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho] sobre populações indígenas e tribais é bem clara ao dizer que os povos indígenas devem ser consultados sob quaisquer medidas administrativas ou legislativas que vão afetá-los. A gente entende que essa é uma questão que traz preocupações.</p> <p>Outra é a vedação da ampliação de terras que já foram demarcadas. As terras indígenas que foram demarcadas antes da Constituição de 1988 foram demarcadas dentro da perspectiva de que os índios iriam ser assimilados à sociedade nacional, que eles deixariam de viver de acordo dos seus usos, costumes e tradição. A partir de 1988, a Constituição reconhece a forma própria de existir dos povos indígenas e eles têm o direito de manter a sua própria cultura, falar a sua própria língua, ter suas concepções de saúde, educação. E a demarcação das terras indígenas é feita com o que está descrito na Constituição do que são as terras indígenas.</p> <p>São estabelecidos, então, quatro critérios: que as terras indígenas são os locais onde os índios moram e habitam, são as áreas que eles precisam para manter suas atividades produtivas, são as áreas onde haja condições físicas - rios, matas - que permitam eles se reproduzirem, como também áreas onde eles precisam ter para a reprodução física e cultural. Física no sentido de que as populações vão aumentar e eles precisam ter uma terra suficiente para isso e reprodução cultural são áreas onde têm um significado mítico, religioso, para cada população específica.</p> <p>As terras que foram demarcadas a partir de 1988, como é a terra indígena Raposa Serra do Sol, como é a terra indígena Yanomami e outras, levaram em consideração esses aspectos constitucionais. As terras que foram demarcadas antes de 1988 não levaram em consideração esses aspectos, pelo contrário, levaram em consideração que os índios estavam ali no local e que eles não precisariam de nenhum outro espaço porque o seu futuro era ser assimilados, era passar a vivem sem a sua cultura.</p> <p>Então vários pedidos, se não me engano 90 pedidos, estão encaminhados à Funai solicitando a ampliação dessas áreas indígenas. Essas populações que moram nessas áreas serão diretamente afetadas por essa orientação que foi estabelecida pelo STF. Esses 90 pedidos que estão em processos podem ser prejudicados.</p> <p><strong>A condicionante que diz respeito à participação mais efetiva dos entes federativos nos processos de demarcação ajudará no processo de demarcação?</strong></p> <p>Podem ter casos em que a participação efetiva dos municípios e Estados pode representar um retardo na demarcação. Agora, é difícil prever, pode ser que em alguns casos, conhecendo a realidade dos índios, os Estados e municípios se mobilizem em reconhecimento daquele direto. Normalmente os Estados e municípios estão mais movidos pelas suas questões econômicas locais e existe uma estabilidade muito menor para o reconhecimento do direito dos índios que habitam na área física.</p> <p><strong>O julgamento da Raposa Serra do Sol servirá de base para a demarcação de outras Tis. De que forma as terras indígenas que estão em processo de demarcação serão beneficiadas ou impactadas pelo julgamento?</strong></p> <p>As orientações que foram colocadas, com exceção desta que inclui a participação efetiva dos Estados e municípios no processo de demarcação da TI, as demais são voltadas à utilização dos recursos naturais que existem dentro das terras indígenas. A questão da vedação de ampliação é a que é mais danosa. Como isso vai influenciar nas próximas demarcações, tem ainda que se ver.</p> <p>Durante a fundamentação dos votos dos ministros, eles discutiram sobre o fato indígena, que seria uma substituição ao direito originário indígena à terra. Por exemplo, o ministro Lewandovsky menciona que a Constituição de 1988 seria um marco para defender os direitos dos indígenas à terra. Então se os indígenas estivessem na sua terra na data da promulgação da constituição, eles têm direito à terra. Mas se eles não estivessem lá, esse direito não seria reconhecido.</p> <p>Mas o ministro Ayres Britto, por exemplo, menciona em seu texto que se os índios não estavam em suas terras por vontade alheia, se eles foram expulsos, eles teriam ressalvado o direito a elas. No voto do ministro Ayres Britto, ele deixa a questão dos índios que não estavam em 1988 ocupando a terra indígena, ele fala que eles teriam esse direito.</p> <p><strong>A apresentação do Ayres Britto teria uma relevância maior?</strong></p> <p>Essas considerações estão nas fundamentações do voto. Um voto tem um relatório, tem uma fundamentação e tem a decisão. A decisão é a parte dispositiva e nela não tem nenhuma menção com relação a isso. Caberá à interpretação que será dada futuramente.</p> <p><strong>A maneira como o Estado vem tratando as demarcações é correta?</strong></p> <p>Acho que existe uma mudança na política indigenista, a partir de 1988 e antes de 1988. Depois de 1988, a política é essa de valorizar, de garantir os direitos indígenas. Houve um grande avanço no processo de demarcação</p> <p>Falta um maior respeito ou uma maior implementação ao direito dos índios de decidirem com relação aos seus planos de desenvolvimento dentro das próprias terras indígenas e de participarem na definição de políticas para o seu território, de políticas para as regiões em que eles vivem. Isso ainda precisa ser mais bem trabalhado por parte do Estado.</p> <p>Estamos vivendo agora uma crise na questão da saúde: A área do javari, os ianomâmis, que estão com problemas na prestação de saúde. Há outros aspectos também, não só o da terra, mas outros aspectos que precisam ser trabalhados de uma melhor forma.</p> <p><strong>Há ainda muitas terras a serem demarcadas? Qual outro caso que merece destaque?</strong></p> <p>Há 406 terras indígenas reconhecidas oficialmente, tem 198 reivindicações para reconhecimento oficial, que podem estar em algum processo, alguma fase do reconhecimento e tem mais 90 pedidos de ampliação.</p> <p>Um caso dos mais graves a ser pensado é a questão dos guaranis, do Mato Grosso do Sul, que é a maior população indígena do país e que não tem base física, não tem território, não tem terra suficientemente reconhecida e que possa garantir a sobrevivência física e cultural deles. Essa falta de uma base territorial ocasiona uma série de problemas que são nacionalmente conhecidos, desde desnutrição de crianças a problemas de alcoolismo, problemas de desestruturação social, suicídio entre jovens e idosos.</p> <p><strong>Existe no Congresso um projeto de Lei - de autoria do deputado Aldo Rebelo - que submete as demarcações de terras indígenas à aprovação do Congresso Nacional. Qual a sua opinião sobre isso?</strong></p> <p>Primeiro, esse é mais um projeto de lei sobre isso. Existem outros projetos de lei que já foram apresentados e que tentam a mesma coisa: fazer com que o Congresso Nacional participe do processo de reconhecimento da terra indígena. Nenhum desses projetos tem alcançado sucesso porque a Constituição é muito clara ao estabelecer que a competência do Congresso, no artigo 49, relativo aos direitos indígenas, se dá com relação a autorizar o aproveitamento dos recursos hídricos e minerais dentro de terras indígenas. </p> <p>Então cabe ao Congresso Nacional autorizar o aproveitamento de recursos hídricos e minerais dentro de terras indígenas, ouvidas as comunidades a serem afetadas. Essa é a competência, conferida pela Constituição, ao Congresso Nacional. Inclusive no voto do ministro Ayres Britto, tem todo um item que ele destina a isso: que é de competência do executivo e não do legislativo conceber a demarcação das terras indígenas.</p> <p>Outra questão é que cabe ao Congresso fazer o controle dos atos normativos do Executivo. O ato de demarcação de uma terra indígena é um ato administrativo. Então, quando o Executivo regulamenta o processo de demarcação de uma terra indígena, isso é considerado pelo STF como um ato administrativo do poder Executivo e esse ato não estaria passível de ser controlado pelo Congresso Nacional, que só teria competência para controlar os atos considerados normativos.</p> <p>Tanto esse PL que visa que o Congresso Nacional participe na demarcação de terras indígenas, quanto vários projetos de decretos legislativos que visam suspender a demarcação de terras indígenas e suspender o decreto do Executivo que regulamenta a demarcação de Tis não têm como prosperar. Eles vão de encontro à Constituição. Neste sentido, existem propostas de emendas à Constituição [PECs] buscando mudar a competência do Congresso Nacional, para que essas Pls tenham êxito. Nenhuma das PECs apresentadas, muitas delas há bastante tempo, foram aprovadas até agora. Justamente pelo entendimento que a demarcação das Terras Indígenas é de competência do Executivo e não do Legislativo.</p> <p><strong>O que é necessário fazer para que os índios tenham uma qualidade de vida e seus direitos respeitados?</strong></p> <p>Se você pegar Raposa Serra do Sol como exemplo, é uma terra indígena onde todos os professores são professores indígenas. A Universidade de Roraima tem um curso que é voltado para a formação de professores indígenas. Eles têm conseguido ter uma qualidade de vida boa. Agora isso com 30 anos de organização política, de luta. Mas mostra que é possível haver um respeito aos direito dos índios. Tem que ter participação dos índios.</p> Entrevistas Tue, 24 Mar 2009 19:33:24 +0000 leila 492 at http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa Pelas áreas contínuas http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa/?q=node/421 <div class="field field-type-text field-field-entrevistado"> <div class="field-label">Entrevistado:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Carlos Ayres Britto, ministro do STF </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-autor"> <div class="field-label">Autor:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Luiz Antonio Cintra </div> </div> </div> <div class="field field-type-date field-field-data-artigo"> <div class="field-label">Data de publicação:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> <span class="date-display-single">17/12/2008</span> </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-fonte"> <div class="field-label">Fonte:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Carta Capital </div> </div> </div> <p><em>ENTREVISTA: Para o ministro Carlos Ayres Britto, o STF fez história no caso da Raposa<em /></em></em></p> <p><strong>Qual a avaliação que o senhor faz do resultado do julgamento?<strong /></strong></strong></p> <p>O núcleo da decisão foi o de que o procedimento demarcatório da Raposa-Serra do Sol foi todo ele jurídico, obedeceu rigorosamente aos parâmetros legais e constitucionais. Conforme, aliás, o meu voto proferido em agosto. Agora, essa decisão tem dois desdobramentos muito importantes. Em primeiro lugar, o de que o formato é mesmo o contínuo, e não o fragmentado, tipo "queijo suíço", em que os índios ficam com os buracos e os não-índios ficam com o queijo propriamente dito. O segundo desdobramento é que as terras constitutivas da reserva são totalmente indígenas, ali não há terras devolutas, que seriam do estado de Roraima, nem terras particulares, que seriam dos fazendeiros. Na verdade, o que decidimos foi isso. O ministro Carlos Alberto Direito propôs, porém, e foram aprovadas, condições para operacionalizar a decisão. Das dezoito condições propostas, umas quinze eram fundamentos do meu voto. Ele trouxe umas três novas, como a proibição de ampliar a área demarcada, que eu só aceito no caso da Raposa-Serra do Sol, mas não em toda demarcação, aí não vou concordar. Fala-se muito em demarcações anteriores em desconformidade com o modelo constitucional, em "ilhas", que, como sabemos, termina-se matando os índios de fome.</p> <p><strong>Quais condições serão de fato implementadas? <strong /></strong></strong></p> <p>Elas terão de ser discutidas. O ministro Direito adotou uma técnica de decisão nova, ao transportar fundamentos para a parte dispositiva da decisão, aquela que considerou todo processo de demarcação legal, em área contínua, onde as terras são integralmente dos índios. Ele levou em conta a complexidade e a delicadeza da questão, com possibilidade inclusive de confronto físico. Agora, as dezoito condições comportam discussão, sobretudo a que proíbe revisão da área demarcada.</p> <p><strong>O senhor ficou contrariado com a decisão do presidente do Tribunal de acatar o segundo pedido de vista do ministro Marco Aurélio Mello?<strong /></strong></strong></p> <p>Não posso deixar de dizer que estranhei o pedido de vista do ministro Marco Aurélio, eu não esperava. É uma questão já debatida, mas é um direito dele. Também não esperava que ele, além de pedir vista na ação popular, pedisse vista também na ação cautelar. Quando propus que, na ação cautelar, cassássemos a liminar (que permite a permanência dos nãoíndios na área indígena), quando se formou a maioria, fui surpreendido pelo segundo pedido de vista. Mas a minha estranheza não deslegitima o pedido de vista do ministro, que se aborreceu, dizendo que estava aprendendo comigo depois de 30 anos de exercício profissional. Ora, aprendemos todos os dias, uns com os outros, não tem essa de 30 anos. Se tivermos a mente e o sentimento abertos, aprendemos todos os dias e isso não é desdouro para ninguém.</p> <p><strong>Há quem considere as condições sugeridas pelo ministro Direito de competência do Congresso Nacional. O senhor concorda?<strong /></strong></strong></p> <p>Concordei com o formato decisório proposto pelo ministro Direito, ao cercar de condições o núcleo da decisão. Quanto a cada uma dessas decisões, é outra história, e já explicitei o meu dissenso. Quero inclusive estudar melhor algumas condições que ficam em uma linha muito tênue entre a legislação e a jurisdição, então precisamos retomar essa discussão. A referência ao Instituto Chico Mendes é uma delas, outra sobre tributos. Não que eu seja, a priori, contra, mas precisamos discutir. A priori, sou contra a cláusula 17, a que impede as revisões. Se na sessão de julgamento assentamos que o modelo é o contínuo, como vamos proibir a revisão de processos demarcatórios no modelo descontínuo? Mas o fundamental é que não podemos confundir o núcleo da decisão com as condições de operacionalização. Também é preciso deixar claro que o voto do ministro Direito foi muito estudado, muito cuidadoso, próprio de um erudito.</p> <p><strong>O ministro Cezar Peluso disse que o Exército tem a função de levar adiante o processo de "aculturação dos indígenas". O que o senhor acha?<strong /></strong></strong></p> <p>Para mim, o processo de aculturação é lento e não significa a assimilação de uma cultura pela outra, com a sobrevivência de apenas uma delas, no caso a dita civilizada, como se a aculturação fosse um dever do civilizado para absorver e mesmo aniquilar a cultura tida como primitiva. Aculturação é convivência reciprocamente benéfica, para que uma adense a outra. Em uma linguagem mais simples, os índios também têm o direito de nos catequizar um pouco, basta que sejamos inteligentes para aprender com eles. E a Constituição consagra um modelo de cultura que não é o do aniquilamento de nenhuma das duas. Quando se fala em reconhecer o modo de viver, de cultivar a terra, a Constituição fala em "segundo os seus usos, costumes e tradições", os dos indígenas, não os dos não-índios, dos brancos. De modo contemporâneo, não preconceituoso, a Constituição chancelou Paulo Freire, que dizia não haver saberes maiores ou menores, mas diferentes. Ou como diz o poeta Manoel de Barros, o saber dos índios tem força de fonte, é carregado de uma ancestralidade machucada por nós, os seus opressores, então temos de aprender com eles. E a Constituição consubstancia o mais sonoro "não" ao etnocídio, ou seja, à morte do espírito, à destruição dos elementos de uma cultura.</p> <p><strong>Qual o impacto do caso para o debate público dos direitos indígenas?<strong /></strong></strong></p> <p>Espero que essa decisão tenha a força de suscitar na sociedade brasileira um repensar da causa indígena, para que a sociedade perceba que tem muito a aprender com os índios. E que se lembre de Einstein, quando ele disse que é mais fácil desintegrar um átomo do que desfazer um preconceito. Então, o momento é oportuníssimo, a discussão toda pode desembocar em um passo adiante na direção de uma sociedade verdadeiramente fraternal, porque pluralista e sem preconceitos. Os índios são brasileiros, não são estrangeiros residentes no País. Devemos tirar partido disso. Somos beneficiados pela habitação deles em áreas de fronteiras, eles reagiram às invasões. É bom que estejam nas fronteiras, não é ruim. As Forças Armadas deveriam tirar partido disso, porque os índios conhecem o interior e as bordas do nosso território, são os mais íntimos da nossa geografia.</p> <p>Carta Capital, 17/12/2008, p.52-53.</p> Entrevistas Tue, 16 Dec 2008 17:51:24 +0000 leila 421 at http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa Antropólogo vê Raposa como marco político http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa/?q=node/435 <div class="field field-type-text field-field-entrevistado"> <div class="field-label">Entrevistado:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Paulo Santilli </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-autor"> <div class="field-label">Autor:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Lucas Ferraz </div> </div> </div> <div class="field field-type-date field-field-data-artigo"> <div class="field-label">Data de publicação:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> <span class="date-display-single">15/12/2008</span> </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-fonte"> <div class="field-label">Fonte:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> FSP </div> </div> </div> <p>O antropólogo Paulo Santilli, afirma que o entendimento do STF sobre a Raposa/Serra do Sol consagra a política indigenista desenvolvida pela Funai há décadas. Coordenador de Identificação e Delimitação do órgão, ele diz que essa linha do Supremo "vira" uma página no processo de reconhecimento dos "direitos territoriais indígenas". </p> <p><STRONG>Folha - Mesmo com as 18 ressalvas feitas, o indicativo do STF é uma vitória para a política indigenista da Funai?</strong></p> <p>Paulo Santilli - Consolida um longo processo de regularização fundiária que vem sendo desenvolvida há décadas.</p> <p><STRONG>Folha - O entendimento vira uma página da história da política indigenista?</strong></p> <p>Santilli - Vira a página do processo de reconhecimento oficial dos direitos territoriais indígenas, dos povos que vivem nessa área. </p> <p><STRONG>Folha - O caso da Raposa parece ter se tornado um dos mais emblemáticos da Funai.</strong></p> <p>Santilli - Se tornou emblemático, passou a simbolizar toda a política indigenista, condensou as várias ações em âmbito administrativo, judicial, político, na mídia. </p> <p><STRONG>Folha - E deixa alguma lição?</strong></p> <p>Santilli - Da persistência dos índios em busca do reconhecimento. Eles se esmeraram na interlocução com o Estado e se fizeram compreendidos.</p> <p>FSP, 15/12/2008, Brasil, p. A9.</p> Entrevistas Wed, 28 Jan 2009 20:28:23 +0000 leila 435 at http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa "Amazônia é vulnerável com ou sem índio", diz professora http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa/?q=node/434 <div class="field field-type-text field-field-entrevistado"> <div class="field-label">Entrevistado:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Marcelle Ivie da Costa Silva </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-autor"> <div class="field-label">Autor:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Breno Costa </div> </div> </div> <div class="field field-type-date field-field-data-artigo"> <div class="field-label">Data de publicação:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> <span class="date-display-single">15/12/2008</span> </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-fonte"> <div class="field-label">Fonte:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> FSP </div> </div> </div> <p>Não importa se a terra é ocupada por índios ou por fazendeiros: toda a faixa de fronteira da Amazônia brasileira é vulnerável. A análise é da coordenadora do curso de relações internacionais da Universidade Federal de Roraima, Marcelle Ivie da Costa Silva, que pesquisa as questões de segurança nas fronteiras brasileiras e está concluindo doutorado em ciência política pela Unicamp com a tese "Raposa/Serra do Sol: agentes políticos, conflitos e interesses internacionais na Amazônia brasileira". Ela diz que há "maniqueísmo" nas análises sobre a disputa na Raposa e que a Polícia Federal e a Funai não têm condições de saber se não-índios entram em áreas indígenas.</p> <p><STRONG>Folha - Como vigiar uma área de 1,7 milhão de hectares, em região de fronteira?</strong></p> <p>Marcelle Ivie da Costa Silva - Não é possível vigiar a Amazônia. É um problema geral, não uma questão dessa reserva. O fato de ser faixa de fronteira não vejo como sendo uma ameaça especial. É uma ameaça presente em outras faixas de fronteira, sendo área indígena ou não. Existe legislação específica que prevê a entrada das Forças Armadas em caso de ameaça.<br /> A gente não pode esquecer que a terra indígena Ianomâmi [na fronteira com a Venezuela] é mais extensa que a Raposa. As políticas públicas são feitas para a Amazônia, mas há várias amazônias. Dependendo do local, há particularidades que não são levadas em conta. Falta sentar com essas comunidades, ouvir o que precisam. Não basta demarcar e não dar condição para as populações se estabelecerem com qualidade de vida.</p> <p><STRONG>Folha - A Funai cumpre seu papel?</strong></p> <p>Marcelle - O problema da Funai não é só a política indigenista, a qual tenho críticas, mas também as condições que o Estado dá ao órgão. Você vai lá, demarca. É um processo lento.<br /> Na Raposa, culminou no que a gente está vendo: demarca e depois deixa as populações com pouca salvaguarda. Tem muita área demarcada onde as pessoas estão morrendo de fome.<br /> A Funai falha aí. Não por falta de vontade, mas por falta de recurso. Acho a política da Funai, de tutela do indígena, totalmente inadequada. Tem que capacitar populações para que se auto-sustentem. </p> <p><STRONG>Folha - Qual o controle do acesso de não-índios a terras indígenas?</strong></p> <p>Marcelle - Qualquer pessoa que vá a uma terra indígena precisa de autorização da Funai. Mas aí esbarra na burocracia. Às vezes, tem que esperar seis meses para uma autorização. O que as pessoas fazem?<br /> Vão sem, porque a burocracia é enorme. No mês passado, dois americanos foram pegos dentro da Raposa. Um era internacionalista e outro trabalhava para uma empresa de prospecção de petróleo. Mas é muito raro a Polícia Federal pegar alguém na Raposa sem autorização. Não tenho como provar, mas a gente sabe que há entrada de estrangeiros até porque a fronteira é vulnerável.<br /> A melhor maneira de fazer o controle é treinar a comunidade para fazê-lo. </p> <p><STRONG>Folha - Um dos argumentos centrais dos opositores à demarcação em área contínua é a ameaça à soberania nacional. Faz diferença se a terra é indígena ou não?</strong></p> <p>Marcelle - Não basta garantir uma soberania no âmbito do território. Não adianta ter uma presença enorme das Forças Armadas, seja ela terra privada ou da União, se você não tem forma de garantir que o conhecimento ou a ciência que pode ser gerada nessa área tão rica seja administrada pela comunidade científica do Brasil. A facilidade de transporte de informações hoje é incrível. Não precisa levar plantas, você faz pesquisa e leva informações em microchip. A riqueza não é necessariamente diamante ou ouro. Você pode ter uma mina de diamante que não vale nada perante a possibilidade de desenvolvimento da indústria farmacêutica, por exemplo. </p> <p><STRONG>Folha - O que o prolongamento do impasse na Raposa/Serra do Sol pode acarretar à região?</strong></p> <p>Marcelle - Há muito maniqueísmo. Por causa dessa polarização, um novo adiamento do julgamento traz mais ansiedade. Isso é um problema que vem há 30 anos. A Raposa virou um símbolo, mas temos outras questões indígenas para resolver. O caminho que se tomar tende a ficar como marco para futuras decisões. Um confronto direto pode acontecer? Pode.<br /> Mas não gostaria de colocar isso em tom alarmista porque as partes sabem que partir para a violência é muito prejudicial.</p> <p>FSP, 15/12/2008, Brasil, p.A10.</p> Entrevistas Wed, 28 Jan 2009 20:19:54 +0000 leila 434 at http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa Sem medo da polêmica http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa/?q=node/463 <div class="field field-type-text field-field-entrevistado"> <div class="field-label">Entrevistado:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Gilmar Mendes </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-autor"> <div class="field-label">Autor:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Luiz Carlos Azevedo e Denise Rothemburg </div> </div> </div> <div class="field field-type-date field-field-data-artigo"> <div class="field-label">Data de publicação:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> <span class="date-display-single">14/12/2008</span> </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-fonte"> <div class="field-label">Fonte:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> CB </div> </div> </div> <p><i>Nesta entrevista, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, fala da agenda do STF, repleta de casos polêmicos, um dos quais está em andamento, a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol.<i> </i></i></p> <p><STRONG>Há uma agenda polêmica no Supremo. Um dos temas é a demarcação das terras indígenas, com o caso Raposa Serra do Sol. O que há de novo nesse julgamento?</strong></p> <p>Existe o aspecto sensível da área cultivada da reserva. Mas também há os critérios de demarcação. Qual deveria ser o procedimento tendo em vista as questões que foram levantadas aqui, mas que se projetam sobre os casos que estão em andamento e até sobre as demarcações futuras? Nós tivemos um pouco essa resposta no voto proferido pelo ministro Carlos Alberto Direito, que já foi seguido até mesmo pelo relator, ministro Ayres Brito, e também por outros ministros. Então, nós temos essa orientação no sentido de que o estado e o município têm que participar desse processo, se eles estiverem entre as áreas afetadas e também as pessoas que forem afetadas devem participar dessas comissões. Elas devem ter algum tipo de representação. As áreas que já foram demarcadas não devem ser "redemarcadas". Porque nós temos esse processo contínuo no Brasil de a toda hora se retomar o processo de demarcação. Também se definiu o que as Forças Armadas podem ou não podem fazer nas áreas de fronteira. Elas não são submetidas à Funai, nem à vontade da comunidade indígena. E, no caso de dupla afetação de área ambiental e área indígena, preside a da área ambiental. Aquela declaração da ONU, tal como ela está - pelo menos na língua portuguesa, porque houve muita discussão sobre o significado dos termos em língua francesa, inglesa ou portuguesa-, não dá autonomia aos índios. Aquela declaração não nos afeta.</p> <p><STRONG>O Supremo não entrou numa tarefa que seria do Executivo e do Legislativo?</strong></p> <p>Essa história de o tribunal eventualmente usurpar competência ou assumir a competência de outro Poder nasce no mundo em 1803, com o célebre caso Marbury vs. Madison nos Estados Unidos. Desde então, há este debate: o tribunal está exorbitando ou não suas competências? O tribunal foi chamado para dirimir um sério conflito confederativo por um estado-membro que já sofrera uma série de déficits de eliminação de território com a demarcação de áreas indígenas e também de áreas ambientais, sem que fosse consultado, sem que participasse do processo. Essa é uma questão que não é só de Roraima, se projeta pelo Brasil afora. Então, o tribunal está aplicando a Constituição. A questão é mais complexa do que o capítulo que trata da área indígena. A Constituição tem como cláusula pétrea o princípio federativo.</p> <p>CB, 14/12/2008, Política, p.8.</p> Entrevistas Thu, 29 Jan 2009 21:25:25 +0000 leila 463 at http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa 'Decisão do STF piora a situação dos índios' http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa/?q=node/437 <div class="field field-type-text field-field-entrevistado"> <div class="field-label">Entrevistado:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Sydney Possuelo </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-autor"> <div class="field-label">Autor:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Daniel Bramatti </div> </div> </div> <div class="field field-type-date field-field-data-artigo"> <div class="field-label">Data de publicação:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> <span class="date-display-single">14/12/2008</span> </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-fonte"> <div class="field-label">Fonte:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> OESP </div> </div> </div> <p>O sertanista Sydney Possuelo, ex-presidente da Funai, é uma voz dissonante entre os indigenistas que comemoraram a decisão do Supremo Tribunal Federal em favor da demarcação contínua da reserva Raposa Serra do Sol, o que deve provocar a retirada dos arrozeiros da região.</p> <p>"Não foi uma vitória", disse Possuelo, indignado com as ressalvas feitas pelo ministro Carlos Alberto Direito, acolhidas pela maioria de seus colegas. O voto de Direito estabeleceu, por exemplo, que a construção de bases militares e estradas em reservas pode ser feita sem consulta prévia às comunidades e à Fundação Nacional do Índio (Funai).</p> <p>Depois de liderar expedições que marcaram os primeiros contatos de sete povos com homens brancos, nos anos 70, Possuelo passou a contestar o próprio modelo de política indigenista que o havia transformado em celebridade no mundo da antropologia. Em vez de "civilizar" os índios isolados, concluiu, o melhor seria monitorá-los e protegê-los de longe. No fim dos anos 80, essa política acabou adotada pela Funai - órgão que Possuelo presidiu de 1991 a 1993. A seguir, trechos de entrevista concedida pelo sertanista:</p> <p><strong>A decisão do STF foi vista como restritiva à atuação da Funai. Como o senhor a interpretou?</strong></p> <p>Tive a impressão de que os ministros não estavam interpretando leis, mas legislando. Essa declaração de que as Forças Armadas podem entrar nas áreas indígenas quando quiserem, sem pedir licença, fere o espírito com que o Estado brasileiro reservou aquelas terras para ser o habitat e o lar dos índios - lar que, na nossa sociedade, é inviolável. Não se demarca a casa de um povo para que ela seja invadida a qualquer momento ou para que se faça uma rodovia lá dentro. Numa fazenda que esteja na faixa de fronteira o Exército vai entrar quando quiser? Vai fazer uma estrada na hora em que quiser? O que quer fazer nas terras indígenas o Estado não faria numa fazenda particular.</p> <p><strong>Na sua opinião, os índios não têm nada a comemorar?</strong></p> <p>Não houve vitória. Decidiram que a demarcação tem de ser contínua, mas isso é um fato que o Supremo apenas reconheceu. Não se pode pulverizar a terra de um povo. Imagine que você ganhe uma casa, mas a cozinha fica em um bairro e o quarto em outro. A sociedade dos brancos continua ferina e horrível contra os povos indígenas. Cada vez que se mexe na legislação, é para piorar. Nada que engravatados brancos façam nas suas reuniões vem a melhorar a condição dos índios.</p> <p><strong>Os críticos das demarcações, com base na baixa densidade demográfica das reservas, dizem que os índios têm terras demais. Como o senhor vê esse argumento?</strong></p> <p>O Estado de Roraima, por exemplo, reclama do que nunca foi dele. Quando foi criado, o Estado já continha aquelas terras indígenas, que não passam a ser indígenas somente depois de demarcadas. O que faz uma área indígena é a presença dos índios. A União apenas reconhece a existência desse habitat imemorial. Dizem que a terra é grande demais? Mas são povos que não têm um supermercado ali na esquina, a produção não está centralizada em determinada área. A vida se organiza não em torno de um único lugar, mas na beira de um rio, no alto de uma montanha, na planície onde se planta, no cemitério distante...</p> <p>No aspecto econômico, os críticos vêem as reservas como pedaços do Brasil alijados do desenvolvimento.</p> <p>Se a terra é destinada a um povo, e a Constituição diz que assim devemos proceder, o destino da terra deve ser dado por aquele povo. De um modo geral, os índios são tecnologicamente menos desenvolvidos que nós, mas não menos inteligentes, não menos sábios. Falar em termos econômicos me parece complicado, é como calcular se uma floresta vale mais dinheiro em pé ou derrubada. É uma maneira muito comercial de olhar o mundo. Em Roraima, com exceção de algumas tribos ianomâmis, os povos indígenas já estão há muito tempo num processo de integração com a sociedade, inclusive econômica. Eles são um dos maiores produtores de carne bovina na região. Ninguém fala disso.</p> <p><strong>O senhor tirou muitos índios do isolamento, fez uma espécie de ponte entre esses povos e a chamada civilização. Que balanço faz desse processo?</strong></p> <p>Na década de 70 nós tivemos um trabalho que coincidiu com a época do Brasil grande, do "ame-o ou deixe-o", de toda a reconquista moderna da Amazônia brasileira, através da abertura de estradas, da criação de novos núcleos urbanos, do assentamento de trabalhadores rurais. Nessa época fiz sete contatos com grupos totalmente desconhecidos, sete povos. E foi fazendo esses contatos que aprendi a ver e a sentir os malefícios que causamos a esses povos.</p> <p>A partir do marechal Rondon, em 1910, o Estado brasileiro passou a ter, como postura oficial da República, uma visão ligada ao positivismo de que esses povos precisavam ser alcançados e civilizados, para viver as benesses do progresso. E desde então cerca de 90 povos desapareceram na volúpia desenvolvimentista nacional.</p> <p>Foi fazendo esse tipo de contato que mudei a política indigenista nacional. No fim de 1986, depois de anos tentando, finalmente foi aceita a filosofia de não fazer mais contatos com grupos isolados. Demarcar as terras e deixar esses povos viverem a sua vida tradicional. É a política adotada hoje pela Funai. Mas tudo isso recebe um estremecimento com a manifestação do Supremo.</p> <p><strong>Há um projeto do governo para controlar o acesso de ONGs a terras indígenas. O senhor é a favor?</strong></p> <p>Primeiro o governo precisa ter uma política clara sobre o que fazer com esses povos. Demarcar terras, levar saúde, educação. Se o Estado não pode fazer isso sozinho e precisa do auxílio de uma ONG, não há problema, desde que ela se comprometa a atuar dentro dos princípios estabelecidos. O Estado precisa controlar. O que não pode é cada ONG fazer o que bem entender dentro das terras indígenas. </p> <p>OESP, 14/12/2008, Nacional, p. A11.</p> Entrevistas Wed, 28 Jan 2009 20:45:32 +0000 leila 437 at http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa 'Sem a terra não há possibilidade de sobrevivência' http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa/?q=node/420 <div class="field field-type-text field-field-entrevistado"> <div class="field-label">Entrevistado:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Márcio Meira, presidente da Funai </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-autor"> <div class="field-label">Autor:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Felipe Recondo </div> </div> </div> <div class="field field-type-date field-field-data-artigo"> <div class="field-label">Data de publicação:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> <span class="date-display-single">12/12/2008</span> </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-fonte"> <div class="field-label">Fonte:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> OESP </div> </div> </div> <p>A decisão já tomada pela maioria do Supremo Tribunal Federal (STF) é vista pelo presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Márcio Meira, como o reconhecimento da política de demarcação contínua das terras indígenas. Ele contesta, no entanto, as críticas feita por ministros de que o órgão tem superpoderes. </p> <p><STRONG>A Funai vai rever sua política de demarcações?</strong> </p> <p>Não. A Funai continuará demarcando as terras que forem adequadas e necessárias à sobrevivência física e cultural dos índios. A Funai conseguiu fazer, nos últimos anos, as demarcações como devem ser, identificando o tamanho da terra indígena que é necessária para a sobrevivência física e cultural dos índios. É o que determina a Constituição.</p> <p><STRONG>Mas há críticas de que os índios não ocupam integralmente as áreas demarcadas.</strong></p> <p>Tem áreas realmente em que não mora ninguém. Por exemplo, o Monte Roraima (área de conservação ambiental dentro da reserva). Lá, não mora ninguém. Assim como não mora ninguém num templo religioso. É como na Catedral Notre-Dame de Paris. Não mora ninguém lá, mas nem por isso ela deixa de ser fundamental para a civilização ocidental.</p> <p><STRONG>Basta terra ampla para garantir a qualidade de vida dos índios?</strong></p> <p>Não. Não basta. Mas sem a terra não há possibilidade de sobrevivência física e cultural dos índios. A terra não é suficiente, mas é condição sine qua non para o índio ter possibilidade real de sobrevivência física e cultural. O Estado brasileiro tem de estar presente para garantir educação de qualidade diferenciada, saúde de qualidade diferenciada, uma política de meio ambiente específica. O Estado brasileiro tem de fazer isso. Mas tudo isso depende da condição básica que é a regulação fundiária dessas terras.</p> <p><STRONG>Houve críticas entre ministros do STF de que a Funai tem poder demais.</strong></p> <p>Não concordo com isso. O que a Funai faz emana da Constituição. A Funai cumpre um papel técnico. Não cabe dizer que a Funai tem superpoder. Ela apenas cumpre a legislação.</p> <p><STRONG>O sr. espera maior resistência a demarcações extensas a partir de agora?</strong> </p> <p>A Funai passa a ter mais tranqüilidade, porque alguns pontos fundamentais ficaram consagrados nos votos dos ministros. Primeiro: terra indígena é contínua. Não existe terra indígena em formato de ilhas. Outro ponto: a definição da terra indígena se dá com base no conhecimento antropológico. Não é ninguém mais além dos antropólogos. Terceiro: terra indígena em faixa de fronteira não é ameaça à soberania nacional.</p> <p><STRONG>Os brasileiros não-índios têm menos direito que os brasileiros índios?</strong> </p> <p>Todos somos brasileiros. Só há uma diferença: eles estavam aqui antes de o Estado brasileiro existir. Eles têm um direito originário, que é o direito à terra tradicionalmente ocupada. Eles não têm mais direitos, eles têm o direito originário por estarem aqui antes de nós. </p> <p>OESP, 12/12/2008, Nacional, p. A4.</p> Entrevistas Fri, 12 Dec 2008 19:11:00 +0000 leila 420 at http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa Nas mãos do Supremo http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa/?q=node/469 <div class="field field-type-text field-field-entrevistado"> <div class="field-label">Entrevistado:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Manuela Carneiro da Cunha </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-autor"> <div class="field-label">Autor:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Ivan Marsiglia </div> </div> </div> <div class="field field-type-date field-field-data-artigo"> <div class="field-label">Data de publicação:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> <span class="date-display-single">07/12/2008</span> </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-fonte"> <div class="field-label">Fonte:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> OESP </div> </div> </div> <p><I>Entrevista - Manuela Carneiro da Cunha; antropóloga, professora titular da Universidade de Chicago; decisão sobre a reserva Raposa Serra do Sol vai definir o futuro dos povos indígenas no País </i> </p> <p><STRONG>No próximo dia 10, o STF vai decidir se a demarcação da Raposa Serra do Sol deverá ser feita em faixa contínua ou não. Qual a importância dessa decisão?</strong></p> <p>A bem dizer, a demarcação, que demorou quase 30 anos, já foi concluída. E em 2005, homologada pelo Executivo, a quem cabe fazê-lo por meio de seus órgãos técnicos. Todos os passos legais foram observados - inclusive o chamado direito ao contraditório. A partir do final dos anos 70, quando começou o processo de demarcação, garimpeiros e fazendeiros invasores de boa fé saíram da Raposa. Foram em parte substituídos por arrozeiros no início dos anos 90, que não tinham como ignorar que estavam ocupando ilegalmente áreas indígenas. Só que, mais poderosos, preferiram criar uma situação de fato. Imagens de satélite mostram que, em 1992, as plantações de arroz ocupavam cerca de 2 mil hectares, passando para 15 mil em 2005, ano da homologação pelo presidente da República. Ou seja, eles expandiram a área de cultivo sabendo tratar-se de terras indígenas. E promoveram há alguns meses verdadeira insurreição na área, com bloqueios de estradas e um clima de desrespeito ao Estado de Direito.</p> <p><STRONG>A demarcação, então, deve permanecer contínua?</strong> </p> <p>É óbvio que a demarcação tem de ser contínua. Sem isso, não há como honrar o artigo 231 da Constituição Federal que define como terras indígenas não só "as por eles habitadas em caráter permanente", mas também "as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições". Não são só os índios e os antropólogos que o afirmam: o constitucionalista José Afonso da Silva deu contundente parecer nesse mesmo sentido.</p> <p><STRONG>Mas o presidente do STF, Gilmar Mendes, diz que o modelo do governo é 'muito conflitivo' e se deveria discutir 'opções viáveis' de demarcação em ilhas.</strong> </p> <p>Deve ser um equívoco. Quando Gilmar Mendes era procurador da República e defendia a União contra as pretensões de fazendeiros e do Estado do Mato Grosso no Parque Nacional do Xingu, transcreveu em apoio a sua tese a seguinte declaração: "Esta conformidade cultural das populações xinguanas impõe um modo particular de observar seus problemas: a necessidade de encará-los em seu conjunto. Fracionar a região que hoje ocupam coletivamente em territórios particulares, isolados por faixas que seriam ocupadas mais tarde por estranhos, seria destruir uma das bases do sistema adaptativo daqueles índios e condená-los ao aniquilamento". </p> <p><STRONG>Qual é o problema da demarcação em ilhas?</strong></p> <p>Como escreveram os antropólogos Alcida Ramos e Kenneth Taylor já em 1979, a demarcação em ilhas "limita a movimentação constante das aldeias e faz com que grupos saiam das áreas demarcadas; permite a entrada de ocupantes não-índios, fomentando conflitos, invasões e dificultando o controle da Funai; desestrutura as redes de relações entre aldeias, separando famílias, inviabilizando trocas matrimoniais, ameaçando a reprodução dos grupos e criando tensões relacionadas ao não-cumprimento de obrigações intercomunitárias (sistema funerário, festas, reciprocidade alimentar, etc)". Isso sem falar dos inúmeros problemas sanitários.</p> <p><STRONG>Qual será o impacto se o STF derrubar a demarcação contínua?</strong></p> <p>Vale lembrar que esta não é a primeira vez que é discutido o assunto "ilhas". Aconteceu a propósito dos ianomâmis, dos xavantes, do Alto Rio Negro, até do Alto Xingu. Os xavantes, cujas terras são "ilhadas" desde 1965, são um exemplo das conseqüências desastrosas de tal política. Basta comparar a conservação ambiental no Parque Nacional do Xingu ao cerco em que vivem os xavantes - com sua altíssima mortalidade infantil e incapazes de controlar a destruição de seus rios. Também os guaranis-caiouás do Mato Grosso do Sul, igualmente confinados, estão em uma das situações mais críticas no País, com um inédito índice de suicídios. Demarcar em ilhas tem duas conseqüências a médio prazo: a destruição de uma etnia ou a perpetuação de um conflito. </p> <p><STRONG>O processo demarcatório como um todo no País pode ser afetado?</strong></p> <p>Se o Supremo decidir agora por uma demarcação descontínua, as conseqüências podem ser gravíssimas. Estará aberta uma brecha, não importando o que diga a Constituição, para se reverem terras indígenas já demarcadas e homologadas. A abertura de brechas em legislações que reconhecem direitos indígenas é um procedimento tradicional no País, desde o século 16. Por essas brechas quase se conseguiu extinguir os índios no Brasil. </p> <p><STRONG>Terras indígenas de fronteira são ameaça à soberania nacional?</strong> </p> <p>Não. Esse é um tigre de papel, um espantalho que se agita quando faltam argumentos. As Forças Armadas podem até sinceramente acreditar nisso, mas estarão ingenuamente fazendo o jogo de interesses de outra ordem. A afirmação não resiste a nenhum exame. Terras indígenas são bens da União, inalienáveis e indisponíveis, e os índios têm apenas a posse e o usufruto delas. Por isso, o Estado pode ter sobre essas terras uma vigilância até mais ampla do que a que pode exercer sobre terras privadas. </p> <p><STRONG>Não parece ser a posição do ministro da Defesa, Nelson Jobim...</strong></p> <p>Quando foi ministro da Justiça, em 1995, Jobim se manifestou favoravelmente à declaração de uma extensa área fronteiriça como sendo de posse permanente indígena, deixando claro que terra indígena e presença do Exército não se excluem, e escreveu: "a cumulação da qualificação de determinada área como fundamental para a defesa nacional com sua caracterização como terra indígena não implica uma contradição em termos" (portaria 299 de 19/12/1995). Além disso, há uma injustiça histórica, pois foi graças às boas relações dos índios dessa área com Portugal e Brasil que Joaquim Nabuco conseguiu obter, contra as pretensões da Guiana então inglesa, parte da região. Esses índios foram usados pelos militares coloniais para assegurarem as fronteiras e, por isso, chamados de "muralhas dos sertões". O que se esconde sob a suspeita contra índios na fronteira é a noção semiconsciente de que eles seriam estrangeiros ao Brasil. </p> <p><STRONG>A demanda crescente por alimentos não fortalece o argumento de que é preciso limitar as reservas?</strong></p> <p>Depende do futuro que se deseja e da escala de valores: com o mesmo argumento, a floresta amazônica também seria supérflua. As terras e as sociedades indígenas são preciosas para o mundo por serem modelos de uso, de sociabilidade e de visões de mundo diferentes. São um reservatório de soluções, de outras formas humanas de se viver. Além disso, a alternativa não é entre terras indígenas e expansão agrícola: há na Amazônia terras já infelizmente degradadas por madeireiros, pecuaristas e agricultores cuja recuperação seria suficiente para o aumento da agricultura. É esse o caminho do presente, que preserva a justiça e o meio ambiente. E essas áreas prestam serviços extraordinários à exploração sustentável do entorno: é o que atesta o Parque Nacional do Xingu, uma ilha de floresta dentro de um oceano de soja. </p> <p><STRONG>E a idéia difundida em setores da sociedade de que os índios foram privilegiados pela Constituição de 1988 e ocupam terra demais?</strong></p> <p>A Constituição de 1988 só explicitou o que já estava dito na legislação do país desde pelo menos 1680. Todas as Constituições brasileiras desde a de 1934 reconheceram os direitos indígenas sobre suas terras. O mapa das terras indígenas reflete a história econômica do País: quanto mais antiga e poderosa a frente de expansão - agrícola, pastoril, borracheira ou outra -, menores as áreas indígenas. As terras indígenas que hoje restam são as que não foram cobiçadas até recentemente. É por isso que, da extensão total das terras indígenas, 98,5% estão na Amazônia. Mas nas zonas de ocupação mais antiga, em que vivem mais de 40% dos índios brasileiros, as terras indígenas são geralmente diminutas. A questão torna-se então: o Brasil de hoje vai continuar a expulsar os índios de suas terras, fazer passar a cobiça na frente da justiça e persistir em práticas que nos envergonham? </p> <p><STRONG>Os produtores rurais de Roraima dizem que a maioria absoluta do território está ocupada por reservas indígenas. É verdade?</strong></p> <p>As terras indígenas de Roraima ocupam 46% do Estado. Vale lembrar que os índios estavam lá quando o Estado foi criado. Além disso, a densidade da população rural de Roraima é muito inferior à da Raposa Serra do Sol: é portanto difícil sustentar que os outros roraimenses se encontrem espremidos enquanto os índios têm terra demais. Os 54% da área do Estado não-indígenas - que somam uns 120 mil km² - são mais terra, como lembra Washington Novaes, do que a do Estado de Pernambuco onde vivem 7,91 milhões de pessoas, 24 vezes mais que a população total de Roraima, de 324,3 mil.</p> <p><STRONG>Por que o Brasil ainda incorpora tão mal o índio?</strong></p> <p>No Brasil, índio bom é índio extinto. Louva-se o aporte cultural indígena e festeja-se o caboclo na Bahia, mas se é muito intolerante com os índios de carne e osso e suas sociedades. À ideologia da cristianização da época colonial sucedeu a da civilização dos índios no Império. Depois, a do progresso no Brasil republicano e a do desenvolvimento apenas medido pelo PIB hoje. Todas essas ideologias são variantes da atitude que só tolera o semelhante e desvaloriza a diferença. </p> <p><STRONG>Seu antigo mestre, o antropólogo Claude Lévi-Strauss acaba de completar 100 anos. O que diria da polêmica na Raposa Serra do Sol?</strong></p> <p>Lévi-Strauss foi um ecologista antes que o termo existisse, defensor dos direitos dos animais. E, acima de tudo, defensor do valor da diferença nas sociedades humanas. É do que se trata aqui: do patrimônio de diversidade social e natural de que o Brasil é detentor. </p> <p><STRONG>E como o País pode construir uma política indigenista à altura desse patrimônio?</strong></p> <p>Basta mudar a escala de valores. Medir o desenvolvimento não pelo PIB, mas pela qualidade de vida segundo os critérios que cada população tem, pela justiça histórica e social, pela fraternidade, pela diversidade natural e social que deixaremos para as gerações futuras. </p> <p><STRONG>O que diria se pudesse falar diretamente aos ministros do STF?</strong></p> <p>Que a decisão deles, no dia 10 de dezembro, data que coincide com os 60 anos da Declaração Universal de Direitos Humanos, será um teste para os direitos humanos no Brasil. </p> <p>OESP, 07/12/2008, Aliás, p. J3</p> Entrevistas Thu, 29 Jan 2009 22:09:44 +0000 leila 469 at http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa 'Negociar qualquer direito dos índios é inconstitucional' http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa/?q=node/294 <div class="field field-type-text field-field-entrevistado"> <div class="field-label">Entrevistado:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Ana Valéria Araújo </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-autor"> <div class="field-label">Autor:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Guilherme Scarance </div> </div> </div> <div class="field field-type-date field-field-data-artigo"> <div class="field-label">Data de publicação:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> <span class="date-display-single">26/08/2008</span> </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-fonte"> <div class="field-label">Fonte:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> OESP </div> </div> </div> <p>Defensora da demarcação contínua diz que, se STF mantiver arrozeiros em reserva, indicará ao País que avaliza invasões </p> <p>A advogada especializada em direito socioambiental Ana Valéria Araújo apóia a manutenção da demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol de forma contínua. Para a secretária-executiva do Fundo Brasil de Direitos Humanos, "os interesses contrários não vão desistir facilmente", mas ela adverte: "Negociar qualquer direito dos índios é inconstitucional."</p> <p><STRONG>A sra. é favorável ou contra a demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol de forma contínua?</strong> </p> <p>Sou favorável à manutenção como foi demarcada, contínua. É a forma necessária para garantir os direitos dos índios, como determina a Constituição.</p> <p><STRONG>A decisão do Supremo Tribunal Federal servirá de parâmetro para outras áreas indígenas no País?</strong></p> <p>Com certeza. Se decidir que a área não foi demarcada corretamente, ou que se tem de demarcar em ilhas, abre precedente bastante complexo para revisão de outras áreas em que a situação é tranqüila. Se for ratificado o entendimento de que a demarcação foi feita corretamente, reafirma a disposição do Estado de manter o reconhecimento dos direitos indígenas nos moldes da Constituição.</p> <p><STRONG>Ainda há risco de conflito?</strong></p> <p>O risco de conflito permanece, porque os interesses contrários à manutenção da demarcação da terra indígena se articularam. Os interesses contrários não vão desistir facilmente desse pedaço de terra. Os índios também estão convencidos de que têm direito e vão tentar conseguir que ele seja garantido. A gente espera que o STF não mantenha os arrozeiros, pois sinalizaria, para o País, que é possível invadir terra indígena porque o Supremo garante. Seria porta aberta para novos conflitos, não só em Roraima.</p> <p><STRONG>Muitos adversários da demarcação vêem uma questão de segurança nacional envolvida.</strong> </p> <p>Esse argumento já está superado. É trazido à tona toda vez que se quer diminuir direitos dos índios. São terras públicas, a União tem todo direito e obrigação de atuar ali. As Forças Armadas podem atuar normalmente. É uma falsa questão.</p> <p><STRONG>É possível se chegar a um acordo entre fazendeiros e índios?</strong></p> <p>Não é possível fazer acordo sobre direitos. Negociar qualquer direito dos índios é inconstitucional. Se acordo é dar um pedaço de terra para cada um, ele não existe, é ilegal, inconstitucional. </p> <p>OESP, 26/08/2008, Nacional, p. A4.</p> Entrevistas Tue, 26 Aug 2008 17:47:43 +0000 leila 294 at http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa 'Argumentos não justificam continuidade da demarcação' http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa/?q=node/295 <div class="field field-type-text field-field-entrevistado"> <div class="field-label">Entrevistado:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Salvador Raza </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-autor"> <div class="field-label">Autor:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Guilherme Scarance </div> </div> </div> <div class="field field-type-date field-field-data-artigo"> <div class="field-label">Data de publicação:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> <span class="date-display-single">26/08/2008</span> </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-fonte"> <div class="field-label">Fonte:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> OESP </div> </div> </div> <p>Na avaliação de especialista em defesa e estratégia, Supremo tem dever de garantir 'interesse do Estado'</p> <p>Para o fundador do Centro de Tecnologia, Relações Internacionais e Segurança (Cetris), Salvador Raza, não há razão técnica que justifique a demarcação contínua. "Os argumentos apresentados não justificam a continuidade da demarcação", afirma. Especialista em defesa e estratégia, coordenador do curso de mestrado em administração da Unisal, em Americana (SP), ele avalia que a área indígena representa, sim, uma questão de segurança nacional.</p> <p><strong>O sr. é favorável ou contra a demarcação contínua da reserva?</strong></p> <p>Sou contra. Não há razão técnica. Os argumentos apresentados não justificam a continuidade da demarcação. Dá para ter o atendimento às demandas de cunho antropológico, sem a necessidade de continuidade. </p> <p><strong>A decisão do STF servirá de parâmetro para outras reservas?</strong></p> <p>Sim. As decisões do STF têm capilaridade. Temos o STF tomando decisão que vai criar instabilidade política. Na realidade, faz uma transição entre a competência jurídica para uma esfera onde as decisões são eminentemente políticas.</p> <p><strong>Há risco de conflito na região?</strong></p> <p>Não. O que vai ter é um pouco de ânimo forte, mas já existe muita maturidade para se evitar grandes bobagens. Vamos ter pequenas bobagens, mas a estrutura decisória hoje tem hierarquia forte, mecanismo para se fazer cumprir.</p> <p><strong>Há questão de segurança nacional na Raposa Serra do Sol?</strong></p> <p>Com certeza há, a discussão permeia a região. Você tem uma questão de Estado, abrindo determinadas condições de interpretação sobre a sua capacidade de ter jurisdição política e, se necessário, o uso da força.</p> <p><strong>É possível se chegar a um acordo pacífico entre índios e arrozeiros?</strong></p> <p>Acredito que sim. O grande problema é que se estão construindo maus critérios. O STF e o governo tinham de ter maturidade para perceber que a decisão é maior do que o lobby ou a pressão de uma ONG, uma determinada facção ou determinada pessoa falando dos interesses do Estado na manutenção do que é mais importante - a continuidade do território.</p> <p><strong>O sr. acha que o STF tomará decisão alinhada com a sua opinião?</strong></p> <p>O STF está aí para defender o interesse do Estado e interpretar lacunas. Na minha percepção, corremos o risco de ter bobagens do ponto de vista dos resultados - e com conseqüências políticas sérias.</p> <p>OESP, 26/08/2008, Nacional, p. A4.</p> Entrevistas Tue, 26 Aug 2008 17:55:23 +0000 leila 295 at http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa 'Respeitada a Constituição, a demarcação deve ser mantida da forma como foi feita' http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa/?q=node/327 <div class="field field-type-text field-field-entrevistado"> <div class="field-label">Entrevistado:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Antônio Oneildo Ferreira, presidente da OAB-RR </div> </div> </div> <div class="field field-type-date field-field-data-artigo"> <div class="field-label">Data de publicação:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> <span class="date-display-single">25/08/2008</span> </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-fonte"> <div class="field-label">Fonte:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Folha de Boa Vista </div> </div> </div> <p>O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil em Roraima (OAB), Antônio Oneildo Ferreira, é o nosso entrevistado virtual desta semana. Ele se posiciona sobre a legalidade da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol e detalha, a pedido dos internautas, o direito dos indígenas previsto no artigo 231 da Constituição Federal.</p> <p><strong>1 – Paulo André</strong><br /> Como o senhor vê a questão, do ponto de vista legal e social, da retirada de famílias que já vivem há décadas na área Raposa Serra do Sol, já constituíram famílias, muitos casados com indígenas, pessoas que vieram para Roraima quando poucos se arriscavam, inclusive com o aval do poder público ou no mínimo com a sua omissão? E ainda o que se pode fazer do ponto de vista legal no caso de quem já recebeu esta mísera esmola que o Governo Federal chama de indenização?</p> <p><strong>Oneildo</strong> – São vários pontos. Reconhecida a área como indígena, naturalmente que todos os não-índios têm que ser indenizados e retirados da área. As pessoas que há muito tempo ocupam o local não têm os elementos jurídicos necessários para lá permanecerem. Neste caso, o tempo não é nenhum fato de legitimação dessa posse. O valor da indenização é o valor das benfeitorias que as pessoas possuem na área. Não é uma coisa genérica, os valores são específicos com base na existência de bens de cada um.</p> <p>O parágrafo 4º do artigo 231 da Constituição Federal diz que as terras indígenas são inalienáveis e indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis, significando dizer que quando se reconhece uma terra como indígena, tal fato se impõe de forma absoluta, não comportando nenhuma discussão quanto a direitos eventualmente construídos nestas áreas.</p> <p>Penso que nós, não-índios, em que pese opiniões contrárias aqui em Roraima, temos mais direitos que os indígenas, já que as terras indígenas pertencem à União não podendo os índios titularem, alienarem ou disporem destas terras, enquanto nós, não-índios, podemos titular, alienar e dispor de nossas propriedades.</p> <p>Já o parágrafo 6º do mesmo artigo, construído pelos autores da Constituição de 1988, aqui incluído todos os parlamentares de Roraima que participaram da elaboração da Constituição Cidadã, diz que são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras indígenas, não remanescendo, desta forma, qualquer fundamento jurídico para permanência de não-índios dentro de áreas indígenas. Isto não é uma invenção nossa. Foi uma opção política e jurídica dos que elaboraram nossa atual Constituição.</p> <p>No Brasil, tem um sentimento de conivência com as normas e de insatisfação com sua aplicação, ou seja, ninguém vê problema na construção das normas jurídicas, mas há grande resistência ou discussão, de forma equivocada, na aplicação destas normas contidas na Constituição. Não há o que ser discutido. A Constituição deve ser cumprida.</p> <p><strong>2 - Antonio Aparecido Giocondi</strong><br /> O que a OAB-RR irá fazer para impedir os abusos dos prepotentes que querem ganhar sempre, mesmo quando não têm direito?</p> <p><strong>Oneildo</strong> – Eu acredito que esta discussão no Supremo vai ser técnica, com base em fundamentos jurídicos constitucionais e apesar de não ignorar os políticos que têm interesses e que exploram esta questão, os fundamentos para esta decisão serão aqueles contidos na Constituição Federal.</p> <p><strong>3 - Odimar Pereira de Melo</strong><br /> Você não acha que os índios são colocados na batalha de frente pelas ONGs e por isso sofrem sanções policiais?</p> <p><strong>Oneildo</strong> – Tem manipulação sim de uma parte de indígenas, um número pequeno. Mas esta discussão de ONGs é uma coisa genérica, não vejo alguém indicar uma ONG especificamente. A única ONG que vejo atuar nesta situação é o CIR, que é composto por indígenas e voltado para indígenas de forma legítima.</p> <p><strong>4 - Jackson</strong><br /> Muita gente fala sobre a Raposa Serrado Sol, mas na verdade a grande maioria só repete a opinião aristocrática da mídia. Mas os estudiosos do direito sabem que compete exclusivamente à união demarcar e homologar terras indígenas e a menos que o STF “rasgue” mais uma vez a CF, a demarcação será mantida. Gostaria de saber a sua opinião como jurista e não a sua opinião sobre o assunto, pois a opinião pessoal do senhor deve ser a mesma da maioria.</p> <p><strong>Oneildo</strong> – A minha opinião pessoal é de que a área deve ser demarcada e mantida como está. A minha opinião como especialista em direito constitucional e presidente da OAB é que respeitada a Constituição, em todos os seus termos, a demarcação deve ser mantida da forma como foi feita.</p> <p><strong>5 - Márcio Hélio</strong><br /> O que a Comissão de Direitos Humanos faz em prol das famílias dos policiais mortos defendendo a sociedade? Presta algum tipo de assistência?</p> <p><strong>Oneildo</strong> – A Comissão de Direitos Humanos atende a casos de abusos, de violências praticadas contra a pessoa humana. A maioria dos casos registrados na Comissão é relativa a abusos cometidos pelas polícias e outras omissões do Estado quanto a direitos constitucionais. Não tem nenhum caso registrado na Comissão de Direitos Humanos de policiais assassinados. Não sei qual o sentido da indagação.</p> <p><strong>6 - Sandro</strong><br /> O senhor vem se mantendo presidente da OAB por estes anos todos somente com a intenção de ser indicado à vaga de desembargador do TJ/RR via quinto constitucional?</p> <p><strong>Oneildo</strong> – Não. A OAB mudou a legislação quanto ao quinto constitucional, no sentido de proibir a participação na lista de advogados que estejam ocupando cargos de direção dentro da entidade. Não tenho nada desenhado no sentido de ocupação do quinto.</p> <p><strong>7 - Ana Cassia</strong><br /> O que o senhor acha que vai acontecer se decidirem pela retirada dos arrozeiros? Será que vai ter conflitos?</p> <p><strong>Oneildo</strong> – Não. Acho que o Estado brasileiro cumprirá a decisão judicial. Se, eventualmente, tiver alguma violência, no que eu não acredito, esta será pontual e restrita a algum caso entre as autoridades responsáveis pelo cumprimento da decisão e um ou outro renitente a decisão judicial. Após isso, com certeza teremos paz na região, pois que não haverá mais motivos para conflitos ou choques. Poderemos até ter insatisfação, mas violência não, pois os fatores motivadores destas tensões já estarão totalmente desmobilizados e desconstituídos desta região.</p> <p><strong>8 - Wandilson Prata</strong><br /> Vejo que o abuso de autoridade está ficando bem preocupante, não só aqui no Estado de Roraima, mas também em vários estados brasileiros e não é apenas com indígenas. Qual seu ponto de vista sobre essa situação e qual seria a melhor maneira de solucioná-la?</p> <p><strong>Oneildo</strong> – Primeiro, estruturar promotorias (Ministério Público) especializadas para promover os processos envolvendo casos de abuso de autoridade nas áreas cível, criminal e administrativa, com o afastamento de todos aqueles que cometem abusos de autoridade. Penso que somente com um tratamento mais rigoroso de responsabilização destes agentes que extrapolam suas atribuições, com atos abusivos, inibiriam esses excessos.</p> <p><strong>9 - Frankeslane Sampaio Barbosa</strong><br /> Qual a viabilidade de implantação de um núcleo de direitos humanos dentro da estrutura da Academia de Polícia Integrada de Roraima ou mesmo dentro da Polícia Militar de Roraima para acompanhar a formação e a posterior atuação dos policiais militares? 2 - O senhor é a favor da desmilitarização das polícias? Por quê?</p> <p><strong>Oneildo</strong> – Não vejo a desmilitarização como um fator que vá resolver alguma coisa para a sociedade, porque tanto a Polícia Militar como a Civil, que é desmilitarizada, cometem os mesmos tipos de abusos, sem nenhuma diferença. Acredito que o núcleo de direitos humanos seria muito importante na formação e reciclagem da polícia. Com formação interna intensa e um rigoroso controle pelo Ministério Público relativo aos abusos com certeza a violência policial seria diminuída drasticamente.</p> <p><strong>10 - Claudiocesar de Oliveira</strong><br /> O que a OAB pode fazer para acabar com a impunidade da Funai, pois a Funai chega e intimida as pessoas e incita os índios para as invasões. Já passei por isso na área São Marcos.</p> <p><strong>Oneildo</strong> – Não temos nenhum caso registrado de abuso jurídico da Funai. Às vezes o que as pessoas vêem como abuso não passa de discordância da forma como são encaminhadas as questões em áreas indígenas, que possuem uma legislação específica e radicalmente diferenciada da legislação aplicável aos não-índios.</p> <p><strong>11- Rosimar Bonates</strong><br /> Qual o incentivo que a OAB tem para os acadêmicos de Direito?<br /> A OAB tem projetos de incentivos na Universidade e Faculdade de Direito? Na semana do advogado a OAB não lembra dos acadêmicos, por que?</p> <p><strong>Oneildo</strong> – O foco principal da OAB é a advocacia já que ela é uma autarquia federal focada em atribuições corporativas e institucionais vinculadas ao exercício dessa profissão. Estamos colaborando com as faculdades de Direito através de convênios, oportunizando estágios e outros espaços para os estudantes, não sendo possível um maior direcionamento neste sentido. Mas todas as atividades da OAB são abertas e acessíveis aos estudantes.</p> <p><strong>12 - Flávia Alessandra</strong><br /> O acusado Luciano Queiroz será expulso do quadro da OAB se vier a ser condenado pelo Juízo da 2ª Vara Criminal pelos crimes de pedofilia em que é acusado?</p> <p><strong>Oneildo</strong> – Não tenho como falar de um resultado de processo ético disciplinar instaurado dentro da entidade. Caberá ao Tribunal de Ética e Disciplina e ao Conselho Seccional decidirem esta questão. Com certeza será aplicado o Estatuto da Advocacia e da OAB, conforme o Código de Ética e Disciplina, de forma rigorosa num caso como este.</p> <p><strong>13 - Fernando</strong><br /> As lideranças que apóiam a demarcação disseram que não aceitavam pessoas de outros estados se meterem em assuntos de Roraima pelo fato de arrozeiros terem feito a Marcha até Pacaraima. No entanto, pessoas de outros países vêm e dão sua opinião e apoio sobre a demarcação. Qual sua opinião a respeito disso?</p> <p><strong>Oneildo</strong> – Todos têm direito a opinião. Quanto aos organismos internacionais (ONU, OEA) tão criticados e incompreendidos em Roraima, eles têm se manifestado dentro de um quadro estritamente especificado em seus estatutos e convenções internacionais aos quais o Brasil é vinculado. Esta questão dos organismos internacionais é uma crítica que não tem fundamento, pois dizer que a ONU e a OEA não têm nada a ver com questões de direitos humanos no Brasil é a mesma coisa que alguém se filiar a um clube, se subordinando a determinadas regras e na hora da cobrança dizer que não admite ingerência externa. Quem não desejar ingerência da ONU e da OEA de forma estatutária é só se desincompatibilizar destas entidades e denunciar através do Senado as convenções e acordos internacionais relativos a esta matéria. Quanto a questão dos direitos humanos, aí incluídos, necessariamente, os direitos de minorias dentre eles os indígenas, independentemente do país ser filiado ou não têm documentos internacionais que autorizam estas instituições a tratarem sobre este tema.</p> <p><strong>14 - Eduardo Ferreira Barbosa</strong><br /> É legal tirar os moradores de Pacaraima de suas casas, onde moram há muitos anos, como se tivessem invadido tal localidade? Não fere o princípio da propriedade e o direito adquirido, assegurados na nossa Carta Magna?</p> <p><strong>Oneildo</strong> – Não. Lá é uma terra indígena. Não havendo o que se falar em propriedade, mas em simples posse. As terras indígenas pertencem à União, que não comporta usucapião, ou seja, aquisição da propriedade ou de direitos através do tempo de uso.</p> <p>Folha de Boa Vista, 25/08/2008, Especiais, Entrevista Virtual - Antônio Oneildo Ferreira.</p> Entrevistas Tue, 02 Sep 2008 16:15:20 +0000 leila 327 at http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa 'Não vim aqui propor a divisão do Brasil' http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa/?q=node/287 <div class="field field-type-text field-field-entrevistado"> <div class="field-label">Entrevistado:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> James Anaya </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-autor"> <div class="field-label">Autor:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Vannildo Mendes </div> </div> </div> <div class="field field-type-date field-field-data-artigo"> <div class="field-label">Data de publicação:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> <span class="date-display-single">24/08/2008</span> </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-fonte"> <div class="field-label">Fonte:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> OESP </div> </div> </div> <p>Desde que chegou, no dia 14, o americano James Anaya está causando alvoroço no País - pois sua visita ocorre às vésperas da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o futuro da reserva Raposa Serra do Sol, localizada em Roraima. Anaya não é um americano comum. De etnia apache - imortalizada nos filmes de faroeste por escalpelar colonizadores abatidos em combate -, ele escolheu o Brasil como sua primeira missão no cargo de relator especial da ONU para Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais dos Povos Indígenas, para o qual foi eleito em maio.</p> <p>Nacionalistas e setores militares estão de orelha em pé. Temem que sua presença acabe influenciando a decisão do STF e abra espaço, no futuro, para ataques à soberania nacional, com mutilação de territórios em favor de povos indígenas alçados à condição de nações independentes. "Não há o que temer, não vim aqui propor a divisão do Brasil", afirma Anaya, nesta entrevista ao Estado.</p> <p><STRONG>Como o senhor vê o temor de setores militares e nacionalistas de que sua visita traga riscos à soberania?</strong></p> <p>Não há nada a temer. Não vim aqui propor a divisão do Brasil em 200 nações independentes, uma para cada etnia indígena. Falo por mim, mas não creio que a ONU ou quem quer que tenha bom senso proponha tal coisa. O Brasil se destaca no cenário externo exatamente por ter tido méritos em promover a cooperação com outras nações, apoiando as iniciativas da ONU, no enfrentamento dos problemas indígenas, no atendimento de suas demandas e no alcance de melhores condições de vida para todos. Se todos assumirmos uma atitude de boa-fé, espero que eles (os críticos da sua missão) vejam boa-fé nas minhas intenções.</p> <p><STRONG>Como outras nações enfrentaram essa suposta ameaça à soberania?</strong></p> <p>Nos EUA e em outros países, houve o mesmo temor de separatismo e divisão territorial, hoje superado. Houve conflitos e enfrentamentos, mas não há um só caso conhecido no mundo de destruição de um Estado por demandas indígenas. Houve, ao contrário, fortalecimento e consolidação de Estados que encontraram soluções para a questão indígena, baseadas na justiça e no respeito à diversidade. Não há o menor fundamento lógico no temor de desintegração ou mutilação do Estado brasileiro. </p> <p><STRONG>Onde está, então, o motivo da celeuma?</strong> </p> <p>Há muito motivo, sim, para reflexão frente à realidade dramática da maioria das comunidades indígenas, a tantas injustiças e tanta pobreza. Nenhum país cumpriu por completo o desafio de superação desses problemas. Por isso a ONU criou essa relatoria desde 2001. A autodeterminação do povo indígena não atenta contra o Estado. Mas falamos aqui da integridade do Estado que inclua na sua política nacional o respeito às culturas em todos os seus aspectos de diversidade e seus direitos basilares.</p> <p><STRONG>O excesso de autonomia indígena não pode criar castas fora da lei?</strong></p> <p>Autonomia não é carta branca para índio violar direitos humanos, cometer crime e ficar impune. Respeitar costumes, tradições e autodeterminação dos povos não significa compactuar com tortura, escravidão ou maus tratos. É preciso um pacto universal de direitos humanos que valha para todos, inclusive indígenas.</p> <p><STRONG>O que mais o incomoda na luta pelos direitos indígenas?</strong> </p> <p>A falta de voz dos índios. Há pessoas bem-intencionadas debruçadas sobre a questão, mas não se encontrou até agora a fórmula adequada de exercício da cidadania e de poder político pelas comunidades indígenas.</p> <p><STRONG>Por que o Brasil foi escolhido como primeira missão internacional no cargo?</strong></p> <p>Acho que o Brasil tem um papel central na luta global pela fundação de uma sociedade mais tolerante e respeitosa com a causa indígena, com a diversidade cultural e étnica. Dos anos 70 para cá, as lutas resultaram em leis avançadas, como a da demarcação das terras indígenas. É um modelo que a ONU pode difundir em outros cantos do mundo. A Constituição de 1988 foi um marco para os povos indígenas do mundo. O Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer os direitos indígenas no plano legal.</p> <p><STRONG>Que diferenças há entre a política indígena do Brasil e a dos EUA?</strong></p> <p>Historicamente, os Estados Unidos formaram uma sociedade excludente, a partir da idéia de um modelo de Estado homogêneo, com discriminação de minorias, como negros, hispânicos e índios. Esse modelo significava não-assimilação e mais discriminação. Os dois países têm histórias paralelas, mas felizmente o Brasil buscou outro caminho e é hoje um país mais avançado em termos de Constituição e de leis de proteção aos indígenas.</p> <p><STRONG>Pelo visto, seu relatório será otimista?</strong></p> <p>Será realista, mas eu sou um otimista e vejo a vida por conceitos dialéticos segundo os quais a humanidade evolui e supera seus problemas a cada etapa. Foi o que aconteceu com a causa das mulheres na virada do século 19 para o 20. Acho que no Brasil se constrói um modelo de Estado multicultural. Essa é uma tendência de sociedade moderna do futuro que desejo, dentro do processo de evolução cultural da humanidade.</p> <p><STRONG>E o julgamento do STF sobre a Raposa Serra do Sol?</strong> </p> <p>Não vou me manifestar sobre esse tema porque seria desrespeitoso com o STF e eu estaria fugindo ao objetivo do meu mandato. A Raposa é uma questão que faz parte de um processo judicial interno em andamento e eu não posso opinar no momento. Confio em que o STF tomará uma decisão com base na Constituição do Brasil, que tem algumas das leis indígenas mais avançadas do mundo, sem nenhuma influência de forças externas no processo judicial, partam de onde partirem.</p> <p><STRONG>Mas sua vinda nessa data foi só coincidência?</strong> </p> <p>Não vim aqui influenciar a decisão do STF. De fato fui acionado para vir nessa data por um grupo de representantes de povos indígenas do Brasil. Encaminhei o assunto pelos canais diplomáticos, mas não impus nenhuma condição. O governo brasileiro concordou, enfim, com a agenda e me fez o convite para vir nesta data. </p> <p>Quem é: James Anaya </p> <p>É advogado e professor de Políticas e Legislação de Direitos Humanos da Universidade de Arizona.<br /> Assumiu o cargo de relator especial da ONU para Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais dos Povos Indígenas em 1º de maio deste ano.<br /> Natural do Arizona (EUA), tem 49 anos e é filho de indígenas da etnia apache. </p> <p>OESP, 24/08/2008, Nacional, p. A12.</p> Entrevistas Tue, 26 Aug 2008 17:25:09 +0000 leila 287 at http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa Índios e capitalismo de faroeste http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa/?q=node/233 <div class="field field-type-text field-field-entrevistado"> <div class="field-label">Entrevistado:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Rubens Ricupero </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-autor"> <div class="field-label">Autor:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Anselmo Massad e Renato Rovai </div> </div> </div> <div class="field field-type-date field-field-data-artigo"> <div class="field-label">Data de publicação:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> <span class="date-display-single">01/06/2008</span> </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-fonte"> <div class="field-label">Fonte:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Revista Fórum </div> </div> </div> <p>Rubens Ricupero defende a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol e assegura que os indígenas nunca foram entrave para garantir a segurança das fronteiras.</p> <p>Entrevista: Rubens Ricupero</p> <p>No dia 22 de maio,, no programa Linha de Frente, da rádio jovem Pan de São Paulo, do qual Rubens Ricupero participa semanalmente, colocou-se o tema da demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima. Inquirido sobre o risco às fronteiras brasileiras, o embaixador desafiou a se apontar qualquer caso de dificuldade imposta por indígenas à segurança das fronteiras. O discurso inesperado foi o mote da entrevista que se segue.</p> <p>O currículo relacionado às fronteiras e à região amazônica foi o que o levou, durante o governo de Itamar Franco, a acumular os ministérios do Meio Ambiente e da Amazônia. Ricupero seria ainda ministro da Fazenda de março a setembro de 1994, período de implantação do real como moeda. Sua queda deveu-se a um episódio da transmissão acidental, captada por assinantes com antenas parabólicas, dos bastidores de uma entrevista ao jornalista Carlos Monforte. Atualmente, Ricupero dirige a Faculdade de Economia da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) e é presidente do Conselho do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial.</p> <p>Ricupero desqualifica o discurso dos que "se embrulham" na bandeira e critica o modelo do agronegócio, qualificado como "capitalismo de faroeste". A demarcação de Raposa Serra do Sol foi anunciada em 1998, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, e homologada em 2005, no primeiro mandato do presidente Lula. São 1,8 milhão de hectares para ingaricós, macuxis, patamonas, taurepangues e wapixanas, parte deles ocupados por arrozeiros desde os anos 1980. Confira a entrevista a seguir.</p> <p><b>Fórum - Como o senhor vê o questionamento a respeito das dificuldades que uma reserva como Raposa Serra do Sol representa para a demarcação de fronteiras?</b></p> <p>Rubens Ricupero - O fundamental é que os povos indígenas nunca representaram nenhum tipo de problema para as fronteiras, foram colaboradoras valiosíssimas das comissões demarcadoras. No trabalho das comissões demarcadoras, os índios foram indispensáveis, porque conheciam o terreno, serviam de canoeiros e de guias. Conheço bem o tema e desafio qualquer pessoa a citar um caso concreto em que não pudemos delimitar um metro de divisas porque havia uma reserva indígena. É bom explicar que elas dependem basicamente do Itamaraty, sempre o encarregado de negociar e de posicionar no terreno os postes que sinalizam a separação dos países. Para isso, no meu tempo, havia a Divisão de Fronteiras do Itamaraty, da qual o grande chefe foi Guimarães Rosa durante muitíssimo tempo [de 1962 a 1967]. Fui sucessor dele muito tempo depois [de 1977 a 1980] como chefe interino desta e da Divisão da América Meridional II ao qual ela estava subordinada.<br /> Em toda minha vida, sempre trabalhei com isso, junto de duas comissões demarcadoras de limites, porque temos dez vizinhos.<br /> Não há relação direta com o tamanho do território, porque o Canadá só faz divisa com os Estados Unidos, e a Austrália com nenhum, porque é unia ilha. Só Rússia, China e Índia têm um número grande de vizinhos, e é uma constante para esses países passar a história em guerra. O Brasil é um caso único. Em 2008, comemoramos 138 anos de paz ininterrupta com todos os países limítrofes. A última guerra no sentido nacional é a da Tríplice Aliança contra o Paraguai, que termina no dia 1º de março de 1870, com a morte do Francisco Solano Lopez. Conheço bem a data porque é o dia de meu aniversário (risos).<br /> Na questão do Acre, em [17 de novembro de] 1903, houve momentos de tensão, mas nunca choque armado nem invasão. Na exposição de motivos do Tratado de Petrópolis, o Barão do Rio Branco diz: "O Brasil nunca contemplou as portas de uma guerra de conquista, porque isso se afastaria inteiramente de nossa tradição". Hoje se diz que o tratado foi contra a Bolívia, mas na época a oposição no Brasil acreditava ter havido muitas concessões. Rui Barbosa era um dos [ministros] plenipotenciários e se demitiu, porque achava que tinha havido muitas concessões. O Barão dizia: "foi transigindo com os vizinhos que o Brasil sempre evitou conflitos". Era um negociador antes de mais nada.</p> <p><b>Fórum - O senhor consegue identificar as motivações dos militares que manifestaram preocupação no caso de Raposa Serra do Sol?</b></p> <p>Ricupero - Acredito que há uma mescla de motivações. Um primeiro problema é que muitos deles conservaram até hoje a visão de desenvolvimento a qualquer custo que era dos governos militares. A ingenuidade de que vai trazer desenvolvimento.<br /> Só se for para o governador do Mato Grosso. Não conseguem pensar em desenvolvimento sustentável que é atender às necessidades atuais sem comprometer as futuras gerações. Ou não se preocupam ou minimizam o perigo de comprometer as gerações futuras. A formação cultural e científica é desatualizada.<br /> Eu era o representante do Itamaraty no Conselho da Sudam [Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia, atual Agência de Desenvolvimento da Amazônia] quando fui chefe da Divisão da América Meridional II, nos anos 70. Eu já era crítico dessa visão. O lema do governo militar era "É a pata do boi que vai conquistar a Amazônia". Infelizmente, até hoje, os financiamentos do Banco da Amazônia, assim como do Bndes, são para frigoríficos e empreendimentos pecuários que estão na origem do desmatamento. São pouquíssimos para atividades sustentáveis.<br /> É preciso entender, agora que a Marina Silva saiu [do Ministério do Meio Ambiente], que os governos há 30 anos ininterruptos criaram um sistema frondoso de subsídios diretos e indiretos sem os quais praticamente nenhuma atividade econômica seria rentável na Amazônia. Excetuada a extração de ouro e de diamantes, nada se manteria sem as taxas de juros subsidiadas no crédito do Banco do Brasil, que ainda assim não é pago, por meio de anistias e renegociações.<br /> A destruição serve para se apoderar da terra. É uma distorção enorme no Brasil, o sistema é perverso e estimula a destruição.<br /> No processo junto ao Judiciário, a floresta não prova nada, mas se destruir, sim. Não serve como garantia para um crédito no Banco do Brasil, mas uma "benfeitoria" - pôr fogo nela -, aí serve.<br /> Não é verdade que os governos não podem evitar a destruição da Amazônia, é que não querem. Ou, para ser mais claro, quereriam. Para terminar com os subsídios haveria enormes reações das bancadas, a inércia leva à manutenção desse sistema.<br /> Quando houve o anúncio de que o desmatamento havia aumentado [em 18 de outubro de 2007], o presidente Lula convocou o gabinete de ministros, mas, poucos dias depois, a ministra Marina estava em Mato Grosso e o presidente tirou-lhe o tapete debaixo dos pés. Ele havia conversado com o governador [Blairo Maggi] e disse que era muito alarde. O presidente atira para todos os lados, como uma metralhadora giratória, ao mesmo tempo diz uma coisa e seu contrário. Em um intervalo de oito dias não é possível que esteja certo nas duas, nada aconteceu que tenha alterado a situação. Infelizmente, a nossa imprensa não é capaz de acompanhar a realização das medidas anunciadas.</p> <p><b>Fórum - Há outras pessoas, como o deputado Aldo Rebelo (PCdoB), com uma posição...</b></p> <p>Ricupero - Ele tem a idéia do culto dos heróis, do Floriano Peixoto. Vou dizer uma coisa, altamente provocativa. Há os genuinamente patriotas, como Aldo Rebelo e o general [Augusto] Heleno, homens de uma extraordinária boa fé, que acreditam mesmo na crítica que fazem. E há outros ao qual se aplica a frase do doutor [Samuel] Johnson, o grande dicionarista do século XVIII, que dizia que "o patriotismo é o último refúgio dos canalhas".<br /> Embrulham-se na bandeira e enganam os que são de boa fé. Na verdade, são uma coisa que existe no Brasil há séculos, grileiros. E isso ocorreu inclusive na região do Pontal do Paranapanema, e em todo o Oeste do Paraná, especialmente na época do governador Moysés Lupion [1947 a 1951, pelo PSD]. A história das terras no Brasil tem duas grandes vertentes. Uma são as concessões, iniciadas pela coroa portuguesa, com as sesmarias, que continuaram no Império com a Lei de Terras [de 1850]. Com a Lei de Terras, boa parte dos domínios da União passou a particulares. O que não foi por doação, foi pelo grilo, por ocupações para se apoderar de extensões de terra do tamanho da Bélgica sem ter título. Sempre houve a idéia de usucapião, de se estabelecer na terra. As fronteiras brasileiras avançaram em terras que eram de nós todos.</p> <p><b>Fórum - Em entrevista à rádio Jovem Pan o senhor se referiu a fazendeiros em Roraima nessa condição. Quem seriam?</b></p> <p>Ricupero - Não me referi a Roraima, mas de modo geral. Em 1993, quando era ministro do Meio Ambiente e da Amazônia, fui convocado pela bancada do Mato Grosso no Congresso. E me fizeram esta provocação: "O senhor não acha que é muita terra para pouco índio?". Respondi que achava interessante terem introduzido um conceito que se deveria adotar no Brasil, um limite quantitativo de terras por pessoa. "Os senhores aceitariam isso em caráter pessoal nas suas próprias propriedades?" Eles justificam dizendo que estão promovendo desenvolvimento. Para o PIB brasileiro, é pífio. Segundo o Carlos Nobre [pesquisador do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos], as atividades agrícolas na Amazônia respondem por menos de 1 % do PIB brasileiro. No entanto, 75% da responsabilidade brasileira em emissão de dióxido de carbono brasileiro vêm de queimadas na Amazônia e no cerrado brasileiro, aliás, sempre esquecido apesar da destruição enorme. Aquela área que poderia ter um valor enorme, especialmente se conseguirmos transformar em créditos de carbono a floresta em pé, torna-se literalmente fumaça.</p> <p><b>Fórum - Como o senhor avalia a presença de ONGs estrangeiras na Amazônia colocada como ameaça à soberania nacional?</b></p> <p>Ricupero - Não conheço ONG estrangeira que tenha posto fogo em um metro quadrado ou se apoderado, com documentos falsos, de um metro quadrado de terras da União, feito pecuária, matado índios, invadido reservas para extrair mogno ou ouro.<br /> E há um dossiê fartíssimo, se poderia fazer um livro negro da Amazônia com crimes cometidos nos últimos 30 ou 40 anos por muitos brasileiros "civilizados". De mil casos, se houver um em que o indivíduo foi preso, é muito. Se o Exército e o governo querem impedir as atividades ilícitas, porque não reprimem estas? Há uma xenofobia absurda nesse caso. E se fosse verdade que estrangeiro é tão ruim, por que o Banco Central eliminou as taxas para entrada de capitais especulativos?</p> <p><b>Fórum- E grupos estrangeiros que captam recursos para comprar áreas na Amazônia prometendo transformá-las em reservas?</b></p> <p>Ricupero - Existem algumas grandes ONGs ambientalistas que fazem isso não só no Brasil. Tomam doações para compra de terras que se transformam em reservas naturais. Todos concordam que precisamos aumentar áreas de proteção. Que mal existe, na Amazônia, na Serra da Bocaina [RJ] ou em Alagoas, que um estrangeiro esteja disposto, e nós não, a imobilizar seu capital para que aquela mata não seja destruída? Se não está cometendo ilegalidades, nem extraindo biodiversidade, não há mal. Do contrário, tem de se aplicar a lei.<br /> O problema dos direitos humanos hoje, assim como o da destruição da Amazônia, é muito parecido com o tráfico de escravos e a escravidão. No século XIX, a potência dominante, Inglaterra, queria pôr fim ao tráfico. Por pressão, o Brasil assinou vários tratados, mas não cumpriu. A começar pelo imperador, não se defendia o tráfico nem a escravidão, mas se dizia que o país não estava pronto, que não tinha recursos. De vez em quando se fazia uma apreensão de africanos, como se dizia à época, que tinham se desembarcado. A expressão "para inglês ver", vem dessa época. Pela lei, como esses homens tinham sido reduzidos à escravidão ilegalmente, éramos obrigados a restituí-los à África ou dar liberdade aqui, mas eram distribuídos como favor, inclusive para jornalistas. Era uma forma de "mensalão".<br /> Os ingleses sabiam dessas coisas, tanto que o Lorde Aberdeen fez passar no Parlamento [em 1845] o Aberdeen Act, que dava à marinha inglesa o direito de apreender navios em águas interiores do Brasil - nas internacionais, antes disso, foram apreendidas centenas para serem adjudicadas na corre de Serra Leoa, na costa da África. Houve um episódio célebre em que puseram a pique um iate em Paquetá, em plena baía da Guanabara. O negócio ficou tão intolerável, que o governo votou a Lei Eusébio de Queirós, em 1850. Em dois ou três anos, acabou o tráfico.</p> <p>Historiadores brasileiros e esse pessoal patriota se incomodam. A mim também. Mas como está em jogo um valor supremo, prefiro que tenha sido desta forma. Em "O Navio Negreiro", de Castro Alves, um dos poemas mais fantásticos que temos, ele diz:<br /> "Auriverde pendão de minha terra, Que a brisa do Brasil beija e balança, Estandarte que a luz do sol encerra, E as promessas divinas da esperança..." O poeta vê a bandeira em -um navio negreiro e prossegue: "Antes te houvessem roto na batalha, Que servires a um povo de mortalha!". A bandeira não pode dar proteção a quem mercadeja carne humana. Seria preferível ser derrotado por estrangeiros do que dar cobertura a isto.<br /> Aplique, hoje em dia, a ONGs e a pressões estrangeiras. O maior interesse em preservar a floresta e proteger os índios é nosso. Digo sinceramente: se não formos capazes e continuarmos assim, acho bom que haja pressão internacional. Sou favorável a que se apliquem sanções à soja ou à madeira ou à carne comprovadamente procedentes de áreas desmatadas contra a lei brasileira.</p> <p><b>Fórum - A demarcação de terras indígenas poderia até impedir o avanço dessas compras de terras, porque a propriedade é da União.</b></p> <p>Ricupero - Aí está um ponto central que convém destacar. Um índio não tem a propriedade da terra. Pela Constituição brasileira, não pode vender, alienar nem nada, a não ser ele mesmo usufruir. Os arrozeiros querem a propriedade, querem esbulhar o povo brasileiro, porque vão especular, vender, alugar. A diferença fundamental é que qualquer atividade dentro de uma reserva tem de ser aprovada, o governo não permite de outra forma.</p> <p><b>Fórum - O que pode acontecer se o processo no Supremo Tribunal Federal frear a retirada dos arrozeiros?</b></p> <p>Ricupero - O perigo é muito grande. Uma coisa seria alguém com uma propriedade comprada legalmente e melhorada com seu próprio esforço que, de repente, se quereria tirar. Seria unia violência. Outra coisa é o caso desse pessoal, porque na origem dessa "propriedade" existe uma ilegalidade. Quase que invariavelmente houve grilagem. Não se pode dizer que é o sacrossanto princípio da propriedade privada, mas na maior parte desses casos se aplica a frase de [Pierre-Joseph] Proudhon de que "a propriedade é um roubo". Ou foi comprada de alguém que fez uni ato ilegal. De um lado, os que estavam aqui muito antes de os europeus chegarem, que foram massacrados. Hoje, 1 milhão de quilômetros são reservas indígenas, mas e os 7,5 milhões de quem eram? Compramos?</p> <p><b>Fórum - O que está por trás dos arrozeiros?</b></p> <p>Ricupero - É o que um amigo chama de "modelo gaúcho de agricultura", onde há terras, os colonos vão ocupando, devastando. Em algumas regiões não tem tanto problema, porque compraram a terra. Em outras não. O que existem são grupos de grandes agricultores de capital intensivo, o agronegócio. Mas não é isso que vai resolver a fome do mundo. Gostaria, até por curiosidade, que se fizesse uma audiência pública imparcial para examinar os títulos de terras dos arrozeiros para investigar a presença deles ali [em Roraima]. Pode ser que não tenha sido o atual dono, que já comprou de outro, mas há 25 ou 30 anos, em Um ponto, há uma ilegalidade.</p> <p><b>Fórum - Eles são criminosos?</b></p> <p>Ricupero - Não acredito que devam ser consideradas como bandidos. São empresários de um tipo que o sistema do capitalismo selvagem brasileiro permite. Estão atuando no que consideram ser as regras do jogo, porque aqui o capitalismo é de faroeste. </p> <p><b>Frase</b><br /> Um índio não tem a propriedade da terra. Pela Constituição brasileira, não pode vender, alienar nem nada, a não ser ele mesmo usufruir. Os arrozeiros querem a propriedade, querem esbulhar o povo brasileiro, porque vão especular, vender, alugar</p> <p>Revista Fórum, jun. 2008, Pingue-Pongue, p. 8-11</p> Entrevistas Tue, 01 Jul 2008 19:57:11 +0000 ines 233 at http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa 'Não podemos infligir uma segunda derrota a eles' http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa/?q=node/232 <div class="field field-type-text field-field-entrevistado"> <div class="field-label">Entrevistado:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Eduardo Viveiros de Castro </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-autor"> <div class="field-label">Autor:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> Flávio Pinheiro e Laura Greenhalgh </div> </div> </div> <div class="field field-type-date field-field-data-artigo"> <div class="field-label">Data de publicação:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> <span class="date-display-single">20/04/2008</span> </div> </div> </div> <div class="field field-type-text field-field-fonte"> <div class="field-label">Fonte:&nbsp;</div> <div class="field-items"> <div class="field-item odd"> OESP </div> </div> </div> <p><i>Para Viveiros de Castro, professor do Museu Nacional da UFRJ, os conflitos na reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, são a prova do insuperável estranhamento que ainda temos em relação aos índios</i></p> <p>Eduardo Viveiros de Castro, professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é considerado "o" antropólogo da atualidade. Dele diz Claude Lévi-Strauss, seu colega e mentor, seguramente um dos maiores pensadores do século 20: "Viveiros de Castro é o fundador de uma nova escola na antropologia. Com ele me sinto em completa harmonia intelectual". Quem há de questionar o mestre frânces que, nos anos 50, sacudiu os pilares das ciências sociais com a publicação de Tristes Trópicos, relato de experiências com os índios brasileiros nos anos 30?</p> <p>Pois muitos questionam Viveiros de Castro. E muitos o criticarão por esta entrevista ao caderno Aliás. Numa semana em que os conflitos entre índios e rizicultores (informalmente tratados de "arrozeiros"), lá na distante reserva Raposa Serra do Sol (Roraima), ganharam estridência e manchetes de jornais, o professor sai em defesa dos macuxis, wapixanas e outros grupos indígenas que habitam uma faixa de terra contínua de 1,7 milhão de hectares, palco de discórdias que sintetizam 500 anos de Brasil. A estridência ficou por conta de uma palestra do general Augusto Heleno, comandante militar da Amazônia, feita no Clube Militar do Rio de Janeiro. O general foi contundente: disse que a política indigenista é lamentável e caótica, ganhando imediata adesão de seus pares. Augusto Heleno, que chefiou a missão brasileira no Haiti, também bateu pesado ao reagir contra a decisão da Justiça que determina a saída dos não-índios da reserva: "Como um brasileiro está impedido de entrar numa terra porque ela é indígena? Isso não entra na minha cabeça."</p> <p>Também não entra na cabeça de Viveiros de Castro que os indígenas possam ser vistos como ameaça à soberania nacional. Ao contrário, entende que eles contribuem com a soberania. Atribui tanta polêmica ao alto grau de desinformação em torno das reservas existentes no País e, em particular, da Raposa Serra do Sol. "As terras não são dos índios, mas da União. Eles têm o usufruto, o que é bem diferente. Já os arrozeiros querem a propriedade." O entrevistado contesta números, analisa o modelo de colonização da Amazônia e tenta desfazer discursos que, na sua opinião, são alarmistas. Mas é condescendente com o general: "Ele está sendo usado neste conflito. É claro que o Exército tem de atuar lá, defendendo nossas fronteiras. Mas o que está em jogo são os interesses em torno de uma questão fundiária".</p> <p>Ex-professor da École de Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris, da Universidade de Chicago e da Universidade de Cambridge, Viveiros de Castro é autor de vários livros, entre eles, Arawete, os Deuses Canibais (Zahar), que resulta de pesquisa de campo com índios do Pará, e A Inconstância da Alma Selvagem (Cosac &amp; Naify), uma coletânea de ensaios que revela sua principal contribuição para a antropologia. Trata-se do "perspectivismo amazônico", a proposição teórica que guia todas as suas formulações.</p> <p><b>Existe risco para a soberania nacional na reserva Raposa Serra do Sol, como crê o general?</b></p> <p>Existe, sim, uma questão de soberania do governo ao ser contestado publicamente por um membro das Forças Armadas. O general polemiza com uma decisão que, como todo mundo diz, não se discute, apenas se executa. A argumentação de que a reserva indígena represente um problema de soberania está mal colocada.</p> <p><b>Por quê?</b></p> <p>Há outras reservas em terras contínuas, em fronteiras. É o caso da Cabeça de Cachorro, no município de São Gabriel da Cachoeira, no Estado do Amazonas. E o Exército está lá, como deveria estar. A área indígena não teria como impedir a presença dos militares. O que a área indígena não permite é a exploração das terras por produtores não-índios. Dizer que o Exército não pode atuar é um sofisma alimentado por políticos e fazendeiros que agem de comum acordo, numa coalizão de interesses típica da região. Roraima é um Estado que não se mantém sozinho, ou melhor, que depende do repasse de recursos federais. Um lugar onde 90% dos políticos nem sequer são nativos. Onde o maior arrozeiro, que está à frente do movimento contra a reserva, arvora-se em defensor da região, mas veio de fora. É um gaúcho que desembarcou por lá em 1978, e não há nada de mal nisso, mas combate os índios que justamente servem de "muralha dos sertões", desde os tempos da colônia. Os índios foram decisivos para que o Brasil ganhasse essa área, numa disputa que houve no passado com a Guiana, portanto, com a Inglaterra. Dizer que viraram ameaça significa, no mínimo, cometer uma injustiça histórica. Até o mito do Macunaíma, que foi recolhido por um alemão, Koch-Grünberg, e transformado por um paulista, Mário de Andrade, foi contado por índios daquela área, os macuxis, os wapixanas. Eles são co-autores da ideologia nacional.</p> <p><b>As manifestações do general remetem ao discurso dos militares nos anos 70, que dava ênfase à idéia de tirar os índios da tutela do Estado?</b></p> <p>Não sei. O general diz: "Sou totalmente a favor dos índios". Imagine então o contrário, um índio indo para a televisão dizer que é totalmente a favor dos generais. Esquisito, não? Vamos pensar: o general não quer matar os índios. Quer que virem brancos? E quem é branco no Brasil? Na Amazônia todo mundo é índio. Inclusive boa parte das Forças Armadas na região é composta por gente que fala o português, mas se identifica como índio.</p> <p><b>Esse conflito na Raposa tem por volta de 30 anos. Em 2005, quando o presidente Lula homologou as terras, selou-se o compromisso de retirar, no prazo de um ano, os produtores rurais que estavam dentro da área reservada. Parecia que todo mundo ficara de acordo. Por que a situação se deteriorou?</b></p> <p>Há o jogo político. Disseminam-se inverdades, como a de que a área da reserva ocupa 46% de Roraima, quando apenas ocupa 7%. As terras indígenas de Roraima, somadas, dão algo como 43% do Estado. Mas a Raposa tem 7%.</p> <p><b>Ou, 1,7 milhão de hectares</b></p> <p>O que não é um absurdo. As terras de índios são 43% ao todo, porém, até 30, 40 anos atrás, eram 100%. E o que acontece hoje com os 57% que não são terras de índios? São ocupados por uma população muito pequena, algo em torno de 1 milhão de pessoas. O que é isso? É latifúndio. Sabe quantos são os arrozeiros que exploram terras da reserva? Seis. Não há dúvida de que o que se quer são poucos brancos, com muita terra. Outra inverdade: as terras da reserva são dos índios. Não são. Eles não têm a propriedade, mas o usufruto. Porque as terras são da União. E a União tem o dever constitucional de zelar por elas. Já os arrozeiros querem a propriedade. As notícias que temos são as de que, desde a homologação, produtores rurais que estão fora da lei já atacaram quatro comunidades indígenas, incendiaram 34 casas, arrebentaram postos de saúde, espancaram e balearam índios. Paulo César Quartiero, o arrozeiro-mor, foi preso na semana passada por desacato à autoridade. Já está solto, mas, enfim, esse é o clima de hostilidade que reina por lá. Sinceramente, acho que o general Heleno está sendo usado por esses tubarões do agronegócio, que o envolvem numa questão de soberania totalmente artificial. O general cai nessa e vem com uma tese de balcanização, que não faz o menor sentido. Ele disse à imprensa: "O risco de áreas virem a se separar do território brasileiro, a pedido de índios e organizações estrangeiras, pode ser a mesma situação que ocorreu em Kosovo". Muito bem, o general raciocina como se nós fôssemos os sérvios? Por acaso seria o Brasil a Sérvia e os índios, minorias que precisam ser eliminadas? Não estou entendendo.</p> <p><b>O que se questiona na Raposa é a criação de uma reserva enorme, em área contínua</b></p> <p>A declaração do ministro Gilmar Mendes a esse respeito é espantosa. Ele defende a demarcação de ilhas, e não de terras extensas. Em primeiro lugar, não sabia que ministro do Supremo é demarcador de terras. Demarcar é ato administrativo, cabe ao governo, não ao Judiciário. Em segundo lugar, as terras indígenas já são um arquipélago no Brasil. Acho curiosa essa expressão: demarcar em ilhas. Significa ilhar, isolar, separar. Demarcar de modo que um mesmo povo fique separado de si mesmo.</p> <p><b>Existe o risco de reivindicação de autonomia por parte dos índios?</b></p> <p>A terra ianomâmi está demarcada desde o governo Collor e nunca houve isso. Alguém imagina que os ianomâmis queiram reivindicar um Estado independente, justamente um povo que vive numa sociedade sem Estado? Chega a ser engraçado.</p> <p><b>E se eles foram manipulados por interesses estrangeiros?</b></p> <p>Empresas e cidadãos estrangeiros já são proprietários de partes consideráveis do Brasil. Detêm extensões enormes de terra e parece não haver inquietação em relação a isso. Agora, quando os índios estão em terras da União, que lhes são dadas em usufruto, daí fala-se do risco de interesses estrangeiros. A Amazônia já está internacionalizada há muito tempo, não pelos índios, mas por grandes produtores de soja ligados a grupos estrangeiros ou pelas madeireiras da Malásia. O que não falta por lá é capital estrangeiro. Por que então os índios incomodam? Porque suas terras, homologadas e reservadas, saem do mercado fundiário.</p> <p><b>É uma questão fundiária?</b></p> <p>É. Essa história de soberania nacional serve para produzir pânico em gente que vive longe de lá. É claro que o Exército tem de cumprir sua missão constitucional, que não é a de ficar criticando o Executivo, é proteger fronteiras, fincar postos de vigilância, levar seus batalhões, criar protocolos de convivência com as populações locais. Mas o que prevalece é o conflito fundiário e a cobiça pelas terras. Veja o que aconteceu no Estado do Mato Grosso. O que fez esse governador (Blairo Maggi), considerado um dos maiores desmatadores do mundo? Derrubou florestas para plantar soja, com o consentimento do presidente da República, diga-se de passagem. Hoje o Estado do Mato Grosso deveria se chamar Mato Fino. Virou um mar amarelo. O único ponto verde que se vê ao sobrevoá-lo é o Parque Nacional do Xingu, reserva indígena. O resto é deserto vegetal. Uma vez por ano, o deserto verdeja, hora de colher soja. Depois, dá-lhe desfolhante, agrotóxico... E a soja devasta a natureza duplamente. Cada quilo produzido consome 15 litros de água. Em Roraima não se deve bater de frente com o Planalto. Representa esse Estado o senador Romero Jucá, que é pernambucano e hoje atua como líder do governo. Jucá tem interesses claros e bem definidos. É dele o projeto que regulamenta a mineração em terras indígenas. Regulamenta, não. Libera.</p> <p><b>Ele foi presidente da Funai</b></p> <p>Num momento particularmente infeliz da política indigenista brasileira. Olha, não há nada de errado em ser gaúcho ou pernambucano e fazer a vida em Roraima. Mas não precisa isolar as comunidades e solapar seus direitos. Outra aspecto precisa ser lembrado: até que saísse a homologação da Raposa, o que demorou anos e anos, muito foi tirado de lá. A sede do município de Uiramutã, com 90% de índios entre seus moradores, foi transferida para fora da área. Estradas federais cortam a reserva, bem como linhas de transmissão elétrica. A rigor, já não é uma terra tão contínua.</p> <p><b>O general diz que a política indigenista no Brasil é lamentável e caótica. Concorda com ele?</b></p> <p>Partindo dele, a declaração não chega a ser um furo de reportagem. Creio que essa política anda melhor hoje. Em alguns aspectos tem problemas, sim, como nos programas de saúde para populações indígenas, desastrosos desde que passaram para a coordenação da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Tem havido desmandos e irregularidades em toda parte. Mas do ponto de vista de relacionamento dos indígenas com os poderes da República, as coisas não estão tão mal assim.</p> <p><b>Os índios são instrumentalizados no Brasil?</b></p> <p>Que poderes os instrumentalizariam? A Igreja? Hoje não podemos falar só em Igreja, no singular, mas em igrejas. Porque lá estão os católicos e os evangélicos. Sei que a Igreja Católica não tem tido uma relação muito boa com o Exército e com os políticos na região da Raposa, mas isso é superável. Falta, a meu ver, um esforço da própria Igreja para melhorar a visão do problema e ganhar mais senso político. E as ONGs? Instrumentalizam? Hoje quase todo deputado no Congresso tem ONG própria. Então as relações não-governamentais ganharam uma capa sombria, mas o fato é que existe organização de todo tipo, assim como existe cidadão de todo tipo. Há bandidagem na Amazônia? Claro que há. Índio é santo? Claro que não. Mas será que aqueles carros de luxo contrabandeados pelo filho do governador de Rondônia entram pelas áreas indígenas? Tenho minhas dúvidas. Por que o Exército não impede esse contrabando, que também é uma afronta à soberania? Historicamente, seguimos o modelo de colonização segundo o qual é preciso bandido para povoar e defender certas faixas. Fronteira é feita por toda a sorte de gente. E o Estado parece ter um discurso ambíguo: protesta porque tem gente fora da lei na fronteira, mas, ao mesmo tempo, precisa dos fora-da-lei para fazer o que não é possível legalmente.</p> <p><b>O índio é imune à bandidagem?</b></p> <p>O índio tem a mesma galeria de problemas de qualquer ser humano. E tem, de fato, uma situação especial no Brasil. Porque este país reconhece direitos originários e isso, por si só, é um gesto histórico de proporções imensas. O País reconhece que tem uma dívida para com os índios. Apesar disso, reina uma abissal ignorância sobre a realidade desses povos de quem somos devedores.</p> <p><b>Por quê?</b></p> <p>O brasileiro vive um complexo que eu chamaria de a nostalgia de não ser europeu puro. Isso também se traduz no medo de ser confundido com índio. É um complexo de inferioridade. Ser "um pouco índio" até cai bem na medida em que existe uma certa simpatia com a idéia de mistura de raças, o que também não deixa de ser ambíguo. Por outro lado, o estereótipo clássico do índio, aquele sujeito de cocar e tanga, cada vez menos espelha a realidade. O caboclo da Amazônia pode ter hábitos tipicamente indígenas, mas é também o sujeito que vê televisão, fala ao telefone, como nós.</p> <p><b>Tem-se uma percepção disseminada de que o Brasil foi habitado por índios primitivos, diferentes dos incas, maias ou astecas, cujas civilizações eram até resplandescentes</b></p> <p>Talvez. O México realmente produziu uma forte identificação com povos que foram esmagados pelo colonizador. Aqueles índios fizeram uma civilização mais parecida com a que havia na Europa, com seus palácios, templos, sacerdotes, um aparato que realmente não aconteceu por aqui. Agora, há muito desconhecimento dos índios brasileiros, e isso em parte é culpa nossa, antropólogos, que precisamos demonstrar melhor as soluções originais de vida que esses povos encontraram. Soluções para atingir uma forma de organização social bem-sucedida, no que diz respeito à satisfação de suas necessidades básicas. Não os vejo como índios pobres, mas originais. Considerando a história da espécie humana neste planeta, penso que não estamos em condição de dar lição a ninguém. Nós, os não-índios, tivemos uma capacidade imensa de criar excedentes e uma dificuldade quase congênita de fazer com que sejam usufruídos por todos, de maneira eqüitativa. Articulamos a desigualdade e deixamos para alguém a conta a pagar. Os índios desenvolveram um processo civilizatório mais lento, certamente, mas não deixam a conta para trás. Significa ser primitivo? Eu me pergunto: o que diabos temos a ensinar aos índios se não conseguimos resolver a dengue no Rio? O que temos a lhes mostrar se não damos jeito no trânsito da cidade de São Paulo?</p> <p><b>Quando o europeu chegou nas Américas, a população indígena estaria na casa dos 100 milhões de pessoas. Esse dado é razoável?</b></p> <p>Ah, esses cálculos variam muito, depende da metodologia empregada. O que se pode afirmar é que, por volta do século 15, a população indígena nas Américas era maior do que a população européia. Havia mais gente aqui do que lá. No Brasil, fala-se numa população pré-colombiana entre 4 e 5 milhões. Houve uma perda de 80% disso, desde então. Em certos momentos, houve um declínio demográfico muito profundo, tanto que, na época do Darcy Ribeiro, quando se fez uma contagem, havia algo como 200 mil índios no País. Hoje estima-se em algo em torno de 600 mil.</p> <p><b>O crescimento tem a ver com a aplicação do quesito raça-cor, no censo IBGE, o que levaria mais gente a se declarar índio?</b></p> <p>A autodeclaração é um fator importante, mas não o único. Hoje ocorre um número maior de nascimentos. O grande choque demográfico sobre a população indígena foi de ordem epidemiológica, com as doenças trazidas pelo colonizador. Varíola, gripe, sarampo mataram aos milhões. Até pouco tempo, ainda havia epidemias graves em certas áreas. Mas a tendência é que as populações adquiram resistência, atingindo o equilíbrio biológico. As condições sanitárias também mudaram dramaticamente no século 20. Vieram as vacinas, a penicilina, a assistência de saúde melhorou, tudo isso ajudou a recuperar a população. Já o declarar-se índio tem a ver com um fenômeno que se inicia nos anos 70, 80, que foi acentuado pela Constituição de 1988. Falo da recuperação da identidade indígena. Gente que foi "desindianizada" na marra passou a reivindicar sua origem. Em muita comunidade rural por esse Brasil as pessoas foram ensinadas, quando não obrigadas, a dizer que não eram índias. Pararam de falar a língua do grupo, tinham vergonha de seu passado, de seus costumes. Num processo em que ser índio deixa de ser estigma, e ainda confere direitos, essas pessoas que nada tinham na condição de brasileiros genéricos, buscaram o caminho da reetnização. Isso é assim mesmo. E desde quando buscar direito é tirar vantagem? A raiz do problema não está no que o índio ganha, mas em quem perde com isso. Quem perde? Eis a questão.</p> <p><b>A desconfiança em relação a possíveis pleitos de autonomia tem a ver com o que se passa na Bolívia, país que mudou a constituição para atender aos índios?</b></p> <p>É interessante como se tem invocado a Bolívia ultimamente. A população daquele país é quase toda indígena, enquanto no Brasil falamos de uma minoria irrisória. Zero vírgula zero alguma coisa. Lá é briga de índio. Curioso o Brasil temer virar uma Bolívia, quando uma das tensões sociais que se vê hoje por lá é justamente a presença de brasileiros. São grandes proprietários de terra.</p> <p><b>As reivindicações dos índios na Bolívia podem ser imitadas aqui?</b></p> <p>Mas o que os nossos índios estão pedindo? Passaporte de outro país? Dupla nacionalidade? Uma bandeira só para eles? Uma outra Constituição? Nada disso. O que eles pedem é justamente maior presença do Estado brasileiro onde vivem, para não depender da intermediação do político local. Isso os constitui como uma nação à parte, no sentido jurídico? Evito esse conceito, porque tudo é nação no Brasil.</p> <p><b>Como assim?</b></p> <p>Tem nação nagô, nação rubro-negra, nação corintiana. Essa também é uma herança de Portugal, que, no passado, tratava os povos como nações em documentos administrativos. A rigor, nação é uma construção subjetiva, um compartilhamento de sentimentos e cultura. É isso. Mas a turma do discurso do pânico pensa assim: primeiro o índio tinha vergonha de ser índio, depois viu que é bom ser comunidade. Daí ganhou terra, vai querer autonomia e fundar uma nação. Ora, quem diz isso nunca colocou o pé numa terra indígena.</p> <p><b>Os afrodescendentes deveriam pleitear os mesmos direitos que os índios?</b></p> <p>São situações diferentes. De cara, vou dizer que sou favorável às cotas para negros. Mas os afrodescendentes estão espalhados pelo Brasil e não têm a mesma dinâmica de identidade que os indígenas têm. Um caso à parte são os quilombolas, ao provarem seu vínculo territorial. Veja bem, quando falo de índio, ao longo de toda esta entrevista, falo de populações territorializadas. E, atenção, falo de direitos coletivos, não individuais. Por isso é que o caso dos quilombolas parece guardar certa correspondência. Porque são comunidades rurais descendentes de escravos, que puderam manter uma continuidade histórica e uma certa coesão do ponto de vista patrimonial e demográfico. Por isso é que a Constituição reconhece seus direitos territoriais. São direitos compensatórios, é verdade, mas representam um avanço.</p> <p><b>Professor, quem é, afinal, índio no Brasil?</b></p> <p>Vamos mudar a pergunta: quem está autorizado a dizer que é índio? Eu não estou. Esse é um problema fundamental: quem está autorizado a dizer quem é quem, quem é o quê. Fazer disso uma questão de peritagem me parece uma coisa monstruosa. Ninguém se inventa índio, ninguém sai por aí reivindicando uma identidade escondida, recalcada, eu diria. Vá ver de perto e descobrirá que é assim que a coisa acontece. Portanto, não é índio quem quer. Mas quem pode. Não é negro quem quer. Mas quem pode.</p> <p><b>Como assim?</b></p> <p>Se você souber que um grupo de hippies do Embu, em São Paulo, se diz descendente de guarani, muito bem, terão de ver se isso cola. Se colar do ponto de vista social, e não estou falando do ponto de vista jurídico, então colou. Costumo dizer que, no Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é. Quem não quer ser é quem ativamente se distingue. Para facilitar: digo que é índio aquele que pertence a uma comunidade que se pensa como tal. Também não estou levando em consideração o DNA. Mais recentemente, divulgou-se um estudo segundo o qual a presença do negro e do índio é muito mais alta do que se suponha na média do patrimônio genético brasileiro. Somos algo como 33% de índio, 33% de negro, 33% de branco. O que nos leva a supor que o estupro foi uma prática muito usual. É claro que os genes vieram pelas mulheres negras e índias, submetidas ao homem branco.</p> <p><b>Diz-se que 49,5% dos 225 povos indígenas do Brasil são constituídos, cada um, de no máximo 500 indivíduos. Vem daí a idéia de que é pouca gente para muita terra?</b></p> <p>Mas no Estado de Roraima há meia dúzia de arrozeiros fazendo esse estardalhaço todo. Meia dúzia! Também não é pouca gente? Como é que comunidades tão pequenas podem ameaçar o Brasil? Só se forem criar Estados de Mônaco. Utilizar o índio como modelo de latifúndio, como se tem feito, é um prodígio de má-fé. Índio também vende madeira? Claro que vende. Mas só ele? E os outros?</p> <p><b>Desses 225 povos, 36 têm populações parte no Brasil, parte em países vizinhos. Não é um potencial de conflito imenso?</b></p> <p>Se algum país está o preocupado com isso, certamente não é o Brasil. O fato de haver guaranis no Brasil e na Argentina é mais problema para o vizinho. Compare as duas populações, compare o tamanho dos países. Ter ianomâmis no Brasil e na Venezuela sempre foi complicado para o lado de lá, porque a Venezuela tem petróleo. Mas agora o Brasil também tem, nem precisamos ficar mais com complexo de inferioridade (risos). Qualquer tentativa de ver um problema aí é artificial. O que se sugere? Que se levante uma cortina de ferro para impedir que os ianomâmis passem de um lado para o outro? Por que índios podem cruzar a fronteira Brasil-Uruguai livremente, e não podem cruzar a fronteira Brasil-Venezuela? Por que temos medo do Chávez? Ter comunidades dos dois lados faz da fronteira uma zona de frouxidão. Será que é isso? A fronteira mais complicada do Brasil, hoje, é com a Colômbia, por causa das Farc, e os índios não têm nada a ver com isso. Aliás, eles atrapalham a guerrilha.</p> <p><b>Por quê?</b></p> <p>Porque há mais presença do Estado nas áreas onde vivem. Não vejo como os índios possam perturbar a segurança de nossas fronteiras e, lembrem-se, populações binacionais existem em várias partes do mundo. Pensemos também no bilingüismo. Até final século 18 em São Paulo falava-se a língua geral, o nhangatu, uma derivação do tupi. Foi uma língua imposta pelos missionários, até hoje ouvida em alguns locais da Amazônia. Mas ainda ouvimos cerca de 150 línguas indígenas, o que representa uma diversidade incrível. Algumas dessas línguas são tão diferentes entre si quanto o português do russo, até porque pertencem a troncos diferentes. E são faladas por indivíduos bilíngües, que adotam também o português no dia-a-dia.</p> <p><b>Digamos que os não-índios deixem a Raposa. Os índios de lá poderão plantar e fazer lucro? Poderiam virar arrozeiros?</b></p> <p>Sim, podem plantar e vender. Podem até virar arrozeiros. Mas terão de produzir dentro de limites muito estritos, sujeitos a leis ambientais severas, não se esqueça de que a reserva integra o Parque Nacional de Roraima. Também não podem explorar o subsolo, a não ser o que há no solo de superfície. Mas francamente acho que a população indígena jamais entrará de cabeça no modo de produção do agronegócio, que eu chamo de modelo gaúcho, porque isso simplesmente não bate com seu modelo de civilização. Por isso insisto tanto em dizer que estas não são terras de índio, mas terras de usufruto dos índios. Nunca houve polêmica sobre a definição de reserva, porque se sabe que o domínio das terras é da União. Isso é inclusive a maior garantia para os índios. No dia em que não houver mais, eles serão invadidos imediatamente. Inclusive pelo Brasil, inclusive pelos arrozeiros. Só que no sentido técnico essa invasão já houve. Os índios não têm soberania porque já a perderam e se renderam. Suas populações foram invadidas, exterminadas, derrotadas. O que eles querem é que os direitos de vencidos sejam respeitados. Não se pode infligir uma segunda derrota a eles. Isso é contra as leis, contra tudo.</p> <p><b>Ou seja, o que parece privilégio é direito de vencido?</b></p> <p>Inimigos muito mais graves foram mais bem tratados, quando vencidos. Veja o que aconteceu com os alemães depois do final da guerra. Com todos os tribunais e punições que se seguiram, o país foi reconstruído das cinzas. E o que dizer da guerra implacável contra os índios? Foram exterminados, tratados como bichos, escorraçados por um discurso de língua de cobra em que metade diz que vai defender a pátria e metade vai colocar o dinheiro no bolso. Não, os índios não estão em guerra com o Brasil. Os da Raposa brigam com meia dúzia de arrozeiros que, por sua vez, não representam o Estado brasileiro.Uma coisa me parece estranha: encarregado pela ONU, o Exército brasileiro lidera uma missão militar no Haiti, mas não consegue tirar de uma reserva indígena seis fazendeiros?</p> <p><b>A Constituição brasileira está fazendo 20 anos. O que representou para os índios?</b></p> <p>Foi um avanço, mas ainda falta regulamentar muita coisa. É impressionante como a Constituição tem inimigos. Todo mundo quer tirar dela uma lasca, com cinzel e tudo. O artigo referente aos direitos indígenas é um dos mais visados. Há pelo menos 70 projetos de lei tramitando no Congresso Nacional, nesse campo específico, e todos pretendem diminuir as garantias do direito às terras. Mais de 30 dessas proposições querem alterar os procedimentos de demarcação. Buscam reverter processos administrativos. Os oito deputados federais do Estado de Roraima apresentaram projetos para suspender a portaria que criou a Raposa Serra do Sol. Toda bancada é contra a reserva. O projeto de regulamentação para mineração, do Jucá, é primor de como se pode erodir direitos, comendo o pirão pelas beiradas. Em compensação, o projeto de lei que substitui o Estatuto do Índio está há 14 anos parado no Congresso. O que existe, claramente, é a tendência de redução de proteção jurídica aos povos indígenas. E, conseqüentemente, de redução da presença e da soberania da União nessas áreas.</p> <p><b>O senhor desenvolveu uma teoria conhecida no mundo todo como "perspectivismo amazônico". É vista como uma grande contribuição à antropologia.</b></p> <p>Não sou eu quem vai dizer isso...</p> <p><b>Mas parece que o senhor conseguiu inverter o ponto focal, digamos assim, dos estudos indígenas. É isso mesmo?</b></p> <p>Fiz um trabalho teórico que não é só meu, é dos meus alunos também. Faço uma experiência filosófica que no fundo é muito simples. Temos uma antropologia ocidental, montada para estudar os outros povos, certo? O que aconteceria se vocês imaginassem uma antropologia feita do lado de lá, ou seja, do ponto de vista indígena? Foi isso que me levou a entender que, para os índios, a natureza é contínua, e o espírito, descontínuo. Os índios entendem assim: há uma natureza comum e o que varia é a cultura, a maneira como me apresento. Daí a preocupação de se distinguir pela caracterização dos corpos. E as onças, como se vêem? Como gente. Só que elas não nos vêem como gente, mas como porcos selvagens. Por isso nos comem. Enfim, para os indígenas, cada ser é um centro de perspectivas no universo. Se eles fizessem ciência, certamente seria muito diferente da nossa, que de tão inquestionável nos direciona a Deus, ao absoluto, a algo que não podemos refutar, só temos de obedecer. Os índios não acreditam na idéia de crer, são indiferentes a ela, por isso nos parecem tão pouco confiáveis (risos). No sermão do Espírito Santo, padre Antonio Vieira diz que seria mais fácil evangelizar um chinês ou um indiano do que o selvagem brasileiro. Os primeiros seriam como estátuas de mármore, que dão trabalho para fazer, mas a forma não muda. O índio brasileiro, em compensação, seria como a estátua de murta. Quando você pensa ela está pronta, lá vem um galho novo revirando a forma.</p> <p>OESP, 20/04/2008, Aliás, p. J4</p> Entrevistas Tue, 01 Jul 2008 19:43:55 +0000 ines 232 at http://util.socioambiental.org/inst/esp/raposa