Nota técnica - Índios na fronteira

Autor: 
Prof. Dalmo de Abreu Dallari
Data de publicação: 
03/06/2008

Assunto: DEMARCAÇÃO DE ÁREAS INDÍGENAS

NOTA TÉCNICA

O Conselho Indígena de Roraima, pessoa jurídica de direito privado, que congrega membros de comunidades indígenas que tradicionalmente ocupam áreas naquele Estado, solicita minha opinião sobre os aspectos jurídicos de algumas questões relacionadas com a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Tendo em conta a importância do assunto para as comunidades diretamente envolvidas, bem como para toda a sociedade brasileira, uma vez que os conflitos que ocorrem naquele Estado neste momento envolvem a questão da efetiva vigência da Constituição brasileira naquele Estado, passo a responder as questões suscitadas, com objetividade e sem me ater a reflexões de natureza teórica, tendo por base, fundamentalmente, os princípios e normas constitucionais.

Pergunta:

1ª. A demarcação administrativa de terras tradicionalmente ocupadas por índios, especialmente as localizadas na faixa de fronteira a que se refere parágrafo 2° do artigo 20 da Constituição Federal, implica, de alguma forma, prejuízo ou risco à segurança e à defesa nacional, ou mesmo algum tipo de comprometimento da soberania do Brasil sobre parte de seu território ?

Resposta:

Antes de tudo, é necessário e oportuno lembrar que a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios é uma obrigação constitucional do governo da União, expressamente enunciada no artigo 231 da Constituição. Essas terras, por disposição constitucional, pertencem ao patrimônio da União e os índios têm o direito à ocupação permanente e ao usufruto exclusivo das riquezas nelas existentes. Quando afirma esses direitos a Constituição não estabelece qualquer restrição ou exceção, não estando excluídas, portanto, as terras situadas em região de fronteira, que sendo ocupadas tradicionalmente pelos índios são terras indígenas como todas as demais. Quanto ao risco para a segurança nacional ou à defesa do País a história e os fatos comprovam que tal risco nunca existiu e não existe agora. Não se tem um único exemplo de entrega de território indígena brasileiro a estrangeiros, ou de facilitação de entrada de estrangeiros por se tratar de terra indígena. Bem ao contrário disso, existem registros históricos da garantia da propriedade e da soberania do Brasil sobre terras de fronteira justamente por estarem ocupadas por índios brasileiros. A par disso, o Exército brasileiro tem não só o direito, mas também o dever, de permanecer vigilante em toda a extensão das fronteiras, podendo e devendo intervir, sem precisar pedir licença aos índios ou a quem quer que seja, quando houver efetiva ameaça por estrangeiros ou seus prepostos. Além disso tudo, o que se sabe, por fatos divulgados pela imprensa, é que a ameaça à soberania brasileira sobre terras indígenas vem de brasileiros não-índios associados a empresas estrangeiras ou trabalhando para elas, visando a exploração econômica de riquezas existentes em terras indígenas. Por tudo isso, é dever das Forças Armadas proteger a ocupação indígena, porque se trata de terras pertencentes ao patrimônio da União vinculadas constitucionalmente à ocupação pelos índios, sendo fora de dúvida que a manutenção da ocupação pelos índios é uma forma de garantia da soberania brasileira sobre essas áreas.

Pergunta:

2ª. O respeito à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada em 13 de Setembro de 2007, acarreta ou pode acarretar algum risco para a soberania do Estado brasileiro sobre seu território ?

Resposta:

Por Resolução da Assembléia Geral, aprovada em 13 de Setembro de 2007, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou Relatório do Conselho de Direitos Humanos, Relatório que continha, com proposta de aprovação pela Assembléia, o texto da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, que, assim, passou a ser um documento oficial da Organização das Nações Unidas, reconhecendo e proclamando os direitos dos povos indígenas de todo o mundo. Por se tratar de uma Declaração e não de um tratado, esse documento não tem, do ponto de vista estritamente formal, efeito juridicamente vinculante, sendo essa, exatamente, a natureza da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Entretanto, por se tratar de princípios e normas tendo por fundamento preceitos éticos universalmente reconhecidos, sua autoridade moral é inegável, podendo-se mesmo afirmar que, mesmo sem a natureza de um tratado, pode ser sustentada sua força jurídica por se tratar de preceitos fundados no costume jurídico internacional.
Quanto a eventuais riscos que o respeito a essa Declaração possa acarretar para a soberania do Estado brasileiro sobre os territórios indígenas, pode-se afirmar, sem sombra de dúvida, que tais riscos absolutamente não existem. Mesmo quanto aos tratados, só obrigam o Brasil naquilo em que não conflitam com qualquer dispositivo da Constituição brasileira, pois para o Estado brasileiro esta é norma jurídica superior a qualquer outra. A par disso tudo, é importante ressaltar que o Brasil aprovou a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, como membro da Organização das Nações Unidas, assumindo o compromisso moral de respeitá-la, sendo mais do que óbvio que o Ministério das Relações Exteriores do Brasil estudou o documento antes de ser manifestada a aprovação brasileira, não havendo qualquer dúvida de que aquele Ministério vem demonstrando cuidado e firmeza extremos na defesa da soberania do Brasil. Em conclusão, a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, com o voto favorável do Brasil, não representa qualquer risco à soberania brasileira sobre as terras indígenas.

Pergunta:

3ª. A demarcação de terras tradicionalmente ocupadas por índios implica em comprometimento do princípio federativo, em razão de supostos prejuízos às unidades da federação, pelo fato de que a competência constitucional da União para demarcar as terras indígenas pode ser efetivada sem que esteja assegurada a participação da unidade da federação no correspondente procedimento administrativo de demarcação?

Resposta:

Nos termos expressos da Constituição, é obrigação do governo da União proceder à demarcação das terras indígenas. A demarcação é competência exclusiva da União, não existindo qualquer fundamento legal para que os Estados pretendam ter o direito de participar do processo administrativo de demarcação. Se algum Estado, ou mesmo um particular, entender que houve alguma ilegalidade na demarcação e que isso prejudica algum direito seu, terá a possibilidade de questionar o ato homologatório da demarcação, firmado pelo Presidente da República, pelas vias judiciais competentes. Mas, obviamente, isso nada tem a ver com a participação dos Estados no processo demarcatório, que é um processo administrativo federal, com tramitação interna em repartições federais. Quanto ao comprometimento do princípio federativo, é alegação desprovida de qualquer fundamento. Basta lembrar que quando foi aprovado a Constituição já ficou expresso que todas as terras tradicionalmente ocupadas por índios pertencem ao patrimônio da União, asseguradas ao índio a ocupação permanente dessas terras e o uso exclusivo de suas riquezas. Assim a demarcação não afeta qualquer direito, pois simplesmente registra o fato da ocupação. Os direitos da União e dos povos indígenas já existe mesmo sem a demarcação. Esta apenas fixa com absoluta clareza os limites da ocupação, sem tirar ou restringir direitos de quem quer que seja. A organização federativa e as conseqüências do federalismo não sofrem a mínima alteração pelo fato da demarcação, pois esta não afeta qualquer direito.

Pergunta:

4ª. A demarcação de terras indígenas pela União pode acarretar reflexos negativos na economia das unidades da federação na qual as terras indígenas se localizem?

Resposta:

A demarcação das terras indígenas é apenas o registro formal de uma situação já existente. Por esse motivo, por não criar uma situação nova, não há como afirmar que a demarcação produza efeitos negativos sobre a economia dos Estados. O reconhecimento, pelo constituinte, da existência dos Estados, foi concomitante à afirmação dos direitos da União e dos povos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas por índios. Mais ainda, quanto aos Estados criados pelo constituinte de 1988, Roraima, Amapá e Tocantins, por decisão constante dos artigos 13 e 14 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, existe uma razão a mais para que não se possa dizer que a demarcação das terras indígenas irá acarretar algum reflexo negativo sobre suas economias, pois no mesmo momento de sua criação, a Assembléia Constituinte de 1988, já ficou expresso que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios eram patrimônio da União. Assim, não existe a mínima dúvida de que as terras indígenas vizinhas a eles ou cercadas por eles jamais fizeram parte do território daqueles Estados e de modo algum tiveram ou têm qualquer influência em sua economia, como, aliás, sobre a economia de qualquer Estado brasileiro.

Pergunta:

5ª. A demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol nos limites fixados na Portaria n/ 534, de 2005, do Ministro de Estado da Justiça, implica ofensa ao princípio da razoabilidade, por ser conformada em espaço contínuo?

Resposta:

A Constituição dispõe claramente que as terras tradicionalmente ocupadas por índios pertencem ao patrimônio da União e sobre elas os índios têm o direito de ocupação permanente e uso exclusivo das riquezas. Não há qualquer referência ou ressalva quanto à extensão das terras ou à sua delimitação por partes isoladas. Bem ao contrário disso, diz a Constituição, no artigo 231, § 1º, que “são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. Isso é o que dispõe a Constituição, que em nenhum dispositivo faz qualquer referência ao tamanho da área nem dá permissão para o isolamento das aldeias e a exclusão da área existente entre elas, pois a ocupação de toda a área é indispensável para a preservação dos recursos ambientais necessários ao bem estar e à satisfação das necessidades essenciais dos índios e à sua reprodução física e cultural. A ocupação das terras é contínua e a Constituição assegura aos índios o direito sobre toda a área ocupada. E onde a Constituição é clara e taxativa não cabe cogitar da razoabilidade, pois ninguém tem o direito de agir contra os dispositivos da Constituição por considerar que eles não são razoáveis. A única atitude razoável, no caso, é o respeito à Constituição.Falar em demarcação descontínua, no caso da ocupação indígena, é fraude que agride a Constituição.

São Paulo, 3 de Junho de 2008.
Prof. Emérito Dalmo de Abreu Dallari