Memorial das Comunidades Indígenas Barro, Maturuca, Jawari, Tamanduá, Jacarezinho e Manalai

Autor: 
Joênia Batista de Carvalho e Ana Paula Caldeira Souto Maior
Data de publicação: 
18/02/2009

Ao Colendo Egrégio Supremo Tribunal Federal
Ministro Relator Dr. Carlos Ayres Britto

As Comunidades Indígenas, já qualificadas nos autos, vem respeitosamente apresentar:

MEMORIAL DAS COMUNIDADES INDÍGENAS BARRO, MATURUCA, JAWARI, TAMANDUÁ, JACAREZINHO E MANALAI

Petição nº 3388 Ação Popular
Autor: Augusto Botelho Neto
Ré: União Federal
Advogadas da Comunidades Indígenas:
Joênia Batista de Carvalho OAB-RR nº 253
Ana Paula Caldeira Souto Maior OAB-RR nº 060-B
Objeto: Demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol

1. Do julgamento do caso

A segunda parte do julgamento da ação popular que questiona a demarcação da terra indígena Raposa/Serra do Sol foi um passo fundamental para a consagração dos direitos indígenas à terra, de acordo com o que dispõe a Constituição de 1988.

Segundo o voto de oito dos 11 ministros, o procedimento administrativo de demarcação foi legítimo, a terra indígena corresponde a ocupação que os índios dela fazem, a demarcação não compromete o exercício de defesa da soberania nacional em faixa de fronteira e nem impede a existência e o desenvolvimento do ente federado em que se localiza.

No decorrer do julgamento, no entanto, foram apresentadas pelo Exmo. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito algumas condições (18 no total) ao exercício, pelas populações indígenas, dos direitos que lhes foram garantidos pela Constituição Federal. Estas condições, por não estarem presentes no pedido formulado na Exordial da referida Ação Popular, não foram adequadamente debatidas pelos demais membros desta Digníssima Corte, muito embora, ao que tudo indica, elas provavelmente virão a ser utilizadas, por este Tribunal, em outros casos relativos a demarcação ou uso de terras indígenas. Algumas das condições expostas não são claras quanto ao seu alcance; outras, ao que parece, contrariam dispositivos da própria Carta Magna ou da legislação infraconstitucional. Os presentes memoriais têm como objetivo apontar problemas jurídicos em algumas das condições apresentadas, tal qual foram redigidas, com o intuito de colaborar com a reflexão dessa E. Corte no deslinde de um caso tão importante, e de ajudar a lapidar esta tão esperada decisão.

2. A tese do Fato Indígena desconhece direitos adquiridos e o alcance da doutrina do indigenato

Em sua argumentação, o Ministro Menezes de Direito afirma que a Constituição Federal de 1988 não teria recepcionado o princípio do indigenato, presente em nosso Ordenamento Jurídico desde o Alvará Régio de 1o de abril de 1680 e que assegura direitos congênitos das populações indígenas sobre seus territórios de ocupação tradicional. Segundo seu voto, o art. 231 de nosso texto constitucional reconheceria direitos apenas diante do fato indígena, ou seja, a presença de determinada população indígena em seu território tradicional no dia 05 de outubro de 1988. Pelo que se pode depreender de seu voto, apenas as áreas efetivamente ocupadas por indígenas em 1988 poderiam ser consideradas Terras Indígenas. Essa tese, no entanto, além de não encontrar guarida na doutrina constitucional, e tampouco na jurisprudência desta Corte, pode levar, inadvertidamente, a uma série de injustiças e ameaça a direitos adquiridos. Senão vejamos.

Não são poucos os casos em que os governos estaduais, ou mesmo o Governo Federal, alienaram ilegalmente a particulares, num passado recente, terras de ocupação tradicional indígena, com o intuito deliberado de coloniza-las e abri-las à exploração agropecuária ou mineral. À época essas alienações eram justificadas pela necessidade de “progresso”, uma vez que o modo de vida indígena era visto pelo Estado e pela sociedade em geral como “atrasado”, o que impelia a sua substituição por outras formas de uso da terra e dos recursos naturais mais “modernas”, representadas pela instalação de centros urbanos e grandes fazendas de exploração agropecuária ou madeireira. Formalmente essas alienações eram justificadas pela idéia de que os Estados, ou mesmo a União, estavam alienando terras devolutas, portanto passíveis de alienação. Porém, como nos explica o E. Jurista, hoje Presidente desta mais alta Corte, GILMAR MENDES:

“Após o advento da Constituição de 1934, constitui uma inequívoca contradictio in adjecto falar-se em terras devolutas ocupadas por silvícolas. Em verdade, a Constituição de 16 de julho de 1934 veio ilidir qualquer dúvida que, porventura, pudesse pairar sobre o tema. Foi Pontes de Miranda um dos primeiros a perceber, entre nós, essa nova realidade normativa, destacando que o constituinte atribuíra aos indígenas o domínio coletivo das terras ocupadas, como emanação do ato-fato da posse em caráter permanenteHá, portanto, flagrante contradição nos termos quando se fala em terras devolutas estaduais ocupadas por silvícolas: ou se cuida de terras devoluta, integrante do domínio estadual, ou de terra ocupada por indígena e, por isso, do domínio da União” (in O Domínio da União sobre as Terras Indígenas, pgs.67/71)

De fato, se consultarmos os textos de nossas constituições anteriores, veremos que todas, desde a Constituição Federal de 1934 até a de 1967, mandavam respeitar a posse indígena e diziam expressamente serem inalienáveis suas terras. Segundo o entendimento de alguns autores, até 1967 as terras indígenas eram de propriedade coletiva dos povos que nela habitavam. Outros entendem que lhes era assegurada a posse, sendo a propriedade da União Federal. Mas o certo é que a partir da Constituição Federal de 1967 as terras indígenas são taxativamente designadas como bens da União, entendimento que foi posteriormente firmado pelo Supremos Tribunal Federal, em sua súmula 480, in verbis:

“Pertencem ao domínio da União, nos termos dos arts.4º, IV, e 186 da Constituição Federal de 1967, as terras ocupadas por silvícolas”

Esse entendimento veio a ser corroborado posteriormente por esta Corte em diversos julgamentos, com destaque para o caso Krenak, que serviu de precedente para diversas decisões do STF e de tribunais inferiores. Nesse caso se discutia o direito do povo Krenak a retomar parte do seu território de ocupação tradicional, do qual havia sido expulso ao longo de décadas pela ação de fazendeiros e do Poder Público, e que foi posteriormente alienado pelo Estado de Minas Gerais a particulares. A decisão é no seguinte sentido:

AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA. TÍTULOS DE PROPRIEDADE INCIDENTES SOBRE ÁREA INDÍGENA. NULIDADE.
Ação declaratória de nulidade de títulos de propriedade de imóveis rurais, concedidos pelo Estado de Minas Gerais e incidentes sobre área indígena imemorialmente ocupada pelos índios Krenak e outros grupos. Procedência do pedido. (Ação Cível Originária nº 323-7 Minas Gerais, Rel. Min. Francisco Rezek, 14.10.93)

Se a tese do fato indígena esposada no voto do Ministro Menezes Direito, e ainda não debatida pelo Plenário, vier a se tornar vencedora e orientadora de novas decisões, casos como os dos Krenak passarão a ter uma solução completamente distinta. Não são poucos os casos de povos que foram expulsos de seus territórios tradicionais antes de 1988 e que apenas anos depois da promulgação do texto constitucional, com o aprimoramento das instituições de defesa dos direitos indígenas, passaram a reivindicar o retorno a suas terras originais. Segundo a tese do fato indígena povos como os Krenak não teriam mais o direito ao retorno a seus territórios tradicionais pelos simples fato de, desafortunadamente e contra sua vontade, não estarem ocupando-as em 05 de outubro de 1988. Mesmo terras já oficialmente reconhecidas estariam sob risco.

Um exemplo concreto é o dos Panará. Expulsos pelo Estado brasileiro de suas terras em 1973, quando da abertura da BR 163 (Cuiabá-Santarém), e levados ao Parque Indígena do Xingu pelas mãos dos irmãos Villas Boas, resolveram, após a promulgação da Carta Magna de 1988 e inspirados pelo clima de redemocratização e respeito pelos direitos indígenas, demandar o reconhecimento e proteção de seu território tradicional e o direito de a ele retornar. Após alguma relutância da FUNAI e de uma intensa batalha judicial eles conseguiram que a União reconhecesse como terra indígena uma parte de seu antigo território, para o qual retornaram em 1996, onde hoje é a Terra Indígena Panará.

Existem outros casos como o dos Panará. Pela tese do fato indígena nenhum povo expulso de sua terra poderia retornar a seu território tradicional, pois a Constituição de 1988 não asseguraria esse direito. Esse entendimento, como é evidente, fere de morte o espírito e a letra de nossa Lei Maior.

A Constituição Federal é de clareza cristalina quando estipula em seu art.231, §2º serem as terras tradicionalmente ocupadas destinadas à posse permanente dos índios. Muito lúcidas são as palavras do grande mestre José Afonso da Silva:

“a posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios não é simples posse regulada pelo direito civil; não é a posse como simples poder de faro sobre a coisa, para sua guarda e uso, com ou sem ânimo de tê-la como própria. É aquela possessio ab origine que, no início, para os romanos, estava na consciência do antigo povo, e era não a relação material do homem com a coisa, mas um poder, um senhorio. Por isso é que João Mendes Jr. lembrou que a relação do indígena com suas terras não era apenas um ius possessionis, mas também um ius possidendi, porque ela revela também o direito que têm seus titulares de possuir a coisa, com o caráter de relação jurídica legítima e utilização imediata. (...) Quando a Constituição declara que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios se destinam a sua posse permanente, isso não significa um pressuposto do passado como ocupação efetiva, mas, especialmente, uma garantia para o futuro, no sentido de que essas terras inalienáveis e indisponíveis são destinadas, para sempre, ao seu habitat.”( apud “Terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”, in Os Direitos Indígenas e a Constituição, Porto Alegre, Sérgio Fabris, 1993, pg.49/50 – grifos nossos)

A interpretação de que reconhecer os direitos originais dos índios à terra poderia levar a que todo o país fosse reconhecido como indígena esbarra no limite físico da população indígena que hoje não chega a um por cento da população brasileira. Ou seja, a população indígena dizimada não está a reclamar terra, são os povos sobreviventes que brigam por existir. E a tese do fato indígena apenas cristaliza uma situação de injustiça ao impedir o direito ao retorno.

3. Condição nº 05: Os povos indígenas não têm direito a se manifestar sobre obras construídas em suas terras?

A condição de no 05 do voto do Ministro Menezes de Direito estipula textualmente que “a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico a critério dos órgãos competentes (o Ministério da Defesa, o Conselho de Defesa Nacional) serão implementados independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai”. Acreditamos que houve uma confusão aqui, que precisa ser resolvida, sob pena de contrariar o próprio texto constitucional e tratados internacionais ratificados pelo país. Vejamos.

Em primeiro lugar há que se diferenciar as obras militares de outras obras, civis, de cunho estratégico. As obras militares importantes à defesa das fronteiras devem ser feitas de acordo com o planejamento e estratégia elaborados pelas Forças Armadas, e se porventura, e de maneira justificada, o local escolhido se encontra dentro de uma Terra Indígena, não deve haver nenhum obstáculo a que ela seja realizada. Isso, no entanto, não significa que ela deva necessariamente ser feita sem qualquer consulta às comunidades indígenas que serão por elas impactadas. O fato das populações indígenas não terem o poder de decidir não implica, de maneira alguma, na supressão do seu direito à informação e à participação nos destinos de seus territórios. Esse direito, tão elementar, ademais já foi reconhecido pelo Exército Brasileiro (EB), que através da Portaria MD/EME no 020, dispõe que “após a definição dos locais para a instalação de Organização Militar (OM) em Terras Indígenas ou próximas delas, informar às comunidades indígenas, bem como suas instâncias representativas” (sic).

A diretriz acima mencionada permite que as comunidades indígenas tenham a possibilidade de dialogar com o Exército Brasileiro sobre a sua atuação concreta em terras indígenas, articulando o que de for de seu interesse e direito. A orientação contida no item 5 suprimiria qualquer momento de contemporização e poderia gerar conflitos e tensão que o espírito destas Portaria visa justamente contornar.

Por outro lado, a condicionante no 05 dispõe, perigosamente, que a expansão da malha viária, a exploração mineral ou hidrelétrica em terras indígenas deverá ser feita sem consulta às comunidades. Ora, isso é uma afronta direta ao texto constitucional, que em seu art.231, § 3o dispõe expressamente que “o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei”. Se o constituinte condicionou o exercício de determinadas atividades de uso dos recursos naturais à consulta prévia das populações indígenas, como pode uma decisão veda-la taxativamente? O mesmo pode-se dizer da construção de estradas: a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil, que em seu artigo 6 dispõe sobre o direito dos povos indígenas em serem consultados quando da construção de obras em suas terras.

Ademais, há que se ressaltar que essas obras, quando construídas fora de terras indígenas, mesmo que formalmente estratégicas (como o deve ser qualquer obra que demande o gasto de recursos do erário público), devem necessariamente ser licenciadas, e para tanto devem passar por audiências públicas, onde toda a população é consultada e informada sobre a obra. Por que haveria de ser diferente com as populações indígenas? Como interpretar que o legislador constituinte, tão generoso para os povos indígenas, lhes houvera ceifado um direito de cidadania tão básico?

Acreditamos, portanto, que o item 05 deve ser melhor esclarecido, deixando claro que se refere apenas a obras militares, e não a qualquer obra “estratégica” (para o que não há uma definição jurídica), e que a consulta prévia não é vedada, embora seu resultado não seja vinculante. A forma como está redigida a orientação, como acima mencionado, reforça a absolutização de posições unilaterais, que afronta não apenas os direitos indígenas mas o Estado Democrático de Direito fundado em nossa Constituição.

4. Condições nº 08 e 09: Unidades de Conservação em Terras Indígenas

Um dos pontos já superados por este julgamento é a possibilidade de coexistência entre Unidades de Conservação e Terras Indígenas, já que ambas figuras têm objetivos que, em sua grande maioria, são compatíveis entre si. Essa é inclusive a orientação da Lei Federal 9985/00, que estabelece o Sistema Nacional de Unidades de Conservação. No caso concreto, foi admitida a sobreposição entre o Parque Nacional do Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa/Serra do Sol.

Porém, na condição nº 08 o Ministro Menezes de Direito subordina o ingresso, trânsito, permanência e o usufruto dos índios sobre os recursos naturais existente dentro do PARNA “às condições estipuladas pela administração da unidade de conservação”, a qual deverá consultar as comunidades indígenas “em caráter apenas opinativo”. Essa decisão, em nosso entender, além de injusta, por subordinar as formas de uso dos recursos naturais pelas populações indígenas ao critério único de uma autoridade administrativa, também não colabora para o bom entendimento entre as comunidades indígenas e o órgão gestor. Mais. Vai na contramão do estipulado na lei do SNUC, que prevê, para casos em que há populações humanas no interior de unidades de proteção integral – como é o caso do PARNA – a necessidade de um acordo de convivência entre essas pessoas e o órgão gestor. Senão vejamos.

O artigo 27, §2º da Lei 9985/00 dispõe que será assegurada “ampla participação” das populações residentes, nas unidades em que isso é possível (como é o caso em tela), na elaboração de planos de manejo, documento-mestre que orientará o uso e a conservação dos recursos naturais existentes na unidade. Mesmo nas unidades de conservação onde não é permitida a presença de populações humanas, a lei estipula que “até que seja possível efetuar o reassentamento de que trata este artigo, serão estabelecidas normas e ações específicas destinadas a compatibilizar a presença das populações tradicionais residentes com os objetivos da unidade, sem prejuízo dos modos de vida, das fontes de subsistência e dos locais de moradia destas populações, assegurando-se a sua participação na elaboração das referidas normas e ações” (art.42, §2º).

A condição colocada pelo Ministro Direito, portanto, cria uma discriminação às populações indígenas - que constitucionalmente têm direitos originários sobre suas terras e recursos - que não é aplicada a outras populações humanas pela legislação ordinária. É, portanto, uma discriminação injusta e inconstitucional, e que caminha em sentido contrário da atual política nacional de áreas protegidas, que busca superar os conflitos históricos entre as unidades e as populações por meio do diálogo e do entendimento mútuo.

A confirmação dessa condição seria, ademais, uma grande medida de injustiça para os Ingarikó, os Macuxi e outros – que habitam a terra indígena aonde o PARNA Monte Roraima está inserido, – e para todas as outras populações indígenas que têm que conviver com unidades de conservação de proteção integral. Muitas dessas unidades foram criadas exatamente porque as áreas foram conservadas pelas populações indígenas. Imagens de satélite demonstram o baixo grau de degradação do meio ambiente em terras indígenas o que permite evidenciar a importância do uso e manejo dos recursos naturais pelos índios.

Seria, ademais, optar pela imposição e não pelo diálogo. No Parque Nacional do Monte Roraima, localizado dentro da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol, por exemplo, os índios Ingarikó depois de várias tratativas lograram um entendimento firmado na expedição de Portaria(1), assinada pelo Ministro da Justiça e pela Ministra do Meio Ambiente, que institui um Grupo de Trabalho-GT, para fins de elaborar o Plano de Administração conjunta da área comum afetada pelo Parque Nacional Monte Roraima e a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no Estado de Roraima e o Plano de Ação Emergencial para o período de 2008.

Este GT Interministerial em atuação é coordenado segundo o Art. 3° desta Portaria pelo Presidente do Conselho Indígena do Povo Ingarikó - COPING, tendo como substitutos, alternadamente, o Chefe do Parque Nacional Monte Roraima e o Administrador da AER Boa Vista/RR. O GT é composto por lideranças indígenas, funcionários do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade e da Funai.

A condição 8 de que apenas o órgão ambiental responderá pela administração de unidade de conservação, com a participação das comunidades indígenas em caráter apenas opinativo e com a consultoria da Funai, impede a atuação do índio Ingarikó como coordenador do GT e dificulta a atuação das demais lideranças indígenas e de funcionários da Funai, que ficariam em situação desconfortável em relação aos funcionários do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o que comprometeria todo o trabalho construtivo desenvolvido nos últimos anos. A orientação afetaria não apenas esta realidade, mas o trabalho em outras terras indígenas na mesma situação.

5. Condição 12: Ingresso e Permanência de não-índios em Terras Indígenas

A condição nº 12 impede, de maneira genérica, que comunidades indígenas possam cobrar pelo ingresso, trânsito ou permanência de não-índios em suas terras. Essa condição precisa ser melhor detalhada, pois pode causar confusões quanto ao seu alcance e atrapalhar atividades lícitas e importantes ao desenvolvimento sustentável das terras indígenas, como é o caso do ecoturismo ou outras atividades recreativas que pressuponham o ingresso de visitantes. Não seria justo ou juridicamente legítimo impedir que as comunidades indígenas venham a explorar o turismo em suas terras, tal como ocorre em propriedades particulares em diversas regiões do país. Ademais, seria matar o que é visto hoje como uma das potenciais principais fontes de recursos para a sustentabilidade econômica de muitas terras indígenas.
Cabe ressaltar que o ingresso em TIs é hoje fartamente regulamentado. A Funai expediu várias portarias que regulamentam o ingresso de não índios em terras indígenas com diferentes finalidades(2). Este controle é feito em conjunto com as comunidades indígenas.

6. Condição 13: não poderiam as comunidades indígenas receberem indenização por prejuízos causados por obras de utilidade pública em suas terras?

Na mesma linha do item anterior, merece ser melhor explicado o alcance da condição nº 13, para não trazer às populações indígenas diferenciações no gozo de direitos prejudiciais em relação ao restante da população nacional.

Ao dizer que não pode haver cobrança de qualquer quantia pela existência de estradas, linhas de transmissão ou quaisquer equipamentos públicos, poderá se estar proibindo as populações indígenas de receberem indenização ou compensação financeira pela criação de servidões ou pela utilização de parte de suas terras por grandes obras de infra-estrutura, como ocorreria com qualquer cidadão. Por que a passagem de uma linha de transmissão por terras particulares gera a estes o direito à indenização e o mesmo não ocorreria com as populações indígenas? Essa seria uma regra discriminatória.

A CF em seu Art. 5º estabelece a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos seguintes termos que aqui nos interessam:
...
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;
XXV - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;

Os direitos indígenas contidos no artigo 231 e no artigo 232 da Constituição devem ser interpretados dentro do conjunto da Carta Magna. O propósito de tornar as terras indígenas como bens da União foi o de proteger a base física de sobrevivência dos índios, não de torná-la uma reserva de recursos naturais para a utilização indiscriminada pelo poder púbico.

7. Condição 4: Garimpagem e Faiscação em Terras Indígenas

A restrição a garimpagem e a faiscação aos índios contidas na orientação do item 4 vai de encontro a permissão com exclusividade aos índios de acordo com o Art. 44 do Estatuto do Indio, Lei 6001, ainda em vigor(3). Assim também como a CF estabelece no Artigo 231, § 7º que não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º referente a atuação de garimpeiros em cooperativas. Logo é de entender que somente aos índios cabe a garimpagem, faiscação e cata nas terras por eles ocupadas. Está tramitando no Congresso Nacional Projeto de Lei que regulamenta a exploração e o aproveitamento de recursos minerais, por terceiros e pelos próprios índios e suas comunidades (PL 1610/96).

8. Condição 17: Ampliação de terras indígenas

A Constituição de 1988 rompeu com a perspectiva assimilacionista da política indigenista que antecedeu a sua confecção. Os índios eram vistos como em transição de sua cultura para a cultura nacional. Neste contexto suas terras foram demarcadas considerando que eles se integrariam não apenas econômica e culturalmente, mas também fisicamente. Os índios a medida que o tempo passasse iriam viver nas cidades. O novo texto constitucional ao garantir-lhes o direito de manter a sua própria cultura reconhece que os índios não estavam deixando de existir, mas ao contrário estavam interagindo com a sociedade nacional e logrando manter sua identidade cultural. As terras demarcadas antes da CF em geral reconheciam apenas os locais onde os índios viviam, sem garantir os espaços religiosos ou os recursos ambientais necessários à sua reprodução física e cultural. Mesmo após a Constituição de 1988 é possível que a administração tenha cometido erros ao demarcar. Vedar a ampliação de demarcação de terras indígenas, poderia ser resultado de uma política pública equivocada para os povos indígenas, mas fazê-lo em termos legais refletiria uma orientação positiva do Estado que comprometeria a existência de alguns povos indígenas.

9. Conclusão

Assim, as Comunidades Indígenas da Raposa Serra do Sol-RR trazem ao Supremo Tribunal Federal suas preocupações relativas a algumas das condições ao exercício de direitos indígenas discutidas por esta Corte e acreditam que a decisão final do julgamento confirmará a legalidade da Portaria 534/2005 e do Decreto de Homologação 15/04/2005, cassará a liminar que suspende a desintrusão da terra indígena e determinará a imediata retirada dos ocupantes não-índios.

A reafirmação dos direitos constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, aliada às ações de implementação de políticas públicas, conforme já sinalizadas para acontecer pelo governo federal, levará a uma nova página de história, fundada no respeito às comunidades requerentes, seus membros e suas culturas.

(1) Portaria Interministerial no 838, de 8 de maio de 2008, publicada no DOU de 09/05/08, Seção 2, página 35, prorrogada pela Portaria no. 23, publicada no DOU de 25/12/08.
(2) A Instrução Normativa nº 01 do presidente da FUNAI, datada de 29.11.95 e publicada no Diário Oficial da União em 13,12,95, disciplina o ingresso em terras indígenas com a finalidade de desenvolver pesquisa científica.
Portaria nº 177, de 16 de fevereiro de 2006, do presidente da FUNAI, publicada no Diário Oficial da União No. 36, em 20/02/06, regulamenta a entrada de pessoas em terras indígenas visando o respeito aos povos indígenas, a proteção de seu patrimônio material e imaterial relacionados à imagem, criações artísticas e culturais.
(3) Art.44° As riquezas do solo, nas áreas indígenas, somente pelos silvícolas podem ser exploradas, cabendo-lhes com exclusividade o exercício da garimpagem, faiscação e cata das áreas referidas